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sexta-feira, 20 de março de 2020

Valor simbólico dos marcos históricos referidos no conto "Famílias desavindas"

A história pessoal (de ódio e conflito) entre as duas famílias «confunde-se» com a história social de Portugal.
Na transição do século XIX para o XX, a sociedade sofreu transformações decorrentes do progresso científico, facto visível, neste conto, na introdução de um semáforo a pedais numa rua da cidade do Porto e na criação da profissão de «semaforeiro».

De facto, essa época constituiu um avanço notável em termos tecnológicos. A eletricidade, a lâmpada, o telefone, o automóvel foram algumas das invenções do final do século XIX, cujo aperfeiçoamento prosseguiu no século XX e que melhoraram substancialmente a qualidade de vida de muitas pessoas. Este salto evolucional fez-se sentir igualmente noutras áreas, como, por exemplo, o cinema, sem esquecer que o avião estava também ao virar da esquina. Ora, a invenção do semáforo referido no conto insere-se nessa onda e nesse período de progresso e inovação tecnológica.
Por outro lado, as duas Grandes Guerras simbolizam os conflitos (neste caso, de grandes dimensões, com milhões de mortos e feridos, atrocidades até então «desconhecidas» do ser humano), os ódios e as agressões entre os seres humanos. São um símbolo dos grandes massacres do século XX, a que se poderiam acrescentar outros não referenciados no conto (a guerra do Vietname, as lutas pela independência por parte de países colonizados pelos europeus, a expansão do terrorismo, etc.). Sucede que a história narrada no conto de Mário de Carvalho constitui uma narrativa de desavenças e ódios, numa escada ínfima comparativamente aos eventos mundiais referidos, mas ainda assim de conflito.
O outro acontecimento mencionado no texto, este de índole nacional – o 25 de Abril de 1974 –, simboliza a liberdade, o fim da ditadura, da opressão e da perseguição, bem como mudança nas relações entre as pessoas, a abertura de ideias, o entendimento, a comunhão. A reconciliação entre as famílias dos «semaforeiros» e dos médicos sucede precisamente numa época posterior à Revolução dos Cravos.
O quadro seguinte reproduz os marcos históricos presentes no conto e o simbolismo associado a essas datas históricas.

Sequências narrativas de "Famílias desavindas"

1.ª sequência – Narração da origem dos semáforos e localização do aparelho (1.º e 2.º parágrafos).

2.ª sequência – Descrição do equipamento dos semáforos e do seu funcionamento (3.º parágrafo).

3.ª sequência – Relato do processo de seleção do primeiro semaforeiro (4.º parágrafo).

4.ª sequência – Sumário relativo às pessoas que desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação (5.º parágrafo).

5.ª sequência – Descrição da relação atual entre semaforeiro, motoristas e transeuntes (6.º parágrafo).

6.ª sequência – Apresentação do primeiro médico e da origem do conflito com os semaforeiros.

7.ª sequência – Exposição das relações conflituosas entre médicos e semaforeiros (8.º ao 12.º parágrafos).

8.ª sequência – Narração do acidente e da reconciliação entre semaforeiros e médicos (13.º ao 16.º parágrafos).


Personagens de "Famílias desavindas"

I. Caracterização

As personagens centrais do conto distribuem-se, essencialmente, por duas famílias: a dos médicos e a dos «semaforeiros».

A família dos semaforeiros é constituída por quatro elementos, cujo traços de união são (1) a inimizade pelos vizinhos médicos e (2) o amor e a dedicação ao instrumento de trabalho.
Por seu turno, a família dos médicos é constituída por três, representando cada um deles um traço diferente:
» João Pedro: o impositivo;
» João: o inseguro;
» Paulo: o teórico.
O que os une é a inimizade pelos «semaforeiros».


No que diz respeito à caracterização das personagens, os traços principais são os seguintes.

Família dos semaforeiros

1. Ramon:
» é o primeiro «semaforeiro»;
» é galego, isto é, originário da Galiza;
» não sabe pedalar, no entanto é o escolhido para o lugar através do compadrio (é familiar do proprietário de um bom restaurante);
» é esforçado, empenhado e cheio de boa vontade no exercício da sua profissão, que exerce com prazer e orgulho, tal como os seus descendentes;
» pertence à geração da I Guerra Mundial;
» sente-se magoado, triste e ofendido com o Dr. Bekett, por isso dificulta-lhe a tarefa;
» inicia o conflito com a família dos médicos.

