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domingo, 11 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto


             O poema é constituído por 29 versos brancos ou soltos, distribuídos por seis estrofes, cujo título sintetiza a ideia da beleza da africanidade, adjetivando as mãos como esculturais, isto é, como mãos que são como obras de arte. Por outro lado, a mão simboliza o trabalho e a manifestação, pelo que o título indicia a força, o valor do trabalho e a força da união dos africanos.
            As três primeiras estrofes compõem a imagem de uma África aparente, a que é retratada pelos estrangeiros, pelo que se trata de uma visão parcial do que é a identidade africana. O poema começa por apresentar o olhar vencido e cansado que carrega a memória dolorosa da época da exploração, bem como a imagem do mar em simbiose com o ser africano: “mares negreiros”. Esta expressão traduz o sentimento de aprisionamento e o medo vivido nos lares e o cansaço dos que foram para outros países africanos e que, porque não sabiam se regressariam, se sentiam como estrangeiros, como estando noutro continente. Pode também entender-se que estes versos sugerem que o homem negro sai do seu continente para trabalhar e prosperar fora, mas, ainda assim, carrega a África consigo. O mar é o elemento responsável pela separação e distanciamento, pelo que guarda vivências dolorosas.
            A segunda estrofe desnuda a miséria de África (“Além desta África / de mosquitos”), os contrastes, quando se refere às “almas negras” enfeitadas de “sorrisos brancos” e a caridades e medicinas que matam, e as práticas de feitiçaria (“e feitiços sentinelas”). O dístico seguinte prossegue a descrição das ideias negativas associadas ao continente africano: “África de atrasos seculares e corações tristes”.
            A quarta e a quinta estrofes retratam a verdadeira África segundo os olhos do sujeito poético: possui beleza, força, amor, trabalho e, portanto, produtividade. O «eu» afirma que vê além, ou seja, vê o futuro e o que há de bom no continente explorado. Além disso, fala do amor que nasce da boca virgem, indicando que vem da fala pura, das lianas, que designam os laços com a natureza, com as origens, os quais podem ser compreendidos como o amor que cresce e se difunde e floresce como uma planta trepadeira.
            De seguida, descrevem-se as mãos esculturais, que estão ligadas contra “as catadupas demolidoras do antigo”. As mãos são a metáfora do trabalho e as catadupas (a saída ou corrente impetuosa) a metáfora da violência do passado. Deste modo, o trabalho coletivo constitui a forma de extirpar o mal do passado e de fazer algo novo.
            Na última estrofe, o sujeito poético conclui a sua visão sobre África: além do cansaço vivido, ela está viva e o sujeito poético sente-a nas mãos dos que resistiram (dos fortes) e fundem-se com amor (rosa) e alimento (pão), sendo, portanto, o futuro.
            Em suma, o poema trata o tema da identidade africana e apresenta-se o passado de sofrimento como forma de estabelecer povos fortalecidos, atribuindo-lhes a responsabilidade de construir um futuro independente.

Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto


            Ao contrário de outros textos de Agostinho Neto, este poema representa não apenas o sofrimento dos negros colonizados, mas também as particularidades da sua cultura.
            O sujeito poético abre o poema com uma imagem da natureza, associa as árvores características de continente africano (os embondeiros e as palmeiras) com seres humanos, humanizando-as, ao referir-se a “braços erguidos” para remeter para os galhos e a “silhuetas escuras”, isto é, a sombra das árvores. O sujeito poético realça nestes versos a relação dos africanos com a natureza, nomeadamente com as árvores, que, como já foi referido, são humanizadas, indiciando o seu valor sentimental. Por outro lado, a sinestesia “cheiro verde” e a alusão ao fogo trazem para o poema os cheiros e as cores africanos com estreita ligação à luta africana pela liberdade.
            A segunda estrofe introduz novos ambientes, como a estrada, um quarto e a cama, trazendo distintas visões do povo: os trabalhadores que sofrem (os carregadores bailundos, isto é, indivíduos que pertencem aos grupos étnicos dos Bailundos, de Angola); a mulata enquanto representante da miscigenação e da vaidade feminina da mulher africana (“a mulatinha de olhos meigos” – atentar na expressividade do diminutivo e do adjetivo «meigos»); o homem africano com ideias e desejos estrangeiros como o de “comprar garfos e facas para comer”. Além disso, é apontado um ambiente não retratado concretamente, que é o vestuário da figura feminina: “A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas”, representando a musicalidade e a alegria do povo que dança, ou até a fertilidade.
            Na terceira estrofe, o sujeito poético promove um encontro entre o humano e a natureza (“No céu o reflexo do fogo”; “No ar a melodia quente das marimbas” – as marimbas são um instrumento musical formado por placas de madeira ou de metal, graduadas em escala sobre cabaças, que percutem com banquetas, ou seja, a música produzida pelos homens em contacto com o ar e o fogo também produzido por eles refletindo no céu. “As silhuetas dos homens negros batucando de braços erguidos” constitui a retoma ou a lembrança / semelhança dos baobás descritos na primeira estrofe, reforçando a ideia do encontro entre a espécie humana e a natureza.
            A quarta estrofe repete excertos da segunda, remetendo de novo para a musicalidade que perpassa todo o poema. Por sua vez, o título da composição indicia que a poesia africana não aborda apenas o sofrimento do africano, mas a cultura dos povos. 

Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto


             Este poema faz parte da obra Sagrada Esperança, publicada em 1953, e apresenta-nos a imagem do africano cheio de esperança e à procura da construção da sua identidade nacional.

            A composição é construída, gráfica e formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.

            Os cinco versos iniciais formam uma espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido. Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois, desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.

            Logo no primeiro verso, a forma verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização, refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema segue em ritmo de caminhada.

            São vários os elementos da natureza evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”; “asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um percurso.

            A segunda estrofe mescla elementos musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor». Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando, antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do ser humano”.

            A terceira estrofe, através da presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das estrelas.

            A quarta estrofe, a última da primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do caminho.

            Separando as duas partes está um verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.

            A segunda parte aponta para a esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado, a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.

            A sexta estrofe alude à “seiva do raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida, enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do riso / sobre os campos de esperança”.

            As duas primeiras estrofes da segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida existente para a luta e para a caminhada.

            A liberdade reside nos olhos, os ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno, Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em rio).

            Ora, a presença do deserto e do rio reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural) ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”, oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.

            A última estrofe do poema, a última, de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do «eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.

Faleceu Angelo Badalamenti

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Análise do poema "O anjo da guarda", de Manuel Bandeira


             Este poema breve, constituído por seis versos, aborda atemática da morte, neste caso ligada à biografia do poeta, pois remete para o passamento da sua irmã, Maria Cândida de Sousa Bandeira, que foi sua enfermeira desde o final de 1904, quando ele ficou doente dos pulmões, e faleceu em 1918. Ela, de acordo com o título e o terceiro verso, foi o seu «anjo da guarda».

            Note-se, porém, que a abordagem do tema da morte é feita de forma comedida. Em versos livres e brancos, o «eu» poético exprime o seu apelo pela irmã, apelidando-a de anjo.

            No primeiro verso (“Quando a minha irmã morreu”), seguido de outro entre parênteses [“(Devia ter sido assim”), o sujeito poético apresenta a sua hipótese sobre a morte da irmã: “Um anjo moreno, violento e bom / brasileiro” veio guardá-lo, veio cuidar dele e, de seguida, “voltou para junto do Senhor”, ou seja, morreu.

            O adjetivo “brasileiro” é destacado no poema, sendo disposto mais à direita e aproveitando criativamente o espaço em branco da folha, possibilitando assim sugerir a descida do anjo, que “veio ficar ao pé de mim”. A imagem da figura angelical é brasileira; o anjo é “moreno, violento e bom”. Estes dois últimos adjetivos constituem um paradoxo, dado que aproximam dois conceitos contrários. No entanto, eles irmanam-se, dado que “violento e bom”, ligados pela conjunção coordenativa copulativa «e», realçam a forma como o «anjo» impõe os seus cuidados. Por outro lado, é possível associar a imagem do anjo à forma dedicada e intensa (violenta) como a irmã se dedicava a cuidar do sujeito poético. De seguida, o sorriso do «anjo» tranquiliza-o, pois anuncia a sua ascensão, isto é, a imagem da irmã funde-se com a do anjo, que sobe em direção a Deus.

Análise do poema "Pneumotórax", de Manuel Bandeira


             Este poema pode dividir-se em três partes. Na primeira, constituída pelos três primeiros versos, descreve-se a agonia de um tuberculoso, que, em face do seu sofrimento, lamenta toda a vida que não pôde viver (“A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”). O terceiro verso, formado pela repetição três vezes da forma verbal «tosse», reitera as dificuldades de respiração e a razão do acesso de tosse.

