Português: Cantiga de Amigo
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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Análise da cantiga "Ai madre, bem vos digo"

 Assunto
 
            A donzela, em ambiente familiar, confidencia à mãe que está zangada com o seu amigo, pois este mentiu-lhe, visto que faltou ao encontro marcado.
 
 
Tema: a desilusão amorosa.
 

 Personagens
 
▪ Sujeito poético: a donzela.
 
▪ Destinatário: a mãe.
 
▪ Papel da mãe: confidente e interlocutora da filha.
 
 

Estado de espírito da donzela













 
Retrato do amigo
▪ mentiroso
▪ falso
▪ incumpridor (v. 7) – não cumpriu o que prometeu
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª cobla): Apresentação do espírito da donzela e do motivo que a justifica (a mentira do amigo).
 
2.ª parte (2.ª-4.ª coblas): Reiteração da causa do estado de espírito da donzela – a mentira e a falsidade do amigo –, agravada pelo facto de ter sido intencional.
 
 
Estrutura formal

▪ Quatro coblas constituídas por um dístico e um refrão monóstico.

▪ Rima emparelhada: aaR.

▪ Métrica: versos hexassílabos.

 
 
Classificação
 
Cantiga de amigo: o sujeito poético é feminino, uma donzela, que confidencia à mãe o seu estado de espírito.
 
Cantiga de refrão:
remete para o estado de espírito da donzela;
reforça e intensifica o seu estado emocional (a irritação e a raiva da donzela).
 
Cantiga de atafinda: o sentido de uma cobla prossegue / completa-se na seguinte.
 

domingo, 15 de novembro de 2020

Análise de "Todalas cousas eu vejo partir"

 
Assunto: a donzela constata que tudo muda – os homens, os tempos, etc. –, geralmente para pior, exceto o coração do amigo por ela.
 
 
Tema: a mudança.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Tese: tudo muda (para pior), exceto o coração do amigo de a amar.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Desenvolvimento da tese – a mudança no homem:
. de terra
. de estatuto socioeconómico
. de amor
. a constância do amor do amigo
 
3.ª parte (3.ª estrofe) – Confirmação da tese – tudo muda:
. o próprio tempo
. o homem
. a natureza
. exceto o amor do amigo
 

