Português: Análise da Cena 11 do Ato III de Frei Luís de Sousa

domingo, 19 de janeiro de 2020

Análise da Cena 11 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Maria entra em cena e interrompe a cerimónia da tomada de hábito dos pais, produzindo um discurso prenhe de revolta contra tudo e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua família.


Didascália inicial:
- entrada precipitada de Maria na igreja;
- estado de Maria (“de completa alienação” física e psicológica);
- reação dos presentes na cerimónia (“Espanto geral”);
- interrupção da cerimónia.


Caracterização de Maria

▪ Maria surge em cena “em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos soltos”), vestida de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e caídas”), com o “rosto macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos desvairados”, como se pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o quão perturbada está.

▪ De seguida, doente (febril) e desesperada, profere um discurso violento, revoltado e desafiador das normas vigentes na época, acabando a desejar a morte.

▪ Esse discurso é extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes, repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por ela produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência crítica das suas palavras.

▪ Por outro lado, o seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e religiosas dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto, comparticipam na dissolução do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais legítimos (“Que Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém que desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo, tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado existe: uma família feliz e temente a Deus);
- um mundo hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento, que gera situações dramáticas).

▪ Em determinado momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do crime e do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem. […]”. Maria desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma não se importar com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era “filha do crime e do pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor superior aos valores sociais e religiosos.

▪ Maria não se considera “filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não aceita a sua ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser feliz por causa da sua ilegitimidade.

▪ O objetivo final de Maria é demover os pais da resolução de tomar o hábito (“levantai-vos, vinde”).

▪ No seu discurso, Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e não deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a atravessava entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a separação da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de a espada estar em chamas).

▪ A sua fala final anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena do Romeiro (“e ele vem aí…”).

▪ Com este discurso, Almeida Garrett pretende suscitar a piedade (éleos) do leitor/espectador relativamente a Maria, uma vítima inocente das normas sociais e religiosas.

▪ Para Maria, o Romeiro-D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por outro lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à ilegal construção da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal. Sucede que essas duas realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia ser, face à lei de Deus e à dos homens, esposa legítima de dois lares em simultâneo.

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