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terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Análise das Cenas 7 e 8 do Ato III de Frei Luís de Sousa


● D. Madalena, acompanhada de Frei Jorge, deseja entrar no compartimento, pois ouviu vozes conversando dentro e, supondo que uma delas é a de Manuel de Sousa, deseja falar com ele. A sua entrada em cena mostra-nos uma mulher «desgrenhada e fora de si, procurando com os olhos todos os recantos da casa», sinal de que quer desesperadamente encontrar Manuel de Sousa e julga que a estão a impedir. D. Madalena “vive” estas duas cenas desesperada e completamente dominada pelos sentimentos, ao gosto romântico, sem controlo sobre as suas emoções, como se pode comprovar através da didascália “(Entrando desgrenhada e fora de si, procurando, com os olhos, todos os recantos da casa)”.


● D. Madalena deseja falar com ele por um motivo claro: tentar remediar a situação, impedir a tomada de hábito. Para tal, argumenta que talvez estejam a agir de forma precipitada, ao acreditarem nas palavras de “um romeiro, um vagabundo… um homem enfim que ninguém conhece”, mas Manuel de Sousa, tratando-a novamente pelo primeiro nome, contraria-a, jurando-lhe que o amor de ambos é impossível. Ele mostra-se decidido a aceitar o seu destino, chamando a atenção de D. Madalena, na cena 8, para a impossibilidade de o mudarem.


● Esta postura diferente de Manuel e Madalena é facilmente justificável: ele conhece toda a verdade, ou seja, que o Romeiro é D. João de Portugal, ao contrário dela, que ainda ignora este facto, e vê a entrada no convento como a única solução digna para a situação. E critica mesmo a esposa e, num tom ríspido e decidido, despede-se dela.


● O tom inicial com que Manuel de Sousa se dirige à esposa é ríspido e frio, tratando-a, de forma formal, por “senhora”, o que a deixa magoada: “Oh, que ar, que tom, que modo esse com que me falas.”. Comovido (“enternecendo-se”), Manuel trata-a então pelo nome próprio, mas logo cai em si e retoma a formalidade e rispidez iniciais.
De facto, ele dirige-se à esposa usando diferentes formas de tratamento:
. formal (“senhora”): atitude de distanciamento;

. familiar (“querida”): atitude de proximidade, de intimidade.


● Esta oscilação das formas de tratamento traduz o contraste entre o amor que Manuel de Sousa sente por D. Madalena (que lhe corresponde) e a dor de não o poder cultivar e marca a despedida emotiva entre ambos.


● Na parte final da cena 7, Telmo procura falar à parte com Frei Jorge (“Tenho que vos dizer, ouvi.”) e os dois “Conversam ambos à parte.”. Embora não saibamos as palavras que trocaram entre si, é fácil deduzir que o velho aio estará a dar seguimento à solicitação de D. João, tentando convencer o frade de que o Romeiro é um impostor. A finalidade é evitar a destruição da família, nomeadamente de Maria.


● Ao constatar que a sua tentativa fracassou, procura fazer o mesmo junto de D. Madalena, mas sem sucesso, visto que Frei Jorge o impede de falar com ela: “Telmo sai com repugnância, e rodeando para ver se chega ao pé de Madalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um sinal imperioso; ele recua, e finalmente se retira pelo fundo.”.


● Por que razão age Frei Jorge assim?
Contrariamente a D. Madalena, o frade sabe que o Romeiro é D. João de Portugal, por isso, enquanto membro do clero, assume a defesa da verdade dos factos, impedindo Telmo de mentir para salvar Maria. Ele não pode aceitar uma mensagem que iria contra as leis de Deus. Na sua perspetiva de religioso, a única solução para a situação será o ingresso na vida monástica. Pelo contrário, se tivesse aceitado a proposta de D. João via Telmo, estaria a ser conivente com uma relação adúltera e bígama. Estando D. João vivo, ali ou na Palestina, o segundo casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa era nulo. Eles viviam em pecado e Maria era uma filha ilegítima. Esta situação, agora que a verdade é conhecida, não pode continuar.


● A cena 8, na sequência da anterior, confirma as atitudes contrastantes de Manuel e de D. Madalena:
- Madalena: crê que é possível recuperar a sua família e que a mensagem do Romeiro não passou de um embuste (cena 7);
- Manuel: não vê salvação e, decidido, enfrenta a vida religiosa.