 Desenvolvimento do tema
 
Nesta cantiga de amigo, João Airas de Santiago desenvolve o tema de que tudo passa e só o amor permanece.
De facto, na composição aborda-se a mudança, sendo clara a oposição entre a instabilidade do mundo e a segurança do amor que existe entre a donzela e o seu amigo: tudo muda, à exceção do amor que ele sente por si.
Deste modo, a cantiga estrutura-se da seguinte forma: nos primeiros 4 versos de cada estrofe, a donzela afirma que tudo muda no mundo e, nos dois últimos (incluindo o refrão monóstico), exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada cobla) [lítotes]: o coração do seu amigo nunca deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçon partir / do meu amigo de mi querer bem.”).
Na primeira estrofe, a partir da observação do mundo, a donzela conclui que tudo muda e nada se mantém igual (“Todalas coisas eu vejo partir / do mud’em como soíam seer” – vv. 1-2 –, ou seja, ela observa que certas coisas e situações deixam de existir como antes existiam, coisas a que estava habituada) e as pessoas deixam de praticar o bem, deduzindo-se que passaram a fazer o mal (vv. 3-4). Esta constatação provoca o espanto do «eu» (“tal tempo vos vem!” – v. 4) relativamente ao tempo (presente) que vive, que pode ser comparado ao passado. De facto, a exclamação do verso 4 sugere que o sujeito poético se espanta por tudo mudar e, principalmente, pelo facto de a mudança se operar em sentido negativo: as pessoas já não fazem o “bem” – como era costume –, daí o espanto. A exceção a esta mudança constante é o amor do amigo por si: ao contrário do mundo e das pessoas em geral, o coração (metonímia que traduz a origem do amor) do seu amigo não deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçom partir / do meu amigo de mi querer bem” – vv. 5-6). Ou seja, o seu amigo não mudará, não deixará de a amar. Note-se que a palavra «coração» é repetida no penúltimo verso de cada estrofe (dobre), repetição que acentua a importância do sentimento amoroso. Este contraste é marcado pela conjunção adversativa «mais» (= «mas»). Ao nível da linguagem, há a destacar o uso da primeira pessoa, que parece centrar o poema numa questão de interesse pessoal: a constância do amor do amigo por si.
A segunda estrofe abre com a referência à mudança no Homem (isto é, no ser humano, em geral): o coração dos homens afasta-se das “cousas que ama” (v. 8), o homem muda da “terra ond’é” (v. 9) e “d’u grande prol tem” (v. 10). Neste passo, o sujeito poético apresenta o (mau) exemplo dos indivíduos que abandonam e se afastam de um lugar onde (“d’u”) vivem com benefícios e vantagens (“gran prol”) – verso 10. Este lugar de onde se parte pode até ser o que é referido no verso anterior (“e parte-s’home da terra ond’é” –, ou seja, a terra onde se vive. Neste passo, está implícita uma comparação antitética entre o comportamento do “home [que] part’o coraçon / das cousas que ama” e o do amigo, que continua a “querer bem” à donzela. Em resumo: ainda que (“pero que”) outros homens deixem de amar, o seu amigo não deverá imitá-los. Nesta cobla, a antítese é marcada pela locução concessiva “pero que” (“ainda que”).
Em suma: o homem afasta-se das “cousas que ama” e fica a saber-se, pela anáfora dos versos 9 e 10, que essas «cousas» são a “terra ond’é” e “a “prol” que possui.
Na última estrofe, nota-se a repetição do verso 1 no verso 13 apenas com a mudança do vocábulo «partir» para o seu sinónimo «mudar», acentuando a ideia de mudança que rodei a dozela, mudança que é global (“tempos”, “o al”, “a gente”, “ventos” e “tod’outra ren”), mas na qual não se inclui o coração do seu amigo. Esta oposição é marcada, mais uma vez, através da conjunção adversativa «mas». O uso da anadiplose «mudar» / «mudam-s” chama a atenção para o fator “mudança”, reforçado pela anáfora dos versos 14 a 16 e pelos polissíndetos. Por outro lado, a rima interna entre «tempos» e «ventos» traduz exatamente a ideia de transitoriedade.
Em suma, de acordo com a terceira cobla, a mudança atinge “al” (tudo) e “tod’outra ren” (todas as coisas).
 
 
Refrão
 
O refrão (juntamente com o penúltimo de cada estrofe) demonstram, por um lado, o otimismo e a alegria da donzela, uma confiança no amor fiel do seu amigo. Através do verso repetido, ela afirma e reafirma uma situação que não deve alterar-se: nada deve mudar e o sentimento amoroso há de permanecer.
Por outro lado, a insistência que o refrão estabelece tem um significado próprio. De facto, à primeira vista, ele diz e repete que o amigo deve manter o coração firme. No entanto, podemos questionar: aquela insistência não quererá dizer também que há alguma insegurança por parte da mulher? Será o coração do amigo capaz de resistir à tendência que em tudo se observa para a mudança?
 

Dimensão moral e filosófica da cantiga
 
O uso da 1.ª pessoa logo no verso 1 permite concluir que o poema se centra numa questão de interesse pessoal: a lealdade do amigo. No entanto, a segunda estrofe alarga a reflexão do «eu» a considerações de caráter filosófico. Por exemplo, o «home» de que aí se fala não corresponde a nenhum homem em particular, antes evoca a condição humana em geral.
Nessa reflexão está implícita a comparação entre o presente e o passado, concluindo-se que as coisas já não são “como soíam seer”. Esta comparação introduz na cantiga uma tensão dramática, isto é, um conflito entre o que antes era e o que agora é, que se acentua quando se confronta o comportamento do homem que “part’o coraçon / das cousas que ama” com o que é esperado do amigo da donzela.
Assim, se pela forma estamos perante uma cantiga de amigo, pelo tema e pelo propósito ela aproxima-se muito do chamado sirventês moral, que é uma composição de origem provençal que se ocupa, em termos gerais, da crise de valores morais ou religiosos, em estreita conexão com a decadência de costumes sociais.
Segundo Carlos Reis (Leituras Orientadas, p. 66), «o “partir do mundo” que motiva a cantiga pode ser lido como uma imagem que lembra a ameaça do fim de todas as coisas, um fim que a mudança vai preparando. Ao mesmo tempo, [este poema] anuncia alguma poesia que veio depois: o soneto de Camões que começa “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o emocionante poema “Mignonne, allons voir si la rose”, do poeta francês Ronsard, que nos diz da rápida mudança da juventude para a velhice; e, muito mais próximo de nós, o “Soneto da fidelidade”, de Vinicius de Moraes que, em tom de paródia, fala de um sentimento amoroso “que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Análise de "Nom mi digades, madre, mal e irei"