2. Ximenez:
» é filho de Ramon;
» é o segundo «semaforeiro»;
» pertence à geração da II Guerra Mundial.

3. Asdrúbal:
» é filho de Ximenez;
» é o terceiro «semaforeiro»;
» pertence à geração do 25 de Abril;
» insulta o Dr. Paulo, com o qual quase chega a vias de facto.

4. Paco:
» é bisneto de Ramon;
» pertence à geração do início do século XXI;
» é simpático e prestável com os condutores, com quem tem uma relação personalizada;
» mantém o conflito com o médico;
» sofre um acidente e é socorrido pelo médico, que também o substitui no semáforo enquanto recupera no hospital.

Não obstante nos serem dados a conhecer os nomes de todos os quatro semaforeiros, estes constituem uma personagem coletiva, que se caracteriza pelo amor quase obsessivo e irracional pelos «seus» semáforos, o que justifica que, ao contrário dos médicos, apenas o primeiro «semaforeiro» tenha direito a uma caracterização individualizada, e apenas para justificar a sua escolha para o cargo.

Família dos médicos

5. João Pedro Bekett:
» é oriundo de Coimbra;
» é um médico singular: queria tratar toda a gente de doenças que eventualmente teriam, mesmo que os próprios não quisessem ser tratados;
» percorre as ruas à procura de pessoas que queria convencer a consultar por, na sua opinião, terem aspeto de doentes;
» é um «pai de filhos»;
» tem boa fama enquanto médico;
» possui elevado espírito de missão;
» não gostou que o semaforeiro lhe impusesse limites à sua circulação, o que, segundo ele, ia contra a sua liberdade (não poder atravessar a rua quando quisesse).

6. Dr. João:
» é filho de Pedro Bekett;
» é um médico muito inseguro e modesto: considera que os seus diagnósticos estão provavelmente errados e aconselha os doentes a procurarem uma segunda opinião;
» é um mau profissional: em vez de se aperfeiçoar, dada a sua insegurança, passava o tempo livre à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido;
» herda do pai o ódio pelos «semaforeiros»;
» intensifica o conflito com eles;
» raramente acerta no diagnóstico.

7. Dr. Paulo:
» é filho do Dr. João;
» adormece os seus pacientes com explicações muito pormenorizadas sobre as suas doenças, mostrando-se pouco ou nada interessado em ouvir as suas queixas;
» insulta o semaforeiro Asdrúbal;
» quase chega a vias de facto com o semaforeiro;
» mantém uma relação conflituosa com Paco;
» socorre-o quando assiste a um acidente sofrido por Paco, deixando de lado os ódios antigos;
» é solidário: assume o posto de Paco como «semaforeiro» para se redimir e à sua consciência pesada enquanto aquele se encontra hospitalizado.

Outras personagens

8. Gerard Letelessier:
» é um engenheiro francês;
» fracassou no seu país e em Lisboa;
» tem sucesso no Porto com uma invenção inútil.

9. Autarca do Porto:
» é o símbolo de todos os autarcas da província;
» fica mais entusiasmado com as garrafas de vinho do que com o invento;
» fica deslumbrado por um projeto porque é estrangeiro;
» é entusiasta de situações experimentais que se tornam definitivas.

10. Transeuntes e motorista do Porto:
» representam o gosto da população portuguesa pelo facilitismo, pelos «brandos costumes», pelo tráfico de influências.


II. Representatividade

• Os semaforeiros são um grupo de trabalhadores ciosos da sua profissão, que exercem com grande zelo e entusiasmo, mesmo que não tenha qualquer importância ou relevância social.

• Os médicos pertencem a uma classe social superior. Desempenham uma atividade imprescindível, mas revelam ou prepotência (Dr. João Pedro Bekett), ou insegurança (Dr. João) ou conhecimentos apenas teóricos (Dr. Paulo).