● As didascálias ajudam a evidenciar o estado de espírito e a postura de Manuel de Sousa [“(Caindo em si e gravemente)”, “(Tomando os hábitos de cima do banco.)”, “(Vai para a abraçar e recua)”, “(Foge precipitadamente pela porta da esquerda)”]: racional e determinado, pega nos hábitos que vai usar juntamente com D. Madalena, recusa abraçá-la e sai rapidamente para evitar mais sofrimento.


● A fala final de Manuel de Sousa da cena 8 está prenhe de expressões que associam a decisão tomada a uma morte simbólica: “Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca), e a sepultura de um claustro.”. A referência aos condes de Vimioso é significativa neste contexto.

Análise da Cena 6 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. João de Portugal sai de cena, numa atitude de grande dignidade, depois de confirmar que D. Madalena já não o ama.


● A cena abre com novo equívoco: D. João, ao ouvir D. Madalena chamar por seu marido (“Esposo, esposo!”) e pensando que a esposa já sabe quem ele realmente é, julga por instantes que ela se refere a si e sente-se tentado a abrir-lhe a porta, como ela pedia. Por momentos, a ilusão do amor toma conta de D. João e o que solicitara a Telmo parecer ser esquecido (“É ela que me chama! Santo Deus! Madalena que chama por mim…”; “Que encanto, que sedução! Como lhe hei de resistir?!”), mas rapidamente toma consciência que a esposa se referia a Manuel de Sousa.
Seja como for, é mais do que óbvio que D. João ama a esposa e, mesmo que por momentos, estaria disposto a abandonar todas as resoluções se ela lhe correspondesse.


● Quando se apercebe do equívoco (quando ela nomeia “Manuel”, chamando-lhe “meu amor”), D. João fica furioso e dirige-se para a porta, para se vingar de D. Madalena, provocando-lhe um choque profundo (“Investe para a porta com ímpeto; mas para de repente.”). No entanto, reconsidera e mantém a decisão que anunciara a Telmo, saindo violentamente da cena (sinal da sua deceção), o que confirma que se trata de um homem digno, íntegro, generoso, abnegado e virtuoso. Esta saída intempestiva da sala mostra também o quão solitário é e frustrado se sente: “Ah! E eu tão cego que já tomava para mim!...”.


● Tendo em conta a sua postura, o seu comportamento e atitudes desde que entrou em cena, podemos concluir que, quanto à caracterização, D. João de Portugal:
» simboliza as virtudes do cavaleiro cristão: amor ao rei e à pátria, combate contra os inimigos da fé, pelos quais expõe a sua vida, sujeitando-se a maus-tratos, privações, distância, ausência de notícias e saudade da esposa durante mais de 2º anos;
» revela grande generosidade e grandeza de alma e caráter ao querer preservar a honra de D. Madalena, optando, não obstante a sua dor, frustração e mágoa pela perda da esposa, passar por impostor, mentiroso, apagando-se voluntariamente, para tentar remediar o problema que o ser regresso gerou e preservar a família da destruição.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Análise da Cena 5 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.


● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».


● O que permite o reconhecimento de D. João de Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz… esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.


● Entre as duas personagens existe uma relação paternal, de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...». De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo, gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado lhe fala de Maria.


● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida, parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho criado.


● No final, D. João de Portugal reconhece o quão imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.». E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».


● Note-se que Telmo tinha razão com a sua superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D. Madalena e a segunda para o velho aio.


● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».


● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.


● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena. Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra que é uma personagem exemplar.


● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio, visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».


● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes, que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.


● Esta cena confirma o que a anterior deixava adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que, afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça, Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D. Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos seus princípios por amor a Maria.


A figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa

De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):

A. D. João de Portugal é uma entidade dupla:

1 – É uma entidade abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses da tragédia grega).

2 – É uma entidade concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a tomada de hábito de Madalena.

B. D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático e vivo da palavra:

1 – Não é uma personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções, sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas (I, 1).

2 – Não é uma personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na eficácia das suas tentativas de solução da crise?

C. D. João de Portugal é uma personagem virtual

D. João é a presença simbólica de uma «força trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas progressivamente tensas até ao desfecho.

