Português: Gil Vicente
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terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 10 da Farsa de Inês Pereira

             O Escudeiro, de nome Brás da Mata, entra em cena com o seu Moço, que traz uma viola (símbolo do lado cortesão do seu amo e da vida de diversão, mas também da sua pelintrice).
 
1. Considerações de Brás da Mata sobre Inês
 
● Começa por considerar que, se Inês for como os Judeus casamenteiros a pintaram, não existe melhor partido para ele (“Se esta senhora é tal / como os judeus ma gabaram / certo os anjos a pintaram”). Por outro lado, isto significa que Latão e Vidal são bastante eficientes no seu ofício, dado que encareceram bastante Inês junto do Escudeiro, tal como tinham feito com Brás da Mata relativamente a Inês.
 
● De facto, os dois judeus compararam os olhos da jovem com Santa Luzia, a advogada da visão, e os cabelos com os de Santa Maria Madalena.
 
● No entanto, tamanha «perfeição» suscita nele alguma desconfiança (“e nam pode ser i al”)
1.º) Se é assim tão bela, como é que ainda não casou (“Se fosse moça tão bela, / como donzela seria?”)?
2.º) Desconfia que é uma jovem de mau porte (“Moça de vila”), pouco asseada (“sarnosa”), muito feia e provinciana (“e sarnosa no toutiço / como burra de Castela.” – comparação) e não está seguro da sua castidade (“Se ela fosse donzela / tudo essoutro passaria”, ou seja, fosse ela donzela e o resto não teria importância.
 
● Assim, imaginando que os judeus o enganaram, vai procurar certificar-se se Inês é como aqueles a descreveram, nomeadamente se é honesta, contida e discreta.
 
● A sua postura relativamente a Inês é muito semelhante à que esta adotou relativamente a Pero Marques. De facto, Brás da Mata refere-se à jovem de forma depreciativa e desdenhosa, mesmo antes de a conhecer, tal como ela se manifestara com desprezo e arrogância acerca do primeiro pretendente. E tal acontece por razões semelhantes.
 
 
2. Conselhos da Mãe
 
            De acordo com a Mãe, o comportamento que a filha deve adotar perante o Escudeiro deverá caracterizar-se pela passividade e pela submissão:
▪ falar pouco e não rir demasiado, isto é, ser discreto e recatada;
▪ não encarar o Escudeiro.
            Ou seja, Inês deverá mostrar-se uma mulher sensata e subserviente face ao Escudeiro, que é de condição superior, pois a moça discreta é uma pérola para amar (metáfora). Ou seja, a Mãe aconselha a filha a representar um papel para agradar ao pretendente, ocultando o seu verdadeiro ser (o mesmo acontece com Brás da Mata), o que indicia o seu verdadeiro ser.
 
 
3. Modelo da mulher ideal da época
 
            A fala da Mãe permite-nos colher mais alguns traços daquilo que seria o modelo de mulher da época em que a farsa foi composta: trabalhadora (entregue às tarefas domésticas), recatada e discreta (deveria passar despercebida).
 
 
4. Diálogo entre o Escudeiro e o Moço
 
            Qual é a funcionalidade deste diálogo?
            Na conversa que entabula com o Moço, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter, ao combinar com aquele a estratégia para seduzir Inês, que é o mesmo que dizer as mentiras para a enganar:
1.ª) Aconselha Fernando a tirar o «barrete» em sinal de respeito, sempre que estiver na sua presença.
2.ª) Se cuspir no chão, o Moço deverá disfarçar com o pé.
3.ª) Se mentir, gabando-se de ser íntimo do Rei, o Moço deverá conter o riso ou sair, isto é, não o deverá contradizer/desmentir.
            O Escudeiro orienta o Moço para agir de forma coincidente com a sua vontade, para manter as aparências e impressionar Inês.
            Quando Moço reclama que não tem sapatos e calças para se apresentar dignamente em casa de Inês, Brás da Mata começa por mentir, dizendo-lhe que o sapateiro não tem solas nem pela para lhos consertar, e depois promete-lhe que em breve terá dinheiro para lhe pagar.
            E como pensa o Escudeiro obter esse dinheiro? Através do casamento com Inês, dado que pensa que esta o terá e o irá sustentar: “Eu o haverei agora”.
 
