Nesta cena, Telmo, num monólogo em forma de
solilóquio, expressa em voz alta as suas preocupações, as suas dúvidas, em
suma, o seu dilema.
● Elementos
da cena
Segundo Carlos Reis (Frei Luís de Sousa, Leituras
Orientadas, pp. 80-81, Porto Editora), neste monólogo «estão concentrados dois sentidos, que dizem respeito a um drama interior vivido por Telmo:
. O sentido da fidelidade ao antigo amo, uma fidelidade que agora está em
crise.
. O sentido da culpa pelo facto de a fidelidade ao passado ter sido
perturbada: o afeto sentido por Maria foi mais forte.
Para além disso, as palavras de Telmo confirmam os
presságios e as ameaças: ou seja: quem por várias vezes, no primeiro ato
(sobretudo na cena 2), expressou a crença de que o passado não estava morto, confirma agora, pela chegada do
romeiro, que os presságios estavam certos. Convém lembrar; neste momento Telmo
ainda não sabe que o romeiro é o próprio D. João de Portugal, seu antigo amo.».
● Conflito
interior de Telmo
Telmo Pais sempre desejou o regresso de D. João de
Portugal e sempre acreditou que estaria vivo e iria, efetivamente, regressar.
Porém, agora que sabe que está vivo é confrontado com um dilema terrível: o
amor a Maria versus o amor a D. João.
No momento em que o sonho alimentado durante 21 anos
(a vida e o regresso de D. João, que ele criou como um filho) está prestes a
concretizar-se, Telmo não se sente feliz, pois apercebe-se de que vive um
conflito insanável, já que tem dois filhos, mas, para um existir, o outro tem
de desaparecer: «Virou-se-me a alma toda com isto: não sou já o mesmo homem.».
Além disso, conclui que o amor por Maria superou («apagou») o que dedicava ao
antigo amo, por isso fica amargurado com a possibilidade de ela morrer em
resultado dos recentes acontecimentos. A jovem é um anjo que não merece tanto
sofrimento. E tudo isto o deixa dividido, confuso e aterrado.
Com efeito, Telmo já não é o mesmo homem, dado que
já não tem a certeza de desejar o regresso do primeiro amo e dado que o amor
por este foi suplantado pelo amor por Maria.
Na parte da final da cena, Telmo oferece a sua vida
em sacrifício em troca da de Maria, pois pressente a morte próxima desta: «Levai
o velho que já não presta para nada, levai-o, por quem sois!».
Estilisticamente, o conflito de Telmo é traduzido
pelo recurso às reticências e frases interrompidas, as quais traduzem fielmente
a dificuldade que a personagem tem em concluir os seus pensamentos, que se
cruzam, atropelam e precipitam. Por outro lado, as exclamações refletem a sua
emotividade, enquanto as interrogações traduzem as suas dúvidas.
Relativamente à adjetivação, possuem uma carga
profundamente negativa (“aterrado”, “confuso”, “terrível”), traduzindo o estado
de espírito de Telmo e a sua lancinante divisão interior. Nota também para
determinadas expressões que exprimem, igualmente, o conflito, a dor e a
angústia da personagem: «Virou-se-me a alma toda»; «Perdoe-me Deus se é pecado»,
etc.
O uso do diminutivo “inocentinho” reflete o carinho
e o amor de Telmo por Maria, mas, por outro lado, evidencia a fragilidade desta.
● Personagens
e linguagem dramática
Citando novamente Carlos Reis (op. cit.),
«Embora esteja só em cena, Telmo parece acompanhado por duas figuras ausentes:
. Maria, esta “última filha” (II. 10-11), “aquele
anjo” (ll. 12-13) que ocupou o lugar que antes pertencia a D. João. Maria é
filha, evidentemente, apenas no sentido afetivo.
. D. João de Portugal, o “filho que eu criei
nestes braços” (l. 6), assim considerado no mesmo sentido afetivo.
Estas duas personagens são a razão do dilema de Telmo, como se nele existissem duas personalidades em conflito: uma
que está ligada ao passado, outra que está situada no presente.
Pela intensidade daquele dilema (que não atinge
nenhuma outra personagem do Frei Luís de Sousa), Telmo já foi
considerado a personagem principal da ação. O seu comportamento, nesta cena,
apresenta, além disso, uma forte teatralidade, criada por recursos de linguagem
dramática:
. Toda a fala de Telmo revela as emoções que ele
expressa através de exclamações, reticências e interrogações.
. Junta-se a isto a linguagem do corpo, quando Telmo
se ajoelha.
. Em certo momento, a personagem dirige-se a Deus e
transforma o monólogo em diálogo com essa divindade invisível.
A cena termina com uma situação tipicamente teatral. Telmo não vê que o romeiro entra em cena; ao falar
no ser “inocentinho que eu criei para Vós, Senhor” (ll. 18-19), ele é
entendido pelo romeiro como estando a referir-se a D. João, É isso que se
percebe logo na abertura da cena seguinte: “Não pedias tu por teu desgraçado
amo, pelo filho que criaste?”, pergunta o romeiro a Telmo. A resposta confirma
o engano e deixa o romeiro/D. João de Portugal consciente de que todos o
abandonaram.».
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