Análise da Cena 4 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Nesta cena, Telmo, num monólogo em forma de solilóquio, expressa em voz alta as suas preocupações, as suas dúvidas, em suma, o seu dilema.


Elementos da cena

Segundo Carlos Reis (Frei Luís de Sousa, Leituras Orientadas, pp. 80-81, Porto Editora), neste monólogo «estão concentrados dois sentidos, que dizem respeito a um drama interior vivido por Telmo:
. O sentido da fidelidade ao antigo amo, uma fidelidade que agora está em crise.
. O sentido da culpa pelo facto de a fidelidade ao passado ter sido perturbada: o afeto sentido por Maria foi mais forte.
Para além disso, as palavras de Telmo confirmam os presságios e as ameaças: ou seja: quem por várias vezes, no primeiro ato (sobretudo na cena 2), expressou a crença de que o passado não estava morto, confirma agora, pela chegada do romeiro, que os presságios estavam certos. Convém lembrar; neste momento Telmo ainda não sabe que o romeiro é o próprio D. João de Portugal, seu antigo amo.».


Conflito interior de Telmo

Telmo Pais sempre desejou o regresso de D. João de Portugal e sempre acreditou que estaria vivo e iria, efetivamente, regressar. Porém, agora que sabe que está vivo é confrontado com um dilema terrível: o amor a Maria versus o amor a D. João.
No momento em que o sonho alimentado durante 21 anos (a vida e o regresso de D. João, que ele criou como um filho) está prestes a concretizar-se, Telmo não se sente feliz, pois apercebe-se de que vive um conflito insanável, já que tem dois filhos, mas, para um existir, o outro tem de desaparecer: «Virou-se-me a alma toda com isto: não sou já o mesmo homem.». Além disso, conclui que o amor por Maria superou («apagou») o que dedicava ao antigo amo, por isso fica amargurado com a possibilidade de ela morrer em resultado dos recentes acontecimentos. A jovem é um anjo que não merece tanto sofrimento. E tudo isto o deixa dividido, confuso e aterrado.
Com efeito, Telmo já não é o mesmo homem, dado que já não tem a certeza de desejar o regresso do primeiro amo e dado que o amor por este foi suplantado pelo amor por Maria.
Na parte da final da cena, Telmo oferece a sua vida em sacrifício em troca da de Maria, pois pressente a morte próxima desta: «Levai o velho que já não presta para nada, levai-o, por quem sois!».

Estilisticamente, o conflito de Telmo é traduzido pelo recurso às reticências e frases interrompidas, as quais traduzem fielmente a dificuldade que a personagem tem em concluir os seus pensamentos, que se cruzam, atropelam e precipitam. Por outro lado, as exclamações refletem a sua emotividade, enquanto as interrogações traduzem as suas dúvidas.
Relativamente à adjetivação, possuem uma carga profundamente negativa (“aterrado”, “confuso”, “terrível”), traduzindo o estado de espírito de Telmo e a sua lancinante divisão interior. Nota também para determinadas expressões que exprimem, igualmente, o conflito, a dor e a angústia da personagem: «Virou-se-me a alma toda»; «Perdoe-me Deus se é pecado», etc.
O uso do diminutivo “inocentinho” reflete o carinho e o amor de Telmo por Maria, mas, por outro lado, evidencia a fragilidade desta.


Personagens e linguagem dramática

Citando novamente Carlos Reis (op. cit.), «Embora esteja só em cena, Telmo parece acompanhado por duas figuras ausentes:
. Maria, esta “última filha” (II. 10-11), “aquele anjo” (ll. 12-13) que ocupou o lugar que antes pertencia a D. João. Maria é filha, evidentemente, apenas no sentido afetivo.
. D. João de Portugal, o “filho que eu criei nestes braços” (l. 6), assim considerado no mesmo sentido afetivo.
Estas duas personagens são a razão do dilema de Telmo, como se nele existissem duas personalidades em conflito: uma que está ligada ao passado, outra que está situada no presente.
Pela intensidade daquele dilema (que não atinge nenhuma outra personagem do Frei Luís de Sousa), Telmo já foi considerado a personagem principal da ação. O seu comportamento, nesta cena, apresenta, além disso, uma forte teatralidade, criada por recursos de linguagem dramática:
. Toda a fala de Telmo revela as emoções que ele expressa através de exclamações, reticências e interrogações.
. Junta-se a isto a linguagem do corpo, quando Telmo se ajoelha.
. Em certo momento, a personagem dirige-se a Deus e transforma o monólogo em diálogo com essa divindade invisível.
A cena termina com uma situação tipicamente teatral. Telmo não vê que o romeiro entra em cena; ao falar no ser “inocentinho que eu criei para Vós, Senhor” (ll. 18-19), ele é entendido pelo romeiro como estando a referir-se a D. João, É isso que se percebe logo na abertura da cena seguinte: “Não pedias tu por teu desgraçado amo, pelo filho que criaste?”, pergunta o romeiro a Telmo. A resposta confirma o engano e deixa o romeiro/D. João de Portugal consciente de que todos o abandonaram.».