Nom mi digades, madre, mal e irei
vee'lo sem verdad'e que namorei
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
5                 na ermida do Soveral.
 
Nom mi digades, madre, mal, se eu for
vee'lo sem verdad'e o mentidor
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
10               na ermida do Soveral.
 
Se el nom vem i, madre, sei que farei:
el será sem verdad'e eu morrerei
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
15               na ermida do Soveral.
 
Rog'eu Santa Cecília e Nostro Senhor
que ach'hoj'eu i, madr', o meu traedor
na ermida do Soveral
u m'el fez muitas vezes coitada estar,
20               na ermida do Soveral.
 
            Frequentemente, nas cantigas de amigo, a donzela pede à mãe que a deixe ir ver o amigo, mas nesta ela diz algo diferente: “Mãe, por favor, deixe-me ir ver o traidor”. Noutros poemas, o amigo costumava deixá-la esperar tristemente por ele (presumivelmente, não aparecia). É raro que uma donzela tente renovar o relacionamento depois que o amigo não cumpriu a sua palavra ou foi infiel ou algo parecido.
            A jovem mostra deferência para com a mãe e faz o que noutras circunstâncias poderia ser um pedido simples e normal, mas neste caso acrescenta duras críticas ao amigo (“sen verdad ', mentidor, traedor”), associadas ao campo linguístico do insulto (ou culpa). Normalmente, quando se quer reconciliar com o amado após uma rutura, ela não o critica mesmo quando ele é o culpado. A rapariga, no entanto, não se lhe refere através de nenhuma das expressões usuais (“amigo”, “amado”, “namorado” e semelhantes), limitando-se à expressão “que namorei”.
            Verso 1 –  “Nom mi digades mal e irei”: o pedido da donzela é precedido de um pré-pedido educado e autodefensivo. A frase parece provir de uma tradição oral encontrada noutras cantigas. A jovem expressa a sua intenção de ir ver o amigo. Se a mãe se opuser (ou se puder opor) ao pedido, ela pedirá permissão para ir. Noutras cantigas, a rapariga exorta as amigas a irem com ela. Raramente pede diretamente ao amigo para a acompanhar.
            Verso 2 – “vee'lo sem verdad'e que namorei”: a donzela acusa o amigo de ser “infiel” (desleal, infiel, falso) antes mesmo de o identificar como seu namorado. Isto explica o motivo pelo qual a jovem pode ter medo que a sua mãe fale mal de si se ela for (I.1, II.1).
            Versos 3 a 5: nos estratos mais antigos desta tradição, os encontros amorosos teriam ocorrido além dos limites do povoamento e do alcance dos costumes: “longi de vila” (Bernal de Bonaval); “fonte” (Nuno Fernandez Torneol, Johan Soarez Coelho, Pero Meogo); “fontana” (Pero Meogo); “monte” (Roi Fernandiz); “rio” (Johan Zorro, Pero Meogo); “mar” (Meendinho, Nuno Porco, Johan de Cangas, Martin Codax); “lago” (Fernand ’Equio). Contudo, o local do encontro foi em grande parte apropriado por locais cristãos: a ermida, a igreja, o “sagrado”. Seja pagão ou cristão, este espaço remoto é onde a donzela e o amigo se podem encontrar, embora não saibamos exatamente o que acontece num encontro específico.
            O amigo muitas vezes deixava-a à espera ou, pura e simplesmente, não comparecia (“Se el nom vem i”). Atrasar-se para um encontro amoroso (ou atrasar-se para a voltar a ver em qualquer circunstância) é uma quebra de confiança que pode causar ansiedade e tristeza ou levantar suspeitas. De acordo com o texto, pode pressupor-se que os dois combinaram um encontro. Ora, não comparecer a um encontro amoroso é motivo suficiente para a donzela romper com ele. Tal como a jovem afirma, o atraso ou a falta de comparência deixam-ma extremamente triste e levam-ma a apelidá-lo de “mentidor” (verso 7) ou “traedor” (v. 17).
            De facto, o verso 11 permite pressupor que a donzela e o amigo concordaram em se encontrar. Provavelmente, é porque ele não cumpriu a sua palavra no passado que ela o chama de “mentidor” e traidor. Nada no texto, por outro lado, sugere que ela suspeite de infidelidade.
            A solução sai também da boca da rapariga: se o amigo não aparecer, tal significará que ele é falso, mentiroso, e ela morrerá na ermida do Soveral, onde o aguarda e onde ele já a fez sofrer muitas vezes, certamente por faltar aos compromissos assumidos pelos dois (“Se el nom vem i, madre, sei que farei: / el será sem verdad'e eu morrerei / na ermida do Soveral / u m'el fez muitas vezes coitada estar…”). Estes versos confirmam, portanto, que não é a primeira vez que a donzela passa por esta situação.
            A estrofe final abre com o rogo da jovem, dirigido a Santa Cecília e Nosso Senhor, um rogo, portanto, a um poder divino ou mágico que reflete a religiosidade da época, no sentido de fazerem com que o amigo compareça ao encontro, no local combinado – a ermida do Soveral. Note-se, contudo, que a derradeira palavra da composição poética (excluindo o refrão) é «traidor».
 

