Português: Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto

domingo, 11 de dezembro de 2022

Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto


             Este poema faz parte da obra Sagrada Esperança, publicada em 1953, e apresenta-nos a imagem do africano cheio de esperança e à procura da construção da sua identidade nacional.

            A composição é construída, gráfica e formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.

            Os cinco versos iniciais formam uma espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido. Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois, desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.

            Logo no primeiro verso, a forma verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização, refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema segue em ritmo de caminhada.

            São vários os elementos da natureza evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”; “asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um percurso.

            A segunda estrofe mescla elementos musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor». Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando, antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do ser humano”.

            A terceira estrofe, através da presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das estrelas.

            A quarta estrofe, a última da primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do caminho.

            Separando as duas partes está um verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.

            A segunda parte aponta para a esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado, a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.

            A sexta estrofe alude à “seiva do raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida, enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do riso / sobre os campos de esperança”.

            As duas primeiras estrofes da segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida existente para a luta e para a caminhada.

            A liberdade reside nos olhos, os ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno, Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em rio).

            Ora, a presença do deserto e do rio reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural) ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”, oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.

            A última estrofe do poema, a última, de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do «eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.

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