Didascália inicial do ato III de Frei Luís de Sousa


NOTAS:

1.ª) Se compararmos o espaço onde decorrem os três atos, constatamos que há um afunilamento progressivo desse mesmo espaço. Com efeito, no ato I, a câmara onde a ação decorre tem duas grandes janelas para o exterior e duas portas desimpedidas. Já o segundo ato decorre num espaço fechados, sem janelas e com portas cobertas de reposteiros, ocupando lugar de destaque uma tribuna que comunica com a Capela da Senhora da Piedade, da igreja de São Paulo dos Domínicos. Por último, o ato III decorre num espaço ainda mais fechado (o piso inferior do palácio de D. João), cuja única porta de comunicação para o exterior dá para a tal capela.

2.ª) O espaço em que decorre o último ato é um casarão sombrio, decorado apenas com objetos litúrgicos, associados às cerimónias religiosas, em especial à Semana Santa, e com ligação direta à capela (onde decorrerá a tomada de hábito e se concretizará a morte de Maria), configurando um afunilamento/concentração do espaço ao longo da peça.

3.ª) O espaço descrito simboliza a clausura e o aprisionamento das personagens; por outro lado, trata-se de um local que sugere desconforto, frieza, tristeza.

4.ª) A nota sobre o tempo coloca a ação a decorrer quando é alta noite, o que, à semelhança do espaço, permite concluir pelo afunilamento desta categoria do texto dramático, o qual é intencional. Os antecedentes da ação, que abarcam um longo período de 21 anos, são apenas evocados nas falas das personagens, ocupando a intriga propriamente dita apenas uma semana. O segundo e o terceiro atos sucedem num dia, o que confirma que estamos perante uma forte concentração temporal.tt

5.ª) Por outro lado, simbolicamente, a noite está associada à morte, o que se pode relacionar com o facto de todos os elementos da família morrerem no final da peça: Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para a vida, isto é, morrem psicologicamente, e Maria morre fisicamente. No entanto, se considerarmos que a alta noite antecede a manhã de um novo dia, a noite alta representa simbolicamente a possibilidade de redenção dos pecados através do renascimento e da purificação proporcionados pela religião, mais concretamente pela tomada de hábito (estaríamos, assim, na presença do processo de morte seguida de ressurreição, ideia prenunciada pelos elementos do cenário que remetem para a Semana Santa).

6.ª) A luminosidade do ambiente é escassa. Mergulhado na penumbra, o cenário, apenas iluminado por «tocheiras», «tocha acesa e já gasta», «vela acesa», propicia uma introspecção profunda onde tudo indicia a “entrada” para a vida religiosa, para a Ordem dos Dominicanos, ideia acentuada pela presença das «alfaias e guisamentos de igreja» e pelo hábito.

7.ª) A cruz negra com o letreiro, aliadas aos restantes elementos ligados à vida religiosa, simboliza que alguém passará por sofrimento, sacrifício, martírio e morte para a vida mundana.

8.ª) O jogo penumbra / luz e o ambiente secreto, intimista, de intenso recolhimento possibilitam o encontro do «eu» com os mais recônditos lugares do seu espaço interior.

9.ª) A obra não obedece à unidade de espaço, pois decorre em lugares diferentes, embora todos os acontecimentos decorram em Almada.

10.ª) O espaço ganha uma dimensão trágica, pois fecha-se gradualmente, não possibilitando a saída das personagens para a dimensão física da vida.
A progressiva escassez de elementos decorativos e de luminosidade adensam a atmosfera trágica que culminará na catástrofe.