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

"Sedia-m'eu na ermida de San Simion"


· Assunto: uma donzela formosa espera, na ermida de San Simion, o regresso do seu amigo embarcado. Obcecada pela ideia desse regresso, aliena-se da realidade circundante e só se apercebe de que nem o amigo virá nem poderá fugir dali quando se vê cercada pelas águas do mar (após a maré encher). Só lhe resta então esperar pela morte, crescendo a sua angústia ao pensar que vai morrer sem reencontrar o amigo.


· Tema: a saudade e o desespero, em virtude da demora do amigo.


· Estrutura interna

         O tema desenvolve-se através de um monólogo da donzela, que constitui uma micro-narrativa dos vários acontecimentos que a donzela vive na ermida.




OUTRA DIVISÃO

u 1.ª parte (estr. 1 a 4) - A donzela descreve, num monólogo, a sua situação: obcecada pelo regresso do amigo, a jovem, desesperada, apercebe-se tardiamente da subida da maré, sem ter barca nem marinheiro para fugir às águas do mar.

u 2.ª parte (estr. 5 e 6) - A donzela toma consciência da certeza da chegada da morte.

u Refrão: A angústia e a saudade obsessiva na espera do amigo, pois conclui que vai morrer sem o voltar a ver.



· Esquema-síntese

. ausência do amigo          ü                                        ì. exclamações
          (refrão)                  ï                                        ï. relação morte/juventude
              +                        ý  desespero da donzela      í. jogo dos tempos verbais
. hostilidade do ambiente  ï                                        ï. referência ao impasse
        (caract. do mar)        þ                                        î



· Elementos narrativos do poema

n Acção: a amiga espera o amigo que não chega.

n Espaço: ermida de San Simion, em Val de Prados.

n Tempo: tempo da espera do amigo, coincidente com a subida da maré.

Personagens:   - donzela;
                       - amigo (ausente, mas sempre presente).


