Neste conto, o
narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de
códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está
presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na
conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias,
depois de cerca de um século de conflito.
A dimensão
irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:
● O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no
quotidiano recriado)
▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e
legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de
nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter
incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro
semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que
culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).
● O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica,
recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do
quotidiano:
1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do
conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a
magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a
deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano.
Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução
que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se
manter incólume e inalterada.
2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a
corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos
públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional
(cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o
comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e
profissional.
3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo
estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por
exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma
fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.
4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para
«ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da
sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para
que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris
e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca
pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de
bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante»
(sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos
transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o
seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma
segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam
enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo
conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos
desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa
superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito
de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter
absurdo.
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