11.ª) O espaço, despojado (não há elementos de decoração, os adereços e o mobiliário são reduzidos ao mínimo), tumular, prenuncia o fim das inquietações terrestres e a entrega à espiritualidade. Os bens e os valores materiais e mundanos são abandonados. Predominam os adereços necessários à realização de cerimónias religiosas: tocheiras, cruzes, círios e outras alfaias e guisamentos de igreja, etc.). Todos estes elementos se adequam ao desenrolar do terceiro ato, dado que Manuel de Sousa e D. Madalena vão professar como forma de expiar a sua culpa.

12.ª) O facto de a ação decorrer de madrugada, de acordo com os princípios românticos, contribui para adensar a atmosfera funesta.

13.ª) Não há qualquer ligação ao exterior. As saídas dão unicamente para a capela e para os baixos do palácio de D. João.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Análise da Cena 1 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Esta primeira cena do terceiro ato liga-se à última do anterior. Essa ligação é estabelecida pela fala inicial de Manuel de Sousa: “Oh minha filha, minha filha!”. Ora, o ato precedente termina com D. Madalena a sair espavorida da sala, gritando por Maria, a principal vítima da desgraça que se abateu sobre a família após a certeza de que D. João de Portugal está vivo.


Assunto

Nesta cena, apresentam-se as decisões tomadas após a descoberta de que D. João de Portugal está vivo (e regressou, embora deste último facto tenham conhecimento unicamente Frei Jorge, Manuel de Sousa e o arcebispo).


Caracterização de Manuel de Sousa Coutinho

▪ Manuel de Sousa sente-se extremamente infeliz e conturbado por causa da ilegitimidade da filha, pela qual se sente responsável. Mais concretamente, a sua preocupação centra-se nos efeitos que os novos desenvolvimentos terão na frágil saúde de Maria e com as consequências sociais da sua ilegitimidade. Ele está convicto que a filha acabará por morrer perante a «afronta» que lhe é feita: a doença vai-a minando e debilitando, o que faz com que a sua resistência aos acontecimentos será muito pouca.

▪ Manuel de Sousa considera que o seu casamento com D. Madalena foi um erro e não um crime (faz tal afirmação, pois casou-se sem uma prova inequívoca da morte de D. João de Portugal, não obstante a esposa o ter procurado durante 7 anos por todo o lado). Porém, não considera o seu casamento um crime, visto que as suas ações foram praticadas sem que tivesse consciência de que estava a incorrer em adultério e bigamia. Dito de outra forma, um crime deve ser punido, enquanto um erro, ainda por cima involuntário, pode ser cometido sem se ter a consciência de que se está a errar, pelo que merecerá uma sanção menos pesada.

▪ Pode ler-se aqui uma crítica velada à sociedade da época, pois condena uma família à destruição, por causa do desaparecimento de alguém ocorrido há mais de vinte anos.

▪ É um homem dominado por um profundo sentimento de culpa: sente-se culpado pela ilegitimidade da filha, pelo mal causado a D. João e pela vergonha com que cobriu o nome da família.

▪ Considera-se mais infeliz do que o Romeiro, pois, além de tudo, carrega a certeza de ser o verdadeiro culpado pela desgraça que recai sobre todos. De facto, Manuel de Sousa considera ter sido ele (1) o causador da destruição de D. João; (2) o causador da sua desonra, da da esposa e da filha; (3) o culpado de toda a desgraça, mas ser a filha inocente a grande vítima da situação.

▪ A situação de Maria leva-o a, por um lado, desejar que ela viva (“Peço-te vida, meu Deus, peço-te vida, vida… vida para ela,”), pois é uma vítima inocente (é o amor de pai a falar), e, por outro, a pedir a sua morte (“meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses já”), já que tem consciência das consequências que se irão abater sobre a filha, que será marginalizada pela sociedade (“vai cair toda essa desonra, toda a ignomínia, todo o opróbrio.”). É um pai a sangrar pela desonra que se abateu sobre a filha.

▪ Considera D. Madalena uma «infeliz» e «desgraçada» por ter sido arrastada por ele para a vergonha e para a infâmia.

▪ As atitudes corporais de Manuel de Sousa (os atos de se levantar e de apertar a mão do irmão enquanto fala) demonstram o seu nervosismo e a sua aflição.