 
5. Por que razões o Escudeiro quer casar com Inês?
 
            O Escudeiro, como é um homem pelintra, pretende casar com Inês por interesse económico: “Deixa-me casar a mi / depois eu te farei bem.”
            Por outro lado, deseja desposá-la, porque se trata de uma jovem provinciana e, provavelmente, ingénua, sendo-lhe, portanto, mais fácil dominá-la: “Moça de vila será ela”; “como burra de Castela”.
 
 
6. Caracterização do Escudeiro
 
            O diálogo entre Brás da Mata e Fernando mostra-nos o verdadeiro caráter do Escudeiro e a sua real situação económica. A sua caracterização pode ser feita a partir de duas situações.
 
• Forma como se refere e retrata Inês antes de a conhecer:
- desconfiado / cético: duvida do que os Judeus lhe disseram sobre Inês;
- é hipócrita e dissimulado: troça de Inês quando não é ouvido por ela, mas elogia-a quando fala com ela;
- astuto, trocista e desdenhoso: “cumpre-me bem atentar / se é garrida, se honesta”; “Moça de vila será ela / com sinalzinho postiço”.
 
• Relação com o Moço:
- é falso e mentiroso: “E se me vires mentir / gabando-me de privado”;
- é cínico, pretensioso e dissimulado (pretende ser íntimo do rei);
- é arrogante e autoritário: “Aviso-te que hás de estar / sem barrete onde eu estou”;
- é pobre: o estado do calçado e do vestuário do criado evidenciam-no (“Que farei, que o sapateiro / não tem solas nem tem pele?”);
- é calculista, oportunista e ambicioso: pretende viver à custa da mulher;
- é manipulador (“faze-o por amor de mi”).
 
 
7. Figura do Moço
 
Papel: desmistificar a personagem do Escudeiro através dos seus apartes, nomeadamente a pobreza, bem patente no seu próprio calçado e vestuário.
 
• Qual é a sua reação às falas do Escudeiro?

1. Submete-se às ordens de Brás da Mata e cala-se.

2. Critica, de forma irónica, as atitudes do dono, através dos apartes.

3. Denuncia a pobreza do Escudeiro.

 
Caracterização
 
     Nesta sua aparição inicial, o Moço revela-se crítico e irónico nos apartes que vai produzindo, denunciando, assim, a pelintrice do seu amo. Por outro lado, mostra-se sensato, visto que não se deixa impressionar pelas promessas do Escudeiro [“(Homem que não tem nem preto, / casa muito na má hora.)”].
 
 
8. Cómico
 
1. De caráter: a figura do Escudeiro, mentiroso, falso, dissimulado, pelintra.
 
2. De linguagem:
- a ironia do Moço, desmascarando a pelintrice e o caráter do Escudeiro;
- as falas trocistas do Escudeiro sobre Inês: “Moça de vila será ela / com sinalzinho postiço, / e sarnosa no toutiço, / como burra de Castela.”
 