· Relação Natureza                       /                     Donzela (estado psíquico)

. ondas que crescem
. maré que sobe
. mar alteroso
. possível afogamento



=
sentimento amoroso
. emoção crescente
. "a maré alta da paixão"
. obsessão amorosa
. angústia de que o amigo não venha / de que não consiga fugir ao arrebatamento amoroso quando ele chegar



· Caracterização da donzela:
- bela
- jovem

NOTAS

         1. Os dois sentimentos que dominam o espírito da amiga são:
                   à o receio de que o amigo não regresse;
                   à o receio de perecer afogada.

         2. Todavia, verdadeiramente o grande desespero da jovem reside na ausência do amigo; ou seja, a possível perda do seu amor é que é realmente a sua perdição, o seu naufrágio na vida. A donzela, nesta cantiga, afinal pressente o seu naufrágio, a saber: o fim da sua relação amorosa. O segundo receio é, pois, metáfora do primeiro.

         3. Os sentimentos da amiga assentam num crescendo de intensidade dramática. De facto, nas duas primeiras coplas, a donzela exprime apenas um receio longínquo, como se tivesse já passado (notar o emprego do passado: sedia-me e cercaron-mi). Na terceira e na quarta copla, a jovem constata que "Non hei barqueiro, nem ar son remador" (notar o uso do presente verbal e do ponto de exclamação, quando, nos versos equivalentes das duas estrofes iniciais, não tinha sido usado, o que revela já a emoção dela perante o perigo), isto é, que o perigo é iminente. Este avolumar da emoção da donzela culmina nas duas últimas coplas, com o uso do futuro a traduzir a certeza da morte: "E morrerei, fremosa, no alto mar".



· Papel da Natureza
. cenário: enquadraria um hipotético encontro amoroso;
¯
. oponente ® realmente: separa a donzela do seu amor e impede o relacionamento amoroso, sendo, portanto, culpada da "morte" da amiga;
 ® metaforicamente: ameaça engolir a jovem.



· Recursos poético-estilísticos

         1. Nível fónico

         A composição é constituída por 6 coplas heterométricas formadas por dois versos (dístico monórrimo) hendecassílabos agudos e dois versos octossílabos graves, obedecendo a rima ao esquema AABB / CCBB / AABB / CCBB / AABB / CCBB, isto é, a rima é toda emparelhada. Temos também rima consoante ("Simion" / "son") e toante ("son" / "remador"), aguda e grave (no refrão), rica ("Simion" / "son") e pobre ("altar" / "mar"). O ritmo é acentuadamente binário, contribuindo para exprimir a cadência das ondas, até porque há uma natural entoação ascendente até ao meio do verso e descendente na segunda metade. Este ritmo, enriquecido pelo paralelismo e que pode traduzir também toda a rápida escalada emocional vivida pela donzela, contrasta com o ritmo do refrão, lento (uso do gerúndio), sugerindo a espera, numa atitude continuada, obsessiva, absorta; por outro lado, pode ainda significar a inutilidade da sua espera ansiosa. Além disso, o refrão repete-se, é iterativo, ao longo do poema e em si mesmo, em cada estrofe, repetição que acentua a ideia de que a grande causa da angústia da donzela é a ausência do amigo. Na última estrofe, o refrão, após o verso "e morrerei, fremosa, no alto mar", sugere que a donzela morria à espera do seu amigo e sem esperanças de o recuperar. A composição é uma cantiga paralelística perfeita, com leixa-prem. De notar que a presença do refrão e do paralelismo aponta claramente para a origem popular das cantigas de amigo, feitas para serem cantadas, algumas delas por dois cantores (repetições paralelísticas, como nas cantigas à desgarrada) e por um coro (refrão). Existem também aliterações, por exemplo em s ("Sedia-m' eu na ermida de San Simion") e de sons fechados e nasais, sugerindo tristeza, e também assonâncias em ô / á.