            Na segunda parte, formada pelos versos 4 a 7, encontramos o exame médico, destacando-se as dificuldades respiratórias do paciente, indiciadas pela aliteração do som /t/ e pela linha pontilhada que sucede ao verso 7.

            Na terceira parte, entre os versos 8 e 10, o médico apresenta o diagnóstico ao doente: “– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo / e o pulmão direito infiltrado”. O paciente deposita toda a sua esperança de cura num tratamento: “– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?” A resposta do médico é irónica de brutal: qualquer tratamento será inútil. E, eufemisticamente, diz-lhe para “… tocar um tanto argentino”. Ou seja, o clínico está a dizer-lhe que não há qualquer esperança de cura para a sua doença. E porquê a alusão a um tango argentino? Este era a música das tragédias. Assim sendo, o diagnóstico sentencioso do médico é, simultaneamente, irónico e eufemístico, visto que anuncia de forma indireta e até sarcástica a iminência da morte do paciente.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Distinção entre oração coordenada explicativa e subordinada adverbial causal


     Distinguir uma oração coordenada explicativa de uma subordinada adverbial causal não é fácil em muitas circunstâncias, o que dá origem a muitas apreciações erradas.

    Com a devida vénia, transcrevemos a explicação da professora Maria Regina Rocha, retirada do Ciberdúvidas:

'Para tentar que fique esclarecida e percecione o melhor critério de distinção entre os dois tipos de orações, vou começar por lhe apresentar exemplos, passando, depois, à explicação.

 
1. Exemplos de orações subordinadas causais:

a) Não almoço, porque não tenho fome. = Como não tenho fome, não almoço.

b) O Vítor domina o vocabulário, porque lê muito. = Como o Vítor lê muito, domina o vocabulário.

c) A Marta não comprou o vestido, porque era muito caro. = Como o vestido era muito caro, a Marta não o comprou.

d) O menino caiu, porque ia distraído. = Como ia distraído, o menino caiu.

e) Aplaudiram o orador, porque o discurso foi brilhante. = Como o discurso foi brilhantes, aplaudiram o orador.

 
2. Exemplos de orações coordenadas explicativas:

a) Sobe, que te quero mostrar uns livros. = Sobe, pois quero mostrar-te uns livros.

b) Come a sopa toda, que está muito boa. = Come a sopa toda, pois está muito boa.

c) Não tenhais medo, que o mundo não acaba agora. = Não tenhais medo, pois o mundo não acaba agora.

d) O Manuel tem dinheiro, pois comprou um carro novo.

e) O pai já está deitado, pois as luzes estão apagadas.

 
1. A oração subordinada causal tem uma relação de dependência em relação à principal, apresenta um motivo, uma causa da ação, do acontecimento, da ocorrência referida nessa oração principal. Nos exemplos que dei com orações subordinadas causais, é visível essa dependência entre a causal e a principal:

 
a) O facto de não ter fome é a causa, o motivo que leva a pessoa a não almoçar.

b) O facto de o Vítor ler muito é a causa, o motivo, que o leva a dominar o vocabulário.

c) O facto de o vestido ser caro foi o motivo, a causa, que levou a Marta a não o comprar.

d) O facto de o menino ir distraído foi a causa da sua queda.

e) O facto de o discurso ser brilhante foi a causa dos aplausos.

 
2. Para se compreender bem a situação das orações coordenadas explicativas, penso que será útil referir cinco dos estratos gramaticais possíveis na análise de uma língua, por ordem ascendente: o monema, a palavra, os grupos de palavras, a oração e o texto. 

 
                No que diz respeito às orações coordenadas explicativas, que em algumas gramáticas são sintomaticamente chamadas de coordenadas «causais-explicativas», elas exprimem dois tipos de relação (a coordenação e a subordinação), mas não ao mesmo nível de estruturação gramatical. Entre si (no estrato oracional), elas são coordenadas, mas existe uma relação de dependência no que diz respeito ao sentido do discurso, ao nível, pois do texto. 