▪ O seu discurso reflete a emotividade que o caracteriza ao longo da cena: frases curtas (“Oh, minha filha, minha filha!”), alternando com frases longas de construção erudita (terceira fala de Manuel de Sousa); apóstrofes (“Olha Jorge”); hipérboles (“bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”; “A lançar sangue?... Se ela deitou o do coração”); metáforas (“para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo”); frases de tipo exclamativo e interrogativo. Todos estes recursos conferem ao discurso uma grande intensidade dramática.

▪ Manuel de Sousa está prestes a ingressar no convento e a tornar-se Frei Luís de Sousa.

▪ Note-se o contraste entre o Manuel de Sousa Coutinho que encontramos nos atos I e II e aquele que nos é dado a conhecer nesta cena. De facto, nos atos anteriores, a personagem surgiu em palco como um homem sensato, racional, determinado, pragmático e corajoso, porém, agora, após a chegada do Romeiro e o agravamento do estado da filha, revela-se uma figura dilacerada, profundamente infeliz, desesperado, quer pela doença da filha, quer pela desgraça que está a abater-se sobre a família, quer por se sentir o maior culpado pela infelicidade dos outros.

▪ Nesta mesma cena, é possível observar que a personagem oscila entre a emotividade e a racionalidade. A primeira, bem ao gosto romântico, manifesta-se essencialmente sempre que se refere a Maria, enquanto a racionalidade que o caracterizava anteriormente aflora quando, após analisar a situação em conjunto com Frei Jorge, assume a tomada de hábito como a solução mais adequada para o problema.


Caracterização de Frei Jorge

▪ A principal função de Frei Jorge é ser o confidente e conselheiro do irmão, informando-o (sobre o destino da mulher e da filha), orientando-o e consolando-o, após as terríveis notícias.

▪ Quando Manuel de Sousa se diz o homem mais infeliz na Terra, Frei Jorge recorda-lhe a situação de D. João de Portugal, que perdeu tudo quanto tinha.

▪ Procura consolar o irmão, dizendo-lhe que encontrará a paz e a redenção na religião, mas não deixa de o chamar à razão de forma inflexível, impedindo-se de se deixar cegar pelo seu sofrimento e desespero.

▪ A sua fé e a sua lucidez orientam as ações de Manuel de Sousa, que está incapaz de decidir racionalmente.

▪ Procura manter-se tranquilo e sensato, não se deixando dominar pelos acontecimentos funestos. Ele aceita-os como resultado da vontade divina, que não pode ser contestada.

▪ É um homem prático perante as circunstâncias, por isso prepara a entrada de Manuel de Sousa e de D. Madalena no convento, que considera ser a única possibilidade para o casal remediar a situação.


Informações sobre o passado recente

O diálogo que ocorre nesta cena entre os dois irmãos veicula um conjunto de informações sobre o que se passou no curto espaço de tempo que mediou entre o final do ato anterior e o início deste:
- D. Madalena e Manuel de Sousa decidiram entrar na vida religiosa como solução para o problema;
- o estado de saúde agravou-se desde a chegada a Lisboa;
- somente o arcebispo, Manuel de Sousa e Frei Jorge conhecem a identidade do Romeiro, que chegará ao conhecimento das outras personagens por fases (“Demais, o segredo de seu nome verdadeiro está entre mim e ti, além do arcebispo.”);
- Maria não sabe dos últimos acontecimentos em torno de D. João de Portugal;
- Telmo irá encontrar-se com o Romeiro, a pedido deste.


Linguagem e recursos estilísticos

Metáforas e hipérboles: de caráter religioso, traduzem o sofrimento das personagens e apontam para a ideia de morte:
. “bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”;
. “cobri-lhas de um véu de infâmia que nem a morte há de levantar, porque lhe fica perpétuo e para sempre lançado sobre o túmulo a cobrir-lhe a memória de sombras… de manchas que se não lavam!”;
. “Já que te não pode apartar o cálix dos beiços”;
. “cubra-me o escárnio do mundo, desonre-me o opróbrio dos homens, tape-me a sepultura uma loisa de ignomínia, um epitáfio que fique a bradar por essas eras desonra e infâmia sobre mim”.


Características românticas:
. forma do texto: escrito em prosa;
. religiosidade: referências ao cristianismo e ao culto religioso – preparação da tomada de hábito;
. o tema da morte, encarada como a melhor solução para os conflitos;
. o individualismo: o confronto entre o indivíduo e a sociedade.