 
9. Crítica
 
            Neste diálogo, Gil Vicente inicia o processo de crítica que recai sobre Brás da Mata, o tipo do escudeiro pelintra, mentiroso, dissimulado e oportunista que procura no casamento uma forma de sobrevivência e subsistência.
            Atentemos nas palavras de Maria Leonor da Cruz (in Gil Vicente e a sociedade portuguesa de quinhentos. 1990. Lisboa. Gradiva, p. 135): «Se o culto das aparências domina em particular aquele estrato social que, devido às mutações socioeconómicas que a sociedade portuguesa atravessa e à sua incapacidade de adaptação, a novos moldes, se encontra em decadência económica, mas procura manter um modo de vida faustoso, de acordo com o prestígio que granjeia na sociedade, ele estende-se também […] a camadas de escalão social inferior que com a fidalguia se pretendem identificar, embora quantas vezes não tenham nem sangue nobre nem disponibilidades financeiras para tanto.
            O prestígio e o título de nobre continuam a ter, de facto, um peso preponderante na sociedade da época, a que se alia um modus vivendi de sumptuária, real ou fictício, para obtenção do qual muitos se mobilizam.»
            Já nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes (in História da Literatura Portuguesa. Porto Editora), o escudeiro «É tipo insistente nos autos vicentinos […], género de parasita ocioso e vadio […]. O Escudeiro imita os padrões da nobreza, toca guitarra, verseja, faz serenatas às filhas dos “oficiais mecânicos”, pavoneia-se de bravo e cavaleiro, espera o seu “acrescentamento”, que o instalará de vez na nobreza. Mas não trabalha, passa fome estreme, tem medo, é corrido sob a chuva de insultos da mãe da pretendida, que o aconselha a aprender um ofício para não morrer à míngua.”
            De facto, no tempo de Gil Vicente, os escudeiros eram uma classe social desprestigiada, embora com ideias de grandeza. De facto, Brás da Mata apresenta-se como alguém importante, conhecido do rei, mas, na realidade, é um pobretanas cujo Moço usa calçado roto que ele não pode reparar, que não tem dinheiro e espera obtê-lo por meio do casamento.
            Deste modo, a sátira que Gil Vicente constrói a partir da figura deste escudeiro centra-se no contraste entre o que ele presumia e queria aparentar ser e o que era na realidade.
 
 
10. Linguagem
 
. Comparação: “Como burra de Castela” (sugere a ingenuidade o provincianismo de Inês, que, na cabeça do Escudeiro, seria fácil de dominar).
 
. Provérbio: “Homem que não tem nem preto, / Casa muito na má hora.” (= quem não tem dinheiro não devia casar.)
 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Análise da cena dos Judeus Casamenteiros da Farsa de Inês Pereira


 Ver a restante análise aqui: [análise-da-cena-dos-judeus-casamenteiros]

Análise da cena 8 da Farsa de Inês Pereira

 
Inês recusa o casamento com Pêro Marques, porque deseja casar com um homem [ideal de marido]:
‑ “discreto” (sábio, educado, de trato fino);
‑ que saiba tanger viola (atributo de cortesão, o que significa que Inês deseja casar com alguém de um nível social superior ao seu);
‑ carinhoso, tolerante, sensato e meigo (macio como a farinha – “discreto feito em farinha”);
‑ se tiver estas qualidades, não lhe interessa mais nada (que seja, eventualmente, feio, pobre, “sem feição”, ou que passe menos bem, isto é, que coma apenas “pão e cebola”).
        É a afirmação da ideia de ascensão social através do casamento.
 
 
Papel da mãe:
‑ conselheira e amiga: prudente, possui o sentido prático da vida:
. “Sempre tu has de bailar, / E sempre ele ha de tanger?” (vv. 407-408)® a vida não é só diversão;
. “Se não tiveres que comer, / O tanger ha de fartar.” ® é necessário trabalhar para ter sustento ma vida;
‑ premonitória em relação ao futuro da filha: “Como às vezes isso queima!” (v. 415).

            Ao reentrar em cena, mostra-se surpreendida por Pero Marques já se ter ido embora, ela que se tinha ausentado de casa para os deixar «à vontade».

            Por outro lado, alerta novamente a filha para a necessidade de se casar com alguém que lhe garanta segurança económica e uma vida estável, chamando-a à razão – a música não a alimentará.

 
 
Conceito de casamento
 
. Inês
            Para Inês, o casamento é uma forma de ascender socialmente e de diversão, algo que fica bem visível ao valorizar os dotes artísticos em detrimento da riqueza ou do conforto.
 
. Mãe
            O conceito de vida da Mãe é o oposto do da filha, ciente que está das responsabilidades que o matrimónio acarreta e da impossibilidade de se viver sem dinheiro. Esta personagem retoma as preocupações expostas na cena 2 da peça, alertando-a novamente para a necessidade de se casar com alguém que lhe garanta segurança económica.
            Por outro lado, censura a conceção de vida idealizada pela filha e dá-lhe conselhos com base em expressões de cariz popular e de caráter sentencioso (“Se não tiveres que comer / o tanger te há de fartar?”).
 