 
                A oração coordenada explicativa também apresenta, pois, um motivo ou uma causa, mas não da ocorrência referida na oração anterior, e, sim, do motivo que leva o emissor a referir aquela ação, a fazer aquele pedido, a dar aquele conselho, etc. Vou considerar, então, cada uma das orações coordenadas explicativas que apresentei acima: 

 
a) A ação de querer mostrar os livros não é a causa da ação de subir; é a causa do pedido de que suba. Quem fala quer mostrar os livros, quer o outro suba, quer não. A oração «que te quero mostrar os livros» justifica o facto de o emissor ter feito o pedido, justifica algo que não está sintaticamente expresso. Assim, estas duas orações são independentes entre si e poderiam formar dois períodos: «Sobe. Quero mostrar-te uns livros.» Se quiséssemos explicitar a dependência da explicativa em relação ao discurso, poderíamos construir um período complexo, aí, sim, pondo no mesmo nível todos os elementos em relação e subordinando-os uns aos outros: «Peço-te que subas, porque te quero mostrar uns livros.» Neste período, a oração «porque te quero mostrar uns livros» é subordinada à oração «peço-te», exprimindo a causa desse pedido.

 
b) O facto de a sopa estar muito boa não é a causa de a pessoa a comer; é o motivo que leva o emissor a aconselhar o recetor a comer a sopa. Como independentes entre si, estas orações poderiam constituir dois períodos: “Come a sopa toda. Ela está muito boa.” Para ver a relação entre o que está explícito e o que não está, poderíamos também construir um período complexo, com orações subordinadas: “Aconselho-te a que comas a sopa toda, porque ela está muito boa.”

 
c) O facto de o mundo não acabar agora não é a causa de as pessoas não terem medo; é o motivo que leva o emissor a tranquilizar as pessoas. Como independentes, estas orações poderiam formar dois períodos, sem prejuízo do sentido: “Não tenhais medo. O mundo não acaba agora.” Poderíamos também pôr os valores semânticos todos no mesmo plano, o das orações, e interligar essas orações por subordinação: “Como o mundo não acaba agora, acho que não deveis ter medo.”

 
d) O facto de o Manuel ter comprado um carro novo não é a causa de ele ter dinheiro; é a causa da dedução que o emissor faz a respeito daquela ocorrência da compra do carro. Se construir um período complexo em que esteja claro o que ficou subentendido com a utilização da explicativa, poder-se-ia, então, explicitar essa subordinação: «Como o Manuel comprou um carro novo, eu penso (eu deduzo) que ele tem dinheiro.» E a oração subordinada causal (o Manuel ter comprado um carro novo) apresenta o motivo, a causa que me leva a pensar que... («eu penso, eu deduzo»).

 
e) O facto de as luzes estarem apagadas não é a causa de o pai estar deitado; é o motivo que o leva a pensar, a deduzir, a supor que o pai já esteja deitado. Se construir um período complexo em que esteja claro o que ficou subentendido com a utilização da explicativa, poder-se-ia, então, explicitar essa subordinação: «Como as luzes estão apagadas, penso que o pai já está deitado.»'

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade


             Este poema, constituído por 17 quadras e 1 dístico, foi publicado originariamente na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978 e republicado em Poesia numa hora dessas? em 2002, e traça um quadro simultaneamente humorístico e sinistro do final da década de setenta do século XX.

            Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o campeão foi o Guarani.

            Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais futebol por lá”.

            Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção, comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de prosseguir em prova.

            Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia, e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –, comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general (Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31 de dezembro de 1978.

            Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois, de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta (mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões. Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no Mundial do presente ano.

            Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção» pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas, que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta. Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”). A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e 1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas: “Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”. De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares, visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.

            As estrofes seguintes focam outras questões: poluição, assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade, não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na urbe se morre.

            A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real, concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.

            Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras», agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia. Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso aglomerado de figueiras.

            Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros «primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos, que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo), tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de Oliveira, Luana Piovani, etc.

            A nona estrofe explicita o quadro económico e político do ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo, o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores, substantivos, “mesmo com todo o problema”.

            As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”. A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que, para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras, empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do século XX, assente no «deboche».

            A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”, palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia» constituem uma rima interna e formam anagramas.

            A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa (“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de 1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”. A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”) reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético «atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o que já se passou há bastante tempo?

            O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte. Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de continuidade.

            As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção “Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.

            A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar para o governo norte-americano.

            Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática, casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a figura do prefeito biónico.

            A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar», conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta (deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média, nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural. De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama, Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos milhões de telespectadores.

            O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.

            Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar (que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre” foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.

            A situação é dramática: as instituições estão contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e reflexão.

