Maria entra em cena e interrompe a cerimónia da
tomada de hábito dos pais, produzindo um discurso prenhe de revolta contra tudo
e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua
família.
● Didascália
inicial:
- entrada precipitada de Maria na igreja;
- estado de Maria (“de
completa alienação” física e psicológica);
- reação dos
presentes na cerimónia (“Espanto geral”);
- interrupção da
cerimónia.
● Caracterização
de Maria
▪ Maria surge em cena
“em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos soltos”), vestida
de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e caídas”), com o “rosto
macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos desvairados”, como se
pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o quão
perturbada está.
▪ De seguida,
doente (febril) e desesperada, profere um discurso violento, revoltado e desafiador
das normas vigentes na época, acabando a desejar a morte.
▪ Esse discurso é
extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos imperativo
e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes,
repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por
ela produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência
crítica das suas palavras.
▪ Por outro lado, o
seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e religiosas
dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que
participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto, comparticipam na dissolução
do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade
de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais legítimos (“Que
Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de
Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém que
desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo,
tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado
existe: uma família feliz e temente a Deus);
- um mundo
hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções
sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam
vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento,
que gera situações dramáticas).
▪ Em determinado
momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do crime e
do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize
que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca
mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe
não tirem o nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem.
[…]”. Maria desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma
não se importar com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era
“filha do crime e do pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor
superior aos valores sociais e religiosos.
▪ Maria não se considera
“filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não aceita a sua
ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser feliz
por causa da sua ilegitimidade.
▪ O objetivo final de
Maria é demover os pais da resolução de tomar o hábito (“levantai-vos, vinde”).
▪ No seu discurso,
Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e não
deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a atravessava
entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a separação
da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de a
espada estar em chamas).
▪ A sua fala final
anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena do
Romeiro (“e ele vem aí…”).
▪ Com este
discurso, Almeida Garrett pretende suscitar a piedade (éleos) do leitor/espectador relativamente a Maria, uma
vítima inocente das normas sociais e religiosas.
▪ Para Maria, o
Romeiro-D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém
considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por
outro lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à
ilegal construção da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal.
Sucede que essas duas realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia
ser, face à lei de Deus e à dos homens, esposa legítima de dois lares em
simultâneo.
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