         2. Nível morfossintáctico

         O uso do ponto de exclamação (frases exclamativas/função expressiva) aponta para a emoção que se começa a apoderar da donzela perante o perigo.
         Há um predomínio de substantivos e verbos que traduzem objectividade e acção. A nível dos tempos verbais, devemos destacar os seguintes:
. o pretérito imperfeito remete para a atitude estática da rapariga na sua longa espera;
. o gerúndio do refrão reforça a ideia traduzida pelo imperfeito e também a obsessão, a ânsia e a angústia da jovem;
. o pretérito perfeito apresenta o facto consumado: "cercaron-mi as ondas";
. o presente revela-nos a constatação, por parte da donzela, da trágica situação em que se encontra e da impossibilidade de salvação no momento presente: "non ei i barqueiro, nem remador!";
. o futuro exprime a antevisão da morte sem encontrar o amigo: morrerei...".
Ou seja, a donzela posiciona-se no presente, refere, através do passado e do gerúndio, a longa espera do amigo e a angústia a ela associada, e prevê o desenlace da situação em que se encontra.
         A nível da adjectivação, é de destacar a expressividade do adjectivo "fremosa", pois permite-nos concluir que o que afinal a donzela receava não eram propriamente as ondas do mar, mas o não regresso do amigo. E ela ali permanecia, frente ao mar por onde ele tinha partido, mas ainda "fremosa", como quando o seduzira. Ou seja, a sua formosura era, afinal, a causa do grande amor e, agora, do grande desespero. O comparativo da penúltima estrofe informa-nos da subida das águas com uma imagem de sentido hiperbólico.
         Além do paralelismo perfeito, encontramos outras formas de paralelismo:
- semântico: "grandes son" / "ondas grandes", ... ;
- anafórico;
- estrutural.
         A função da linguagem predominante é a expressiva:
- os pontos de exclamação / frases exclamativas;
- a adjectivação;
- o refrão;
- a reiteração.
         A ausência de conjunções a estabelecer a relação das orações confere às frases um carácter emocional, adquirido já no facto de serem do tipo exclamativo. As próprias orações subordinadas relativas explicativas, em "que grandes son", pela sua função aproximada de aposto, prolongam o sentido emotivo daquele momento.
         A anáfora, o hipérbato e a reiteração (por exemplo, no refrão) são outros recursos presentes.


         3. Nível semântico

         A gradação é o recurso estilístico mais importante do poema (vide nota 3).
         As ondas do mar funcionam como metáfora. De facto, elas são a causa do seu pânico crescente; mas também significam a paixão amorosa que a levou à ilha e cujas consequências podem ser a morte, mesmo estando "ant' o altar", sob a protecção do santo e do santuário. O medo que as ondas suscitam na donzela é complexo:
® medo de morrer afogada nas ondas ou na própria emoção (ondas da emoção);
® medo de não conseguir escapar ao ímpeto amoroso do amigo se ele chegar, de não resistir à força do amor;
® medo da "maré alta" da paixão que essa chegada representará;
® medo da espera indefinida do amigo, de não chegar e ela morrer sem o ver.
         Por último, destaquemos a hipérbole, quer no que diz respeito à grandeza das ondas, quer á subida da maré e ao perigo iminente que rodeia a amiga.

         O poema pertence, logicamente, ao género lírico, mas está contaminado pelo género dramático (além do narrativo, como já vimos); as acções avançam cronológica e progressivamente, intensificando o dramatismo que envolve a situação da donzela: "sedia-m' eu na ermida" ® "cercaron-mi as ondas" ® "non ei barqueiro, nem sei remar" ® "morrerei fremosa".


· Classificação

1. Cantiga de amigo.

1.1. Temática:
. barcarola / marinha: cantiga que contém referências ao mar (1);
. de romaria.
         (1) Os temas das barcarolas são geralmente de grande singeleza. Afora um certo número em que a donzela vai apenas banhar-se ao rio, ou da margem vê o barco deslizar pelas águas, nas barcarolas ela geralmente lamenta-se do amigo, ou, durante a sua ausência, pede às ondas notícias dele, ou ainda, ansiosa, vai esperar os navios que chegam, para voltar a vê-lo.

1.2. Formal:
. paralelística perfeita;
. de refrão.






Análise da cantiga "Ai flores, ai flores do verde pino"

    Análise da cantiga: Ai flores, ai flores do verde pino.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O leixa-pren da cantiga de amigo

  
▪ O leixa-pren aproxima-se das desgarradas populares (ou cantigas ao desafio) e consiste em começar cada estrofe repetindo o último verso de uma estrofe anterior.
 
