Português: Análise da cantiga "Levad', amigo que dormides as manhanas frias"

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Análise da cantiga "Levad', amigo que dormides as manhanas frias"


Assunto: a donzela chama o amigo e lembra-lhe que agora, nas manhãs frias, já não a procura de madrugada. Quando ele vinha, as aves cantavam as alegrias daquele amor.
      O amor arrefeceu da parte do amigo e tudo se transformou: as aves deixaram os ramos e as fontes.


 Tema: o amor desfeito:
- a ferida do abandono, da falta de atenção por parte do amigo;
- a acusação / apelo, não em nome próprio, mas em nome das aves, dos ramos, das manhãs, das fontes;
- a ausência do amor e o seu reflexo destrutivo na natureza.


 Estrutura interna




Tudo se modifica pela ausência do amigo e o espaço fica vazio, sem a presença das aves, tal como o espaço do seu coração está vazio sem a presença do amigo = amor.
O refrão, na segunda parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.

                Esta cantiga é uma alba, ou seja, a acção ocorre nas primeiras horas da manhã e põe fim a uma noite de amor entre a donzela e o amigo.
                Quando fala no presente, estamos perante uma relação que acabou, que, de ardente, se tornou fria. Ocorre-lhe então a lembrança do amor feliz da Primavera. O pretérito perfeito marca a ideia de que ele é que cortou os ramos e secou as fontes do amor de ambos. Em suma, o pretérito perfeito marca a irreversibilidade da situação.
                De acordo com os autores do manual Entre nós e as palavras 10, o apelo da donzela, expresso logo no verso 1 da cantiga, traduzirá o seu apelo dirigido ao amigo, para que este se levante depois de terem passado a noite juntos. Assim sendo, não obstante o facto de o amigo se ter vindo a distanciar gradualmente da donzela e da relação entre ambos, é possível considerar que ela ainda se mantém no presente.
                Por outro lado, o pormenor de as manhãs serem caracterizadas como «frias» significará o arrefecimento da relação amorosa, pelo que o apelo da donzela poderá representar, simbolicamente, o seu desejo de que o amigo deixe de dormir (isto é, de assumir um papel passivo) e faça algo no sentido de reverter o processo de destruição da relação amorosa. (Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, in Entre nós e as palavras 10, Santillana, pág. 34).


● Dupla leitura do texto

                O gesto do amigo, ao tirar os ramos onde estavam as fontes e ao secar as fontes onde bebiam e tomavam banho, poderá significar que pretendia afastá-las, de modo que o amor existente entre si e a donzela se mantivesse secreto.
                Por outro lado, esses atos podem significar o fim do seu amor pela donzela e, consequentemente, da relação entre ambos.


Cenário: natural ® aves, ramos, fontes.


Relação amor/natureza

                Esta cantiga evidencia um tópico/tema que posteriormente será desenvolvido por autores como Petrarca ou Camões: a natureza reflete a relação amorosa entre o par amoroso – canta e espalha a alegria amorosa; reflete o esfriar amoroso, através das "manhãs frias", da queda dos ramos e da secagem das fontes.
                Por outro lado, está também presente a oposição clássica entre a mudança cíclica da natureza e a irreversibilidade da mudança do sentimento amoroso. De facto, essas ações e o desaparecimento das aves remete para a destruição de um cenário primaveril, conotado com a juventude, o amor, a esperança e a harmonia, e a sua redução a um espaço de tom invernal, associado à tristeza, à solidão, ao abandono, à esterilidade e à morte. Assim se sugere a destruição do amor por parte do amigo.


● Simbologia das aves

                As aves, através do seu canto, simbolizam o amor e a felicidade dele resultante. Por outro lado, também através do canto, poderiam divulgar o amor vivido entre a donzela e o amigo, daí surgirem personificadas.


Recursos poético-estilísticos

                1. Nível fónico

. Estrofes: oito estrofes heterométricas de 3 versos.
. Metro: versos de 12 sílabas e 8 no refrão.
. Rima         - AAR / BBR;
- emparelhada;
- toante ("frias" / "diziam") e consoante ("dizian" / "havian");
- rica ("frias" / "dizian") e pobre ("dizian" / "havian");
- grave.
. Ritmo binário, lento, de acordo com a tristeza da donzela pela indiferença do amigo.
. Refrão: na 1.ª parte, traduz a alegria da donzela por amar e ser amada e feliz; na 2.ª parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.
. Aliteração: repetição das consoantes v e s.
. Assonância em i e á.


                2. Nível morfossintáctico

. Paralelismo perfeito.
. Leixa-prem.
. Substantivos: aves ® refletem a felicidade amorosa, cantando o amor, e a ausência do amor;
aves, manhãs, ramos, fontes ® substantivos que refletem, num primeiro momento, a felicidade amorosa, e, num segundo momento, a ausência e o seu reflexo destrutivo na natureza.
. Adjetivos: frias ® caracteriza a frieza amorosa presente, isto é, a ausência do amor;
leda ® refere-se, na 1.ª parte, à felicidade da donzela e, na 2.ª, adquire um tom irónico.
. Funções da linguagem:
. apelativa:
- verbos no imperativo;
- vocativos;
. expressiva:
- adjetivos;
- refrão.
. Verbos:
. modos:
® indicativo: o modo da realidade;
® imperativo: o apelo da donzela ao amigo para que se levante, ou seja, que retome o amor por ela;
. tempos:
® pretérito imperfeito             - "as aves cantavan" \ nosso amor  -  Primavera
- "en ment' avian"    /
® pretérito perfeito            - "vós lhi tolhestes os ramos" \ destruição do amor
- "vós lhi secastes as fontes"   /
® presente       - "levade"       \ manhãs frias  -  Inverno
                                - "dormides" /
. Anáfora.
. Hipérbato.
. Frases: declarativas.
. Construção oracional: predomínio da coordenação.


                3. Nível semântico

. Apóstrofe dirigida ao amigo, apelando-lhe ao retorno e ao amor.
. Personificação das aves, que reflectem a relação amorosa, nos bons e maus momentos.
. Metáforas:
- "vós lhi tolhestes os ramos em que siian" \ significam que o amigo destruiu o amor
- "e lhis secastes as fontes u se banhavam"  / de ambos, destruiu o sustento e a habitação do amor.
. Hipérbole: “todalas aves do mundo” – o canto melodioso das aves sugere a intensa alegria causada pela paixão.


Classificação

                1. Cantiga de amigo.

1.1. Temática: alba / alvorada / serena.

1.1.1. Relação com as albas provençais: a alba tem como cenário o amanhecer, que desperta os amantes, acordados pelo corneteiro da corte ou por um amigo do amante. Por isso se diz que a lírica provençal fala de um amor adúltero.
                Na lírica galego-portuguesa, não há albas como na lírica provençal e, como tal, a sua designação é difícil. Na lírica galego-portuguesa, fala-se do amanhecer, mas nunca da relação adúltera e da separação dos amantes.

1.2. Formal:
- cantiga paralelística perfeita;
- cantiga de refrão.
                O refrão mantém-se inalterado ao longo da cantiga, não obstante o seu valor ser diferente em casa uma das partes.
                Com efeito, na primeira, ele traduz a alegria e a felicidade vividas pela donzela, a evocação dos momentos idílicos da relação amorosa, enquanto na segunda traduzem o lamento amargurado da jovem face à destruição progressiva do relacionamento.
                Por outro lado, a ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.

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