História pessoal e história social: as duas famílias

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


COVID-19: ponto de situação do dia 19 de março


quarta-feira, 18 de março de 2020

Análise de "Orfeu rebelde"

O mito de Orfeu

Orfeu é uma figura da mitologia grega, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus da poesia e da música, de quem recebeu uma lira como presente.
Orfeu era um poeta que se celebrizou pelo seu canto melodioso, que encantava a própria Natureza. De facto, os sons da sua lira domavam as feras, que se deitavam a seus pés, e atraía também seres humanos e a própria Natureza.
Casou-se com Eurídice, seu grande amor. No casamento, esteve presente Himeneu para abençoar a união, mas o fumo da sua tocha fez lacrimejar os noivos, o que não trouxe augúrios favoráveis. Pouco tempo depois, Eurídice passeava com as ninfas, quando foi surpreendida pelo pastor Aristeu, que, ao vê-la, se apaixonou perdidamente e a tentou conquistar. Na sua fuga, Eurídice pisou uma serpente, que a mordeu no pé e lhe causou a morte.
Orfeu, desesperado e incontrolável, desceu ao reino dos mortos para a reaver. Perante os deuses do Inferno, cantou o seu desgosto e o seu amor, dizendo que, se não lha devolvessem, ele próprio ficaria com ela no reino dos mortos. Graças ao seu canto, conseguiu comover Hades e Perséfone a autorizarem o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, mas com uma condição: em caso algum, Orfeu poderia virar-se para trás, olhá-la, enquanto não tivessem transposto os limites infernais e alcançado o mundo superior, a superfície. Caminhando na frente, Orfeu estava quase a chegar aos portões do Hades e a atingir o seu objetivo, mas, com receio de ter sido enganado por aqueles deuses, virou-se para trás para confirmar se a esposa o seguia. Eurídice, lavada em lágrimas, foi imediatamente levada de volta para o mundo dos mortos. Orfeu tentou alcança-la, mas sem sucesso.
Profundamente triste, permaneceu na margem do rio durante sete dias, sem comer nem dormir, suplicando o regresso da esposa. Depois, vagueou, triste e solitário, pelo mundo, sem nunca mais querer saber de mulher alguma e repelindo todas as que o tentavam seduzir, até que um dia as mulheres da Trácia, enfurecidas pelo seu desprezo, o mataram e lançaram o seu corpo ao rio Ebro, que acabou por ser levado até à ilha de Lesbos, onde, durante muito tempo, a cabeça de Orfeu, presa numa rocha, proferia oráculos. A sua lira foi colocada num templo de Lesbos.
Outra versão do mito sugere que as musas o enterraram em Limetra, num túmulo onde o rouxinol canta mais suavemente do que em qualquer outra parte da Grécia, e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Orfeu encontrou por fim Eurídice e, abraçando-a, nunca mais deixou de a contemplar.

NOTA: Miguel Torga reutiliza muitos mitos gregos, tirando partido do seu significado e aplicando-os quer a si mesmo quer à sua terra. No caso do mito de Orfeu, destaca a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.


Assunto: rebelde, o sujeito poético pretende gravar, através do canto (a poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à transitoriedade da vida e à inevitabilidade da morte.


Tema: a revolta contra a inexorabilidade do tempo e a morte / o ofício de poeta.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Autocaracterização do sujeito poético.

▪ O sujeito autocaracteriza-se como um poeta rebelde cuja poesia corresponde à expressão de si mesmo («canto como sou»), da sua intensidade, da sua revolta, do seu perene sofrimento. Autocaracteriza-se igualmente como um poeta sincero («canto como sou»), autêntico enquanto ser, no seu sofrimento e nos seus sentimentos («Violências famintas de ternura»).

▪ O sujeito poético assume-se como um rebelde – a rebeldia de Orfeu – e revolta-se cantando como um possesso (comparação que traduz a fúria com que o sujeito poético exprime o seu «canto», a sua poesia).

▪ Essa fúria, essa violência constituem um grito contra a morte e contra a passagem inexorável do tempo, são motivadas pelo desejo de lutar contra a passagem do tempo e a efemeridade da vida, através da eternização dos momentos permitida pela escrita.

▪ O sujeito poético pretende que a sua voz obsessiva e esse grito contra o tempo se prolonguem para a eternidade, daí a gravação «a canivete» (metáfora), para que a própria evolução da casca torne mais duradoura e viva a sua revolta.