 
A Mãe enquanto personagem-tipo
 
            A Mãe, enquanto personagem-tipo, representa o grupo das mães que tem o mesmo tipo de preocupações relativamente às suas filhas, daí não ter nome na peça.
 
 
Conflito de gerações
 
            A relação entre a Mãe e Inês ao longo da peça configura o tradicional conflito de gerações entre pais e filhos. A jovem, pela idade, tem uma perspetiva imatura da vida, enquanto a Mãe, como pessoa mais velha, conhecedora e experiente, aconselha a filha a precaver-se quanto ao futuro: “Sempre tu hás de bailar / e sempre ele há de tanger? / Se não tiveres que comer / o tanger te há de fartar”.

Apresentação de Pero Marques - Análise das cenas 4 e 5 da Farsa de Inês Pereira

Caracterização das personagens
 
1.ª) Pero Marques
 
• Apresentação:

▪ Anda desorientado pelas ruas à procura da casa de Inês (confessa que não sabe onde mora, pois esqueceu-se; identifica-a através de uma parreira).

▪ Revela-se alegre e feliz por Inês o receber (“Folguei ora de vir cá”).

Objetivo da sua visita: saber a resposta de Inês à carta que lhe escreveu (“eu vos escrevi de lá / uma cartinha, senhora”).

▪ Desconhece a utilidade de uma cadeira e não sabe usá-la – nunca terá visto uma (“E que val aqui uma destas?”).

▪ Senta-se de costas para Inês e a Mãe (“Assentou-se com as costas pera elas e diz”).

Identificação:
- Nome: Pero Marques.
- Pai: Pero Marques, já falecido.
- Estatuto social:
. é rico; tem muito gado;
. herdou a maior...

 

Ver a restante análise aqui: {cena-do-Escudeiro}

segunda-feira, 14 de março de 2022

Análise da cena 7 da Farsa de Inês Pereira

             Após a saída de Pero Marques, Inês Pereira considera-o um covarde (note-se a comparação depreciativa com um judeu: “mais covarde que um judeu”; de facto, na época e nas peças de Gil Vicente, os judeus são muito mal considerados), dado que, encontrando-se sozinho com ela, preferiu ir-se embora em vez de a cortejar e seduzir.
            Qualquer outro homem teria agido de forma bem diferente, a coberto da «solidão» do encontro e da escuridão: “Se fora outro homem agora, / e me topara a tal hora / estando comigo às escuras, / dixera-me mil doçuras, [hipérbole] / ainda que mais nam fora.”
 

Análise da cena da Alcoviteira da Farsa de Inês Pereira

  Visita de Lianor Vaz
 
1. Caracterização de Lianor
 
▪ É uma alcoviteira / casamenteira: arranja casamentos.
 
▪ Apresenta-se como amiga e confidente de Inês Pereira.
 
▪ Na questão da apresentação de Pero Marques a Inês, mostra-se uma mulher persuasiva, sensata, experiente e prática.
 
▪ Entra em cena aflita, agitada e desorientada, «benzendo-se» e mostrando assim a sua aflição e esconjurando as más influências do clérigo que a tinha atacado.
 
▪ Foi atacada/assediada por um clérigo.
 
 
2. Episódio de Lianor Vaz
 
2.1. Resumo
 
            Lianor Vaz relata que, no caminho para a casa de Inês, um clérigo a atacou, sob o pretexto de saber se ela “era macho ou fêmea”.
            A Mãe confessa que...

Ver a restante análise aqui: [cena da Alcoviteira]

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Análise da cena 2 da Farsa de Inês Pereira

 
Continuação do quadro de costumes: apresentação de um regime matriarcal, representado por uma mãe de bom senso a quem cabe a educação da filha (a mãe tenta convencer Inês, utilizando, muitas vezes, ditados populares), com os maridos ausentes nas “partes d’além”.
 
 
Caracterização da Mãe
 
• Quando regressa a casa da missa, é irónica: demonstra que conhece bem a filha e que, portanto, já sabia que Inês, sendo preguiçosa, durante a sua ausência não estaria a trabalhar (vv. 37 a 40). Considera-a...