Características trágicas

▪ A hybris de Manuel de Sousa, que chega a desejar a morte da filha face à sua ilegitimidade.

▪ Os indícios de tragédia: quando Manuel de Sousa a designa por «anjo» , prenuncia a sua morte, o seu abandono do mundo terreno, visto que os anjos não pertencem ao mundo físico terreno.

Análise da Cena 2 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Telmo entra em cena, juntando-se a Manuel de Sousa e Frei Jorge, trazendo notícias sobre Maria:
- Maria acordou e sente-se melhor;
- apesar de abatida, fraca e com voz lenta, o seu olhar está mais sereno e animado;
- perguntou pelo pai e pelo tio, mas não se referiu à mãe.
A este propósito, há que notar a hesitação de Telmo quando refere por quem Maria perguntou: «Perguntou por vós… ambos.», pois não quer dizer que ela nada questionou acerca da mãe. Esta postura de Maria talvez signifique que responsabiliza a mãe pelo que está a acontecer, que a culpa pela tragédias iminente.

Quando entra em cena, Telmo diz simplesmente «Acordou.», não sentindo a necessidade de identificar a quem se refere. Este comportamento justifica-se por ser desnecessária essa identificação, dado que Maria está presente no pensamento e na preocupação de todos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A tragédia clássica: origens e características

Introdução

A tragédia é uma forma dramática ou peça de teatro, em geral solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, baseada no percurso e no destino do protagonista ou herói, que termina, quase sempre, envolvido num acontecimento funesto. Nela se expressa o conflito entre a vontade humana e os desígnios inelutáveis do destino, nela se geram paixões contraditórias entre o indivíduo e o coletivo ou o transcendente. Em sentido lato, pode abranger qualquer obra ou situação marcada por acontecimentos trágicos, ou seja, em que se verifique algo de terrível e que inspire comoção.
A palavra tragédia vem do grego trágos + odé, que significa canto dos bodes ou canto para o bode. Crê-se que resultou de os atores se vestirem com pele de cabra ou de, primitivamente, na Grécia, nas festas em louvor a Dionísio (o deus grego do vinho e da alegria, tal como Baco entre os Romanos), se sacrificar um bode (tragos) ao som de canções (odé) executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar sozinho) acompanhado por um coro.
A origem da tragédia como teatro parece ter acontecido em 534 a.C., quando um corifeu chamado Téspis decidiu encarnar a personagem Dionísio, dramatizando os ditirambos (composições líricas corais) num diálogo com os restantes elementos do coro, que passou a ter um papel de espectador privilegiado ao interpretar os sentimentos dos outros espectadores.
Se os cantos e as danças, entusiastas, com sátiras a alguns aspetos da vida permitiram o aparecimento da comédia, as reflexões mais sérias e tristes que mostravam os aspetos negativos da existência, muitas vezes pela crença num destino funesto, provocaram o aparecimento da tragédia.


Estrutura da tragédia clássica grega

As partes principais da tragédia clássica grega são o Prólogo (introdução e preparação para a entrada do coro), o Párodo (entrada do coro), Episódios (cenas no palco, entre os cantos corais, com os atos que constituíam a intriga), Estásimos (trechos líricos executados pelo coro), o Epílogo (desenlace ou desfecho). Isto significa que era constituída por 5 atos: um introdutório (o prólogo), três centrais (no último, situa-se o clímax ou ponto culminante da ação, com a anagnórise ou reconhecimento) e um conclusivo, o epílogo, no qual se situa a catástrofe.
A tragédia clássica latina (influenciada pela comédia nova grega) apresentava o Prólogo (exposição inicial), os Episódios (os atos que constituíam a intriga) e o Êxodo (desenlace ou desfecho).