▪ De facto, a metáfora da «casca do tempo» expressa a ideia de que a casca eterniza a sua revolta, no entanto, contraditoriamente, estaremos perante algo efémero e aparente – a gravação da fúria de cada momento – por ser apenas casca. Afinal, o que o sujeito poético procura é encontrar a eternidade na realização poética, à maneira clássica.

2.ª parte (2.ª estrofe) – Oposição entre os «outros» e o «eu».

▪ O sujeito poético recusa a poesia de outros poetas, românticos, de canto suave e harmonioso, descomprometidos da realidade, que se conformam («Outros, felizes, sejam rouxinóis…» – v. 7 – metáfora e ironia relativamente à aceitação fácil da vida).

▪ Pelo contrário, o «eu» distancia-se desses outros poetas, pois não pretende exprimir emoções, mas um canto agressivo e violento, de revolta, de desafio (poesia romântica/descomprometida versus poesia de revolta), um grito violento revelador da falta de ternura. Então, recorre à violência, ou melhor, a uma expressão violenta e agressiva para vencer o que o instinto lhe adivinha e ele recusa: a inexorabilidade da morte e a opressão que se abate sobre ele (vide versos 8-11). O sujeito poético é um ser atormentado e revoltado que desafia as leis do tempo e da vida (v. 10).

▪ A metáfora «…. O céu e a terra, pedras conjugas…» (v. 9) exprime a união de todas as forças que se conjugam para triturar o sujeito, para o oprimir – «Do moinho cruel que me tritura…» (v. 10), metáfora e personificação que evocam a passagem inexorável do tempo (que provoca o sofrimento permanente do «eu») pelo movimento circular do moinho e contra a qual ele se revolta. O céu e a terra unem esforços para atormentar o sujeito poético, um espírito moído pelo sofrimento da vida que roda sem fim, como se de um moinho se tratasse, o moinho do tempo cuja mó é, precisamente, o céu e a terra conjugados.

▪ A personificação e a comparação presentes nos versos 9 a 11 [«… o céu e a terra (…) / Saibam que há gritos como há nortadas / Violências famintas de ternura…»] exprimem a força e a violência do grito do sujeito poético contra a passagem do tempo, semelhante à violência e à força dos elementos da Natureza, como as nortadas Por outro lado, a agressividade do «eu» traduz igualmente a aspiração ao afeto, que ele não possui.

▪ De facto, a personificação de sabor metafórico presente no verso 12 exprime a força e a necessidade de amor e ternura que o sujeito poético sente.

3.ª parte (3.ªestrofe) – Função interventiva da poesia.

▪ O sujeito poético afirma-se possuidor do instinto dos animais – que o leva a adivinhar a inevitabilidade da morte – e do corpo de um poeta que a recusa e contra ela luta através do seu canto.

▪ A comparação e a metáfora dos versos 15 e 16 («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa.») reafirmam a postura de rebeldia do sujeito poético e a ideia da poesia como arma e a palavra e a liberdade de expressão são veículos de denúncia.

▪ Isto remete para o conceito de poesia sugerido pelo poema: o sujeito poético canta para agir sobre o (seu) tempo, assumindo uma posição interventiva. De facto, a poesia constitui um grito, um refúgio, um desabafo, face à consciência da passagem triturante do tempo e à iminência da morte. Estes recursos estilísticos emprestam à criação poética conotações de luta: o canto poético funciona como uma arma.

▪ Os dois últimos versos do poema sugerem que o canto do sujeito poético oscila entre a exaltação e o terror em relação à realidade, visto que esta, apesar de toda a sua beleza, é caracterizada pela omnipresença da morte

NOTAS:

1.ª) Miguel Torga socorre-se do mito de Orfeu para dar voz à sua rebeldia, mas desenvolve-o de forma diferente do tratamento que lhe foi dado pelos clássicos. Por um lado, o Orfeu mitológico representa a rebeldia por causa do amor, enquanto o Orfeu de Miguel Torga simboliza a rebeldia motivada pelos seus limites e pelos limites humanos, sobretudo a impossibilidade de travar a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de vencer a morte. O poeta, simultaneamente, aproveita e subverte o mito: o poeta é o próprio Orfeu, o que significa que se automitifica.

2.ª) Por outro lado, de acordo com o mito grego, Orfeu caracterizava-se por ser suave e encantatório, enquanto o canto do sujeito poético é caracterizado pela intensidade, pela força, revelando a face rebelde e revoltada de um Orfeu desafiador.