 

Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de Luís Fernando Veríssimo”.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Análise de "A Carne é triste depois da felação", de C. Drummond de Andrade


             Este poema integra o livro póstumo de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural, publicado em 1992, e é caracterizado por um tom claramente melancólico.
            O sujeito poético começa por declarar que “A carne é triste depois da felação”. O nome «carne» materializa a humanidade que há no homem, ou seja, “A carne é triste” corresponde à humanidade, ao homem, à própria existência, que é (são) triste(s). Por seu turno, o nome «carne» é o tecido muscular, o músculo, pelo que podemos entender a «carne» como referindo-se ao pénis, que, por sua vez, constituirá uma metonímia do corpo. Assim sendo, o pénis é triste depois da felação, nome que se refere ao gozo sexual provocado pela sucção.
            Será que antes da felação a carne já era triste? Ou se é apenas “Depois do sessenta-e-nove [que] a carne é triste”? A repetição do adjetivo «triste», caracterizando o pós-felação e o pós-sessenta-e-nove, indicia que o «eu» se sente dececionado e insatisfeito, ideia que parece ser confirmada pelos versos “Não há mais nada / após esse tremor?” O gozo parece conduzir ao vazio, à incompletude e, desse modo, à melancolia. O próprio prazer é posto em questão, por causa da sua natureza aparentemente contraditória (“tão fundo na aparência mas tão raso / na eletricidade do minuto?” e até antonímica: “fundo na aparência” mas “tão raso”.
            A forma do poema parece mimetizar o sexo oral: os dois primeiros versos têm 11 sílabas métricas; os dois seguintes, 10; os dois pares subsequentes são formados por um eneassílabo (9 sílabas métricas) e um decassílabo. A alternância 9-10, 9-10 forma em si mesma um par e, também, aponta para um vai e volta. Assim sendo, este emparelhamento e movimento entre pares de versos (dois hendecassílabos, dois decassílabos e dois eneassílabos) parecem remeter (mimetizar) para o sexo oral, sugestão que é reforçada pelo penúltimo verso: “e gosma”. Note-se como este verso é breve, sugerindo o instante pontual do prazer do orgasmo. O último verso – “escorre lentamente de tua vida” – indicia o momento da ejaculação. Estes dois versos complementam-se: “e gosma” significa “e goza” e de “escorre lentamente de tua vida” parecem pulsar jatos de sémen (inclusive na alternância entre sílabas tónicas e átonas). Convém ainda atentar no predomínio de sons consonânticos oclusivos (/g/, /k/, /t/ e /v/),que se pronunciam fechando-se totalmente o aparelho fonador, sem dar espaço para o ar sair, o que sugere o “emparedamento” do sujeito poético perante a constatação imediatamente posterior ao orgasmo de que “Já se dilui o orgasmo na lembrança”, não havendo “mais nada”. O que resta? A melancolia e a tristeza que sucede à felação.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

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Análise da Cena 8 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Localização da cena na obra
 
            Esta cena é antecedida pela preocupação de D. Madalena quanto à deslocação de Manuel de Sousa e de Maria a Lisboa, esta para visitar a Condessa de Vimioso, e é seguida por novas observações acerca do bem-estar e da segurança de Maria e constatação, por arte da mãe, em pânico, da negatividade de que aquele dia se reveste, na medida em que fora a data em que casara pela primeira vez, a data em que perdera o primeiro marido na batalha de Alcácer Quibir e que vira e amara Manuel de Sousa pela primeira vez.

 
Assunto: o estado de preocupação de D. Madalena, agravado pela referência ao exemplo da Condessa de Vimioso, que Manuel de Sousa refere numa tentativa vã de a tranquilizar.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte – O medo incontrolado de D. Madalena por ficar sozinha.
 
2.ª parte – A tentativa de apaziguamento de D. Madalena por parte de Manuel de Sousa, referindo outras situações e personagens que, simultaneamente, se aproximam e distanciam do seu caso.
 
 
Caracterização de D. Madalena
 
Fraca:
- porque se deixa abater pelos seus próprios sentimentos – dominada pelos sentimentos característica da heroína romântica;
- porque não luta para ultrapassar a sua insegurança: “Que queres? Não está na minha mão.”;
- porque não se considera detentora de coragem semelhante à da Condessa de Vimioso, que ingressou num convento.
 
Insegura, tensa, inquieta e receosa de ficar só: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Sentimental e emotiva, bem ao gosto romântico.
 
Mãe desvelada: preocupa-se com a saúde débil de Maria.
 
Mostra-se espantada e até indignada com a atitude tomada pela Condessa de Vimioso: espantada, pois os esposos separaram-se sem razão aparente; indignada, já que essa separação não lhe parece razoável.
 
