Português: Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

sexta-feira, 20 de março de 2020

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


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