A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais
conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre
Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a
Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e
ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.
● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett
utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se
dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era
Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».
● O que permite o reconhecimento de D. João de
Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz…
esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim
que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo
que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.
● Entre as duas personagens existe uma relação paternal,
de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa
relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de
ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...».
De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo,
gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas
dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e
compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado
lhe fala de Maria.
● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica
à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que
descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida,
parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A
repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a
sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus
sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por
todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho
criado.
● No final, D. João de Portugal reconhece o quão
imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.».
E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e
mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que
estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um
amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é
ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com
a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».
● Note-se que Telmo tinha razão com a sua
superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a
promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer
Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao
seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D.
Madalena e a segunda para o velho aio.
● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o
momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição
diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de
vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a
sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o
velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e
honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um
impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre
e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na
equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».
● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho
criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e
o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber
notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E
fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.
● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um
embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena.
Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto
D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de
Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra
que é uma personagem exemplar.
● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de
reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade
de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do
Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única
pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor
D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a
credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras
personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio,
visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».
● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da
obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o
amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como
não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes,
que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.
● Esta cena confirma o que a anterior deixava
adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e
alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que,
afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha
ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa
e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a
esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que
minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado
a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça,
Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D.
Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado
e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos
seus princípios por amor a Maria.
● A
figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa
De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís
de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):
A. D. João de Portugal é uma
entidade dupla:
1 – É uma entidade
abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II
ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de
um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma
existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago
de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses
da tragédia grega).
2 – É uma entidade
concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos
fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura
interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a
tomada de hábito de Madalena.
B.
D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático
e vivo da palavra:
1 – Não é uma
personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e
voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o
traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está
quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções,
sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo
de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de
Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos
agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas
(I, 1).
2 – Não é uma
personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e
voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a
natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o
tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é
suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais
seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em
profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na
eficácia das suas tentativas de solução da crise?
C. D. João de Portugal é uma
personagem virtual
D. João é a presença simbólica de uma «força
trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as
paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas
progressivamente tensas até ao desfecho.
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