Continuação do post: [cena 2].
 

Análise da cena 1 da Farsa de Inês Pereira

Cantiga entoada por Inês
 
            Na cantiga que abre o monólogo inicial [de uma das duas versões da peça que chegaram até nós], Inês questiona-se sobre o que acontecerá quando não se vê a pessoa amada, se, vendo-a, só se sofre e morre de amor. Deste modo, ela exprime o sofrimento de amor associado à morte de amor, traços característicos da poesia trovadoresca, nomeadamente das cantigas de amor.
            Tendo em conta o estado de espírito que patenteia ao longo da primeira cena, a cantiga – cuja temática é o sentimento amoroso – indicia que Inês está pronta e desejosa de ter uma relação amorosa, o que, considerando o tom queixoso do seu monólogo, lhe parece impossível naquele momento.


Caracterização de Inês Pereira

• Inês canta e finge que trabalha num bordado, mas logo começa a reclamar do tédio que essa tarefa lhe causa e da vida que leva, sempre fechada em casa. Está cansada das tarefas domésticas; é preguiçosa – detesta a costura (vv. 3-4).

• Mostra-se aborrecida com a vida que leva (“enfadamento”), enraivecida, furiosa e revoltada por ter de realizar tarefas de que não gosta (“Renego deste lavrar” – v. 1; “e que raiva” – v. 6).

• Rejeita a vida que leva (“Renego deste lavrar” – v. 3).

• Revela-se compadecida, compassiva, piedosa em relação a si própria (“Coitada, assi hei de estar” – v. 10).

• Mostra-se determinada a encontrar maneira de se ver livre das suas tarefas e da vida que leva (“hei de buscar maneira / dalgum outro aviamento” – vv. 10-11).

• Sente-se prisioneira em casa da Mãe (“Coitada assi hei d’estar / encerrada nesta casa.” – vv. 12-13) e sem horizontes.

• Queixa-se de que nunca se diverte (“Todas folgam e eu não / todas vem e todas vão / onde querem senão eu” – vv. 25-27) e inveja as outras moças da sua idade, que são livres de sair de casa e de se divertir.

• Sente que a sua vida é vazia (“Esta vida é mais que morta” – v. 30).

• Em suma, Inês queixa-se pelo facto de:
- ter de desempenhar tarefas domésticas;
- estar sempre fechada em casa;
- não se divertir;
- não ter liberdade.


Linguagem

Comparações:

- “assim hei d’estar encerrada nesta casa / como panela sem asa / que está sempre num lugar” (vv. 12-15): a comparação estabelece-se entre a casa, considerada uma prisão, e uma panela sem asa, ou seja, a um objeto a que falta um elemento, a asa, para ter utilidade. Deste modo, Inês mostra que não está satisfeita com a vida que leva, considerando-a inútil.

- “Sam eu coruja ou corujo, / ou sam algum caramujo”: a comparação com animais notívagos e dependentes de outros seres, presos ou que vivem dentro de um casulo, como entende ser o seu caso (dependente da Mãe), privada das saídas de casa durante o dia e vivendo sob a alçada da progenitora, indiciam o seu estado emocional.

Enumeração: “Oh Jesu que enfadamento, / e que raiva, e que tormento, / que cegueira, e que canseira” (vv. 7-9) – traduz a indignação que sente pela vida a que está sujeita e de que não gosta.

Interrogações retóricas – destacam a insatisfação e a revolta de Inês relativamente à vida que tem:

- questiona a inutilidade da sua vida: “Coitada, assi hei de estar / encerrada nesta casa / como panela sem asa, / que sempre está num lugar?” (vv. 10-13);

- lamenta-se por considerar a sua vida um desperdício: “E assi hão de ser logrados, / dous dias amargurados, / que eu possa durar viva?” (vv. 14-16);

- questiona-se sobre a sua condição: “Hii! E que pecado é o meu, / ou que dor de coração?” (vv. 26-27);

- enfatiza o seu lamento, o seu desespero e a sua revolta por estar fechada em casa: “Sam eu coruja ou corujo, / ou sam algum caramujo / que não sai senão à porta” (vv. 29-31).
Anáfora (vv. 25-26).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Texto dramático: finalidade, características e estrutura

 1. Finalidade
 
            O texto dramático tradicionalmente não tem narrador e o desenvolvimento da ação processa-se através das falas ou réplicas das personagens, predominando o discurso direto.
            O texto dramático tem como finalidade a representação, momento em que se torna verdadeiramente completo.