▪ O 1.º verso do terceiro dístico retoma o 2.º verso do primeiro dístico = o 2.º verso da 1.ª estrofe é o 1.º verso da 3.ª estrofe – acrescentando um verso novo.
 
▪ O 2.º verso do quarto dístico retoma o 2.º verso do segundo dístico e repete, com variação, o 2.º verso do terceiro dístico = o 2.º verso da 2.ª estrofe é o 1.º verso da 4.ª; e assim sucessivamente.
 
▪ A progressão do pensamento verifica-se apenas no 2.º verso das estrofes ímpares.
 
            Através do paralelismo perfeito, é possível construir uma composição de 6 estrofes e 18 versos em que apenas há 5 versos semanticamente diferentes, incluindo o refrão.
 

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Análise da cantiga "Levad', amigo que dormides as manhanas frias"


Assunto: a donzela chama o amigo e lembra-lhe que agora, nas manhãs frias, já não a procura de madrugada. Quando ele vinha, as aves cantavam as alegrias daquele amor.
      O amor arrefeceu da parte do amigo e tudo se transformou: as aves deixaram os ramos e as fontes.


 Tema: o amor desfeito:
- a ferida do abandono, da falta de atenção por parte do amigo;
- a acusação / apelo, não em nome próprio, mas em nome das aves, dos ramos, das manhãs, das fontes;
- a ausência do amor e o seu reflexo destrutivo na natureza.


 Estrutura interna




Tudo se modifica pela ausência do amigo e o espaço fica vazio, sem a presença das aves, tal como o espaço do seu coração está vazio sem a presença do amigo = amor.
O refrão, na segunda parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.

                Esta cantiga é uma alba, ou seja, a acção ocorre nas primeiras horas da manhã e põe fim a uma noite de amor entre a donzela e o amigo.
                Quando fala no presente, estamos perante uma relação que acabou, que, de ardente, se tornou fria. Ocorre-lhe então a lembrança do amor feliz da Primavera. O pretérito perfeito marca a ideia de que ele é que cortou os ramos e secou as fontes do amor de ambos. Em suma, o pretérito perfeito marca a irreversibilidade da situação.
                De acordo com os autores do manual Entre nós e as palavras 10, o apelo da donzela, expresso logo no verso 1 da cantiga, traduzirá o seu apelo dirigido ao amigo, para que este se levante depois de terem passado a noite juntos. Assim sendo, não obstante o facto de o amigo se ter vindo a distanciar gradualmente da donzela e da relação entre ambos, é possível considerar que ela ainda se mantém no presente.
                Por outro lado, o pormenor de as manhãs serem caracterizadas como «frias» significará o arrefecimento da relação amorosa, pelo que o apelo da donzela poderá representar, simbolicamente, o seu desejo de que o amigo deixe de dormir (isto é, de assumir um papel passivo) e faça algo no sentido de reverter o processo de destruição da relação amorosa. (Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, in Entre nós e as palavras 10, Santillana, pág. 34).


● Dupla leitura do texto

                O gesto do amigo, ao tirar os ramos onde estavam as fontes e ao secar as fontes onde bebiam e tomavam banho, poderá significar que pretendia afastá-las, de modo que o amor existente entre si e a donzela se mantivesse secreto.
                Por outro lado, esses atos podem significar o fim do seu amor pela donzela e, consequentemente, da relação entre ambos.


Cenário: natural ® aves, ramos, fontes.


Relação amor/natureza

                Esta cantiga evidencia um tópico/tema que posteriormente será desenvolvido por autores como Petrarca ou Camões: a natureza reflete a relação amorosa entre o par amoroso – canta e espalha a alegria amorosa; reflete o esfriar amoroso, através das "manhãs frias", da queda dos ramos e da secagem das fontes.
                Por outro lado, está também presente a oposição clássica entre a mudança cíclica da natureza e a irreversibilidade da mudança do sentimento amoroso. De facto, essas ações e o desaparecimento das aves remete para a destruição de um cenário primaveril, conotado com a juventude, o amor, a esperança e a harmonia, e a sua redução a um espaço de tom invernal, associado à tristeza, à solidão, ao abandono, à esterilidade e à morte. Assim se sugere a destruição do amor por parte do amigo.