Elementos intrínsecos característicos da tragédia

Na tragédia, percebe-se o seguinte percurso: após a hybris (desafio do protagonista aos deuses, às autoridades ou ao destino; o sentimento de orgulho desmedida leva o herói a perpetrar uma violação à ordem estabelecida, através de uma ação que constitui o tal desafio aos poderes e ordens divinos), acontece o páthos (sofrimento intenso como consequência do desafio e capaz de despertar a compaixão do espectador) e surge a agnórise ou anagnórise (reconhecimento de um facto inesperado ou o reconhecimento de uma personagem), que desencadeia o clímax (etimologicamente, “escada” ou “gradação”, é o crescendo trágico até à peripécia, ou seja, à mudança repentina de estado nas personagens, muitas vezes como resultado da agnórise; é o ponto máximo da tensão, a partir do qual se define o desfecho; o ponto culminante é a acmê); daqui resulta a cathársis (a catarse é a reflexão purificadora, a purgação ou purificação dos sentimentos dos espectadores, que se identificam com os conflitos representados) e a catástrofe ou catástase (desfecho trágico). Algures ocorre a peripeteia ou peripécia (a súbita mudança de acontecimentos que altera completamente o rumo dos acontecimentos) e o ágon [o conflito que decorre da hybris desencadeada pelo(s) protagonista(s)].
Outros elementos sempre presentes são a némesis (vingança dos deuses, ou do destino, perante o desafio arrogante do homem), o destino (moira), a anankê ou fatum (necessidade como fatalidade; o destino, a força inexorável que determina o rumo da ação e à qual têm de se submeter os seres humanos, os heróis e os próprios deuses), a phóbos (sentimento de terror, de medo) e a éleos (sentimento de piedade).
Há ainda a considerar os traços seguintes:
▪ o homem subordina-se a um destino inelutável, sendo um mero instrumento dele e joguete dos deuses;
▪ o protagonista é um homem justo que, sem culpa, cai da felicidade na desgraça;
▪ o protagonista atua movido por forças superiores (o destino, os deuses);
▪ ao longo dos atos, a ação desenvolve-se num crescendo de intensidade que torna a catástrofe inevitável;
▪ os protagonistas são geralmente três, acompanhados respetivamente de outros três secundários;
▪ a personagem coletiva – o coro –, inverosímil de um ponto de vista realista, apresenta como função o ato de comentar ou anunciar o desenrolar dos acontecimentos sem interferir neles (estabelece uma relação entre o autor e o público);
▪ a lei das três unidades: unidade de espaço (a ação decorre no mesmo cenário e os acontecimentos passam-se todos no mesmo lugar), de tempo (a ação ocorre num período de 24 horas, mostrando que a ação do destino é imperativa e fulminante) e de ação (a peça desenrola-se em torno de um só problema central, não se desviando para problemas secundários);
▪ a linguagem da tragédia é o verso.

Ésquilo é o primeiro poeta trágico clássico, a que se lhe seguiram Sófocles e Eurípides, que acrescentaram outros atores ao corifeu, podendo cada um desempenhar vários papéis com recurso a máscaras. Entre os romanos, foram importantes dramaturgos Lívio Andrónico e Séneca; na época clássica, merecem referência Shakespeare, Calderón de la Barca, Corneille, Racine ou o português António Ferreira, com A Castro; na época moderna, os grandes representantes da tragédia são Ibsen, Strindberg e Tchekhov.
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, apesar de ser um drama romântico, pode aproximar-se da tragédia clássica na medida em que é possível encontrar quase todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objetiva.
Tal como foi teorizada e cultivada pela Antiguidade greco-latina e pela literatura clássica, a tragédia, com o seu conjunto de convenções rígidas de género, com a intervenção de personagens heroicas em conflito com deuses vingadores, subordinadas a um fatum inelutável, é um género extinto desde o Romantismo (cf. STEINER, George – La Mort de La Tragédie, Paris, 1965). Quando se fala de "tragédia" na época contemporânea, é necessário lembrar a distinção estabelecida por G. Genette (cf. Introduction à l'Architexte, Paris, 1979) entre "tragédia" e "trágico", pelo que não se deve confundir o género "tragédia", definido na Poética de Aristóteles, por oposição a outro género nobre, a epopeia, e a um género menor, a comédia, com outra realidade "puramente temática e de ordem mais antropológica do que poética: o trágico, isto é, o sentimento da ironia do destino ou a crueldade dos deuses" (id. ibi., p. 25, trad.). O recurso ao "trágico" na época contemporânea pode traduzir-se na introdução do arcaboiço temático ou estrutural da tragédia sob outros discursos, como o romanesco, como sucede, por exemplo, em Os Maias, de Eça de Queirós.


Fonte: Infopedia


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