3.ª) A poesia é entendida como uma arma do poeta, utilizada em legítima defesa: «Canto como um possesso», «desafio», «moinho cruel», «gritos», «nortadas», «violências». Essa arma serve de arma de defesa do sujeito poético contra o esquecimento, a morte, a passagem do tempo. A poesia é arma de combate – a única arma que pode vencer a morte; é uma poesia de desespero humanista.

4.ª) Como poeta, Miguel Torga considera-se chamado à missão suprema de gritar a sua solidariedade humanista com todos os homens, sobretudo os que são mais abandonados, e dar-lhes esperança.

5.ª) O humanismo de Torga é o humanismo de um revolucionário, de um revoltado e, mais do que um revoltado, de um rebelde. O canto poético é o seu instrumento de combate, «em legítima defesa» dos valores que «articulam» o seu humanismo, que não é de «abdicação mas de confronto».

6.ª) A mensagem do poema remete para o drama interior do homem e a sua obstinação em lutar contra esse drama, patente na imagem órfica presente nesta atitude do poeta perante a poesia e a morte, ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Caracterização do sujeito poético
▪ O sujeito poético é um poeta revoltado e rebelde (“Orfeu rebelde” – v. 1), não por ter perdido a amada, como Orfeu, mas por causa da passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
▪ É igualmente um ser sincero, autêntico e genuíno («Canto como sou» - v. 1) e intenso («Canto como um possesso» - v. 2).
▪ É um ser sofredor, atormentado e revoltado pela passagem inexorável do tempo e pela morte, que desafia as leis do tempo e da vida («Que o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura» – vv. 9-10), faminto de ternura («Violências famintas de ternura» – v. 12).
▪ É, assim, um poeta que luta contra a passagem do tempo e contra a morte.
▪ Exprime a dolorosa condição do ser humano («Bichinho instintivo que adivinha a morte» – v. 13), mas procura superá-la, recusando-a e afirmando a sua identidade.
▪ O seu canto constitui uma arma, uma arma de defesa e complexa («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa. / Canto, sem perguntar à Musa / Se o canto é de terror ou de beleza.» – vv. 15-18).


Título

Orfeu é uma figura mítica ligada à poesia, o que se adequa ao poema de Torga, cujo tema é a conceção do ofício de poeta.
Por outro lado, o poeta identifica-se com Orfeu, dado que, tal como sucedia com a figura da mitologia, também o seu canto tem um forte impacto naqueles que o rodeiam,
Por sua vez, o adjetivo «rebelde» corresponde à conceção de poeta veiculada pelo poema: um poeta da revolta e da intensidade e não suave, harmonioso e encantatório como o de Orfeu.
Por último, tal como Orfeu, que procurou lutar contra recorrendo ao seu canto (foi assim que resgatou Eurídice do reino dos mortos), também o poeta se revolta contra a morte e procura combatê-la e reverte-la através da sua poesia.



Outros recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

Estrofes: o poema é constituído por três sextilhas.
Rima:
- esquema rimático: ABCDCD/ABCDCD/ABBCBC;
- os dois primeiros versos de cada estrofe são brancos, exceto o segundo da última estrofe, que emparelha com o seguinte;
- os quatro últimos versos de cada estrofe apresentam rima cruzada;
- consoante («canivete»/«compromete»);
- rica («canivete»/«compromete») e pobre («momento»/«sofrimento»);
- grave («canivete»/«compromete»).
Métrica irregular: versos maioritariamente decassilábicos, exceto o 2.º da 1.ª estrofe e os 3.º e 5.ºda 3.ª estrofe (de 6 e 8 sílabas).
. Ritmo oscilante, dadas as características da rima e da métrica.
. Vários casos de transporte contribuem para o ritmo do poema.
. Aliteração do fonema /c/ ao longo do poema, conjugada com a aliteração do fonema /t/, que remete para a luta e rebeldia do sujeito poético.

2. Nível morfossintático

. A adjetivação (“rebelde”, “cruel”, “famintos”, “instintivo”, “legítima”) é sugestiva de rebeldia e também de ironia no caso do adjetivo felizes.
. Predomínio de verbos e nomes expressivos de ação, força, agressividade, rebeldia, ao serviço de um estilo viril.
. Verbos:
– domínio do presente do indicativo: sugere a continuidade da luta, um processo interminável, e do sentimento de revolta do sujeito poético;
– presente do conjuntivo: o desdém;
– pretérito imperfeito do conjuntivo: a hipótese.
. Predomínio de sensações auditivas.