2. Intervenientes
 
Atores: representam o papel das várias personagens, emprestando-lhes voz e corpo.
Encenador: é o responsável por todos os aspetos respeitantes à representação teatral (atribuir os papéis aos atores, dirigir os ensaios, etc.).
Cenógrafo: trata dos cenários.
Figurinista: desenha os figurinos, isto é, o guarda-roupa usado pelas personagens.
Sonoplasta: é o responsável pelos efeitos sonoros durante a representação.
Luminotécnico: assegura os efeitos luminosos necessários ao espetáculo.


3. Características / Categorias
 
            O texto dramático pode estar escrito em prosa (Frei Luís de Sousa) ou em verso (Farsa de Inês Pereira). Em qualquer dos casos, apresenta características específicas.
 





            As indicações cénicas ou didascálias compreendem um conjunto de informações que contribuem decisivamente para que a leitura e/ou representação da peça seja o mais semelhante possível ao modo como o dramaturgo a idealizou.
 

segunda-feira, 22 de abril de 2019

O cómico de situação na 'Farsa de Inês Pereira'

Cómico: os objetivos do cómico são provocar o riso, através do qual se castigam os vícios («ridendo castigat mores») e expor o contraste entre personagens e situações – exs.: Pêro Marques vs. Escudeiro; Lianor Vaz vs. Judeus casamenteiros.

Cómico de situação:

* Pêro Marques senta-se na cadeira ao contrário e de costas para a Mãe e Inês;

* a fala dos Judeus, que, na sua sofreguidão e calculismo materialista para casarem Inês com Brás da Mata, se interrompem, repetem e atropelam constantemente;

* o episódio final, em que Pêro Marques, descalço, transporta Inês e duas lousas às costas e, porque o caminho é longo e a viagem monótona, canta, a pedido de Inês, uma cantiga que o apelida de «marido cuco».


terça-feira, 2 de abril de 2019

A representação do quotidiano na 'Farsa de Inês Pereira'

Na Farsa de Inês Pereira, encontramos diversos aspectos que espelham o modo de vida quotidiano da sociedade da época (final da Idade Média, na transição para o Renascimento).
Dentre eles, destacam-se os seguintes:
     a prática religiosa (ida à missa – a peça inicia-se com o regresso da missa por parte da Mãe);
     o hábito de recorrer a casamenteiros (Lianor Vaz e os Judeus);
     a falta de liberdade da rapariga solteira, confinada à casa da mãe e a viver sob o jugo desta (é o caso de Inês, que, no início da farsa, demonstra toda a sua revolta por estar confinada à casa materna, subjugada à autoridade da mãe e às tarefas domésticas que lhe são atribuídas – bordar, por exemplo);
     a ocupação da mulher solteira em tarefas domésticas (bordar, coser);
     o conflito de gerações (Inês e a Mãe), de interesses e conceções de vida (Inês versus a Mãe e Lianor Vaz);
     o casamento como meio de sobrevivência e de fuga à submissão da mãe;
     a tradição da cerimónia do casamento, seguida de banquete;
     a submissão ao marido da mulher casada e o seu «aprisionamento» em casa (o primeiro casamento de Inês, com o Escudeiro);
     a inércia da nova burguesia que nada fazia para adquirir mais cultura (o Escudeiro);
     a decadência da nobreza que procurava enriquecer através do casamento e buscava o prestígio perdido na luta contra os mouros (o Escudeiro);
     a devassidão do clero (o ataque de que a Mãe e Lianor Vaz foram vítimas por parte de clérigos; o Ermitão apaixonado e que seduz Inês); a corrupção moral de mulheres que se deixavam seduzir por elementos do clero (as cenas finais entre Inês e o Ermitão);
     o adultério (a traição de Inês com o Ermitão).


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