Por outro lado, mostra admiração pela força e pela virtude que a Condessa demonstrou ao abdicar dos bens e amor terrenos, até porque não se vê capaz de tais «perfeições», considerando a atitude dos condes como uma assunção de morte em vida.
 
 
Caracterização de Manuel de Sousa
 
Começa por repreender a esposa por esta continuar a mostrar-se crente em achar-se “só no mundo”, como o demonstra a exclamação «Madalena!».
 
É mais racional e sensato do que a esposa, firme, decidido e objetivo, como o demonstra o facto de tentar afastar os agouros, as crenças e as superstições desta, fazendo-lhe notar o exagero dos mesmos: “Olha se ela faria esses prantos, quando disse o último adeus ao marido…”.
 
Mostra-se dedicado, carinhoso e apaixonado pela esposa, o que se nota nas formas de tratamento utilizadas: “Oh! queria mulher minha”.
 
Mostra-se também preocupada com a fragilidade e a insegurança de D. Madalena ao tentar apaziguá-la e ao deixar seu irmão Jorge fazendo-lhe companhia: “Jorge, não a deixes”.
 
É um homem seguro, pois sente-se protegido por Deus e convicto de que nada lhes acontecerá: “A nossa situação é tão diferente (…) Em todas nos pode ele abençoar”.
 
 
Elementos trágicos da cena
 
O pathos constante de D. Madalena (o sofrimento da personagem que impregna a obra de um cariz trágico e nefasto).
 
Os presságios:
- O receio de D. Madalena de ficar só no mundo.
- Os terrores de D. Madalena.
- O comentário premonitório de Frei Jorge, que antecipa a separação de Madalena e a sua entrega à vida religiosa: “É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: «Deixa tudo e segue-me».”
- A história dos condes de Vimioso, referida pela boca de D. Madalena: “Vivos ambos… sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se… e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a mortalha já vestida e… vivos, sãos… depois de tantos anos de amor… e conveniência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda hora… arrependidos!” Esta referência antecipa a separação de D. Madalena e Manuel de Sousa, que serão obrigados a seguir o exemplo de D. Joana e do marido, estabelecendo-se um paralelo entre os dois casais. De facto, a semelhança entre os dois casos é evidente: tanto D. Madalena como Manuel de Sousa optaram pelo afastamento da vida mundana, decidiram professar, tal como sucedeu à condessa (que entrou no Convento do Sacramento em 1607) e a seu esposo (que professou pouco depois em S. Domingos de Benfica). A reclusão conventual parece ser a alternativa, na época, para os responsáveis por atos de menor dignidade ou nobreza – a constatação do adultério de D. Madalena e a ilegitimidade de Maria e Manuel de Sousa naquela família.
 

Características trágicas da cena

A importância conferida a aspetos religiosos.
 
A importância atribuída ao amor, centro dos problemas que afetam as personagens.
 
A interioridade e os conflitos individuais patentes em D. Madalena, quer nos seus monólogos, quer nos seus diálogos.
 
A linguagem utilizada, que pretende ser um espelho fiel da emotividade, do estado psicológico das personagens.
 
A espontaneidade da oralidade: as pausas, as frases suspensas e as repetições.

 
Linguagem
 
Gradação: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Repetição do determinante demonstrativo «este».
 
Hipérbole: “… de vir a achar-me só no mundo…”.
 
Reticências nas falas de D. Madalena.
 
O vocábulo «cuidados» possui um duplo significado:
- por um lado, traduz a preocupação de D. Madalena quanto à saúde débil de Maria;
- por outro lado, refere-se aos temores, receios, que a atormentam a partir de uma passagem da sua vida que a inquieta.
 
Trocadilho: “Eu não tenho já cuidados” – na verdade, D. Madalena só sente / tem “cuidados”, preocupações, medos. A ironia aqui presente reforça o seu estado de extrema inquietação, que a faz quase chegar a um estado de demência ficando consternada, perturbada com a existência e a razão de tais cuidados.
 
Comparação: “… parece que vou eu agora embarcar num galeão para a Índia…” – sugere a grande angústia de D. Madalena.
 
Ironia trágica das palavras de D. Madalena e Manuel de Sousa quando se referem aos condes de Vimioso: “E que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente.” O casal comenta a entrada dos condes de Vimioso para o convento como sendo um sacrifício de que eles mesmos não seriam capazes: “… não sou capaz de chegar a essas perfeições”; “E que temos nós com isso?” A ironia reside no desconhecimento de estarem tão próximos de uma situação que julgam muito diferente da sua.

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