Marcas torguianas e presencistas do poema:
- a superlativação do “eu”;
- a emotividade da linguagem;
- a aguda da consciência da função do Poeta e da Poesia;
- o humanismo revolucionário.


Síntese

Miguel Torga é um poeta órfico, no duplo sentido em que relaciona o orfismo com o glorioso Orfeu, poeta, ora com as práticas doutrinárias que inculcam a crença de que o corpo é a prisão da alma e de que a purificação do pecado se obtém pela mortificação do corpo, pela abstenção de certos atos e pelo culto de certos ritos.
No primeiro sentido, o mais glosado dos mitos helénicos é Orfeu, patrono emblemático da poesia, o portador da lira cuja música não só subjuga a própria natureza como Caronte e os deuses do Hades, das trevas infernais em que estava Eurídice nas suas “faixas de morta, incerta, suave e sem impaciência” (Rilke). No segundo sentido, o orfismo torguiano revela-se na contínua frequência com que o poeta introduz na natureza do ato poético o ingrediente ascético e catártico que lhe dão eficácia, necessidade e sentido de único vínculo e veículo que encaminha o nosso rumo interior para o projeto superior da Poesia.
À reinvenção deste mito presidem paradoxalmente as metáforas de Orfeu Rebelde, Orfeu Cansado e Orfeu Mártir.
É introduzida aqui uma rebeldia que tem como reverso o pânico de quem se deu conta que as cordas da lírica órfica são “grades” e de quem, irremediavelmente mergulhado na desafinação da melodia, deliberadamente perdida, quer “ao menos falhar em tom agudo”, insistindo em transformar cada novo som discordante num “grito/Que no seu desespero diga tudo”.
Esquecido da sua missão de ressuscitar Eurídice, Orfeu introduz no canto e na melodia que enterneciam e domavam os deuses das trevas infernais – “a fúria de cada momento”, desinteressado de “se o canto é de terror ou de beleza” e apenas determinado a usá-lo “em legítima defesa”, a ver se o seu canto compromete a eternidade no seu sofrimento.
De resto, a estratégia da arte poética torguiana da procura do paradigma formal e a tática de rotura e desvio que lhe é implícita são o próprio absoluto da contradição órfica – inerente como foi sempre o orfismo à soberania e ao culto de Dioniso, deus da fúria, da desordem catabática, meta da divina demência ou da divina intoxicação.
Rebelde, Orfeu – Torga, os dedos enclavinhados nas grades da prisão da lira, o corpo rasgado, por dentro, pelos golpes de paixão da alma encarcerada, por fora, pelo ferro dos versos da emoção endurecida, nunca deixará de ser o apaixonado para quem é tão necessário conseguir dos deuses a descida aos infernos em busca de Eurídice como ser o rebelde que contraria a lei de a não olhar para a não perder.
Toda a poesia torguiana está cheia desse imperativo órfico em virtude do qual só na autoflagelação e na catarse do exercício poético a nossa perfuração existencial adquire a direção ascensional no sentido purificador da super-existência pela Poesia.
É, com efeito, necessário que Orfeu desça aos infernos à procura de Eurídice, não para a trazer consigo para as alegrias domésticas de uma felicidade familiar, mas para a reintroduzir na inessencialidade da noite – dessa noite que, sendo o limite do dia, é também o seu pressentimento e a sua promessa. E é igualmente necessário que Orfeu suba de novo à luz do dia, à precisão luminosa da solidão do seu corpo, à cintilação do seu olhar portador da morte que é a profundidade da vida, no mesmo sentido em que a Poesia é a profundidade do absurdo do mundo sem Deus e em que o esquecimento é a profundidade da memória. Cúmplice do esquecimento e da morte, a Poesia é, portanto, a imagem do excesso da vida incomportável no esquecimento e na morte que o olhar do rosto rebelde reintroduz nas trevas e na noite, perfil da luz e do dia (cf. “Descida aos Infernos”).




 

Relação do mito com a poesia de Torga
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