● Simbologia das aves

                As aves, através do seu canto, simbolizam o amor e a felicidade dele resultante. Por outro lado, também através do canto, poderiam divulgar o amor vivido entre a donzela e o amigo, daí surgirem personificadas.


Recursos poético-estilísticos

                1. Nível fónico

. Estrofes: oito estrofes heterométricas de 3 versos.
. Metro: versos de 12 sílabas e 8 no refrão.
. Rima         - AAR / BBR;
- emparelhada;
- toante ("frias" / "diziam") e consoante ("dizian" / "havian");
- rica ("frias" / "dizian") e pobre ("dizian" / "havian");
- grave.
. Ritmo binário, lento, de acordo com a tristeza da donzela pela indiferença do amigo.
. Refrão: na 1.ª parte, traduz a alegria da donzela por amar e ser amada e feliz; na 2.ª parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.
. Aliteração: repetição das consoantes v e s.
. Assonância em i e á.


                2. Nível morfossintáctico

. Paralelismo perfeito.
. Leixa-prem.
. Substantivos: aves ® refletem a felicidade amorosa, cantando o amor, e a ausência do amor;
aves, manhãs, ramos, fontes ® substantivos que refletem, num primeiro momento, a felicidade amorosa, e, num segundo momento, a ausência e o seu reflexo destrutivo na natureza.
. Adjetivos: frias ® caracteriza a frieza amorosa presente, isto é, a ausência do amor;
leda ® refere-se, na 1.ª parte, à felicidade da donzela e, na 2.ª, adquire um tom irónico.
. Funções da linguagem:
. apelativa:
- verbos no imperativo;
- vocativos;
. expressiva:
- adjetivos;
- refrão.
. Verbos:
. modos:
® indicativo: o modo da realidade;
® imperativo: o apelo da donzela ao amigo para que se levante, ou seja, que retome o amor por ela;
. tempos:
® pretérito imperfeito             - "as aves cantavan" \ nosso amor  -  Primavera
- "en ment' avian"    /
® pretérito perfeito            - "vós lhi tolhestes os ramos" \ destruição do amor
- "vós lhi secastes as fontes"   /
® presente       - "levade"       \ manhãs frias  -  Inverno
                                - "dormides" /
. Anáfora.
. Hipérbato.
. Frases: declarativas.
. Construção oracional: predomínio da coordenação.


                3. Nível semântico

. Apóstrofe dirigida ao amigo, apelando-lhe ao retorno e ao amor.
. Personificação das aves, que reflectem a relação amorosa, nos bons e maus momentos.
. Metáforas:
- "vós lhi tolhestes os ramos em que siian" \ significam que o amigo destruiu o amor
- "e lhis secastes as fontes u se banhavam"  / de ambos, destruiu o sustento e a habitação do amor.
. Hipérbole: “todalas aves do mundo” – o canto melodioso das aves sugere a intensa alegria causada pela paixão.


Classificação

                1. Cantiga de amigo.

1.1. Temática: alba / alvorada / serena.

1.1.1. Relação com as albas provençais: a alba tem como cenário o amanhecer, que desperta os amantes, acordados pelo corneteiro da corte ou por um amigo do amante. Por isso se diz que a lírica provençal fala de um amor adúltero.
                Na lírica galego-portuguesa, não há albas como na lírica provençal e, como tal, a sua designação é difícil. Na lírica galego-portuguesa, fala-se do amanhecer, mas nunca da relação adúltera e da separação dos amantes.

1.2. Formal:
- cantiga paralelística perfeita;
- cantiga de refrão.
                O refrão mantém-se inalterado ao longo da cantiga, não obstante o seu valor ser diferente em casa uma das partes.
                Com efeito, na primeira, ele traduz a alegria e a felicidade vividas pela donzela, a evocação dos momentos idílicos da relação amorosa, enquanto na segunda traduzem o lamento amargurado da jovem face à destruição progressiva do relacionamento.
                Por outro lado, a ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.

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