● Assunto:
a donzela constata que tudo muda – os homens, os tempos, etc. –, geralmente
para pior, exceto o coração do amigo por ela.
● Tema: a mudança.
● Estrutura interna
▪ 1.ª
parte (1.ª estrofe) – Tese: tudo muda (para pior), exceto o coração
do amigo de a amar.
▪ 2.ª
parte (2.ª estrofe) – Desenvolvimento da tese – a mudança no homem:
. de terra
. de estatuto
socioeconómico
. de amor
≠
. a constância do amor
do amigo
▪ 3.ª
parte (3.ª estrofe) – Confirmação da tese – tudo muda:
. o próprio tempo
. o homem
. a natureza
≠
. exceto o amor do
amigo
Nesta cantiga de
amigo, João Airas de Santiago desenvolve o tema de que tudo passa e só o amor
permanece.
De facto, na
composição aborda-se a mudança, sendo clara a oposição entre a instabilidade do
mundo e a segurança do amor que existe entre a donzela e o seu amigo: tudo
muda, à exceção do amor que ele sente por si.
Deste modo, a cantiga
estrutura-se da seguinte forma: nos primeiros 4 versos de cada estrofe, a
donzela afirma que tudo muda no mundo e, nos dois últimos (incluindo o refrão
monóstico), exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário
(último verso de cada cobla) [lítotes]: o coração do seu amigo nunca
deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçon partir / do meu amigo de mi querer bem.”).
Na primeira estrofe,
a partir da observação do mundo, a donzela conclui que tudo muda e nada se mantém
igual (“Todalas coisas eu vejo partir / do mud’em como soíam seer” – vv. 1-2 –,
ou seja, ela observa que certas coisas e situações deixam de existir como antes
existiam, coisas a que estava habituada) e as pessoas deixam de praticar o bem,
deduzindo-se que passaram a fazer o mal (vv. 3-4). Esta constatação provoca o
espanto do «eu» (“tal tempo vos vem!” – v. 4) relativamente ao tempo (presente)
que vive, que pode ser comparado ao passado. De facto, a exclamação do verso 4
sugere que o sujeito poético se espanta por tudo mudar e, principalmente, pelo
facto de a mudança se operar em sentido negativo: as pessoas já não fazem o “bem”
– como era costume –, daí o espanto. A exceção a esta mudança constante é o
amor do amigo por si: ao contrário do mundo e das pessoas em geral, o coração (metonímia
que traduz a origem do amor) do seu amigo não deixa de a amar (“mais non se pod’o
coraçom partir / do meu amigo de mi querer bem” – vv. 5-6). Ou seja, o seu amigo
não mudará, não deixará de a amar. Note-se que a palavra «coração» é repetida
no penúltimo verso de cada estrofe (dobre), repetição que acentua a
importância do sentimento amoroso. Este contraste é marcado pela conjunção adversativa
«mais» (= «mas»). Ao nível da linguagem, há a destacar o uso da primeira
pessoa, que parece centrar o poema numa questão de interesse pessoal: a
constância do amor do amigo por si.
A segunda estrofe
abre com a referência à mudança no Homem (isto é, no ser humano, em geral): o
coração dos homens afasta-se das “cousas que ama” (v. 8), o homem muda da “terra
ond’é” (v. 9) e “d’u grande prol tem” (v. 10). Neste passo, o sujeito poético
apresenta o (mau) exemplo dos indivíduos que abandonam e se afastam de um lugar
onde (“d’u”) vivem com benefícios e vantagens (“gran prol”) – verso 10. Este
lugar de onde se parte pode até ser o que é referido no verso anterior (“e
parte-s’home da terra ond’é” –, ou seja, a terra onde se vive. Neste passo,
está implícita uma comparação antitética entre o comportamento do
“home [que] part’o coraçon / das cousas que ama” e o do amigo, que continua a “querer
bem” à donzela. Em resumo: ainda que (“pero que”) outros homens deixem de amar,
o seu amigo não deverá imitá-los. Nesta cobla, a antítese é marcada pela
locução concessiva “pero que” (“ainda que”).
Em suma: o homem
afasta-se das “cousas que ama” e fica a saber-se, pela anáfora dos
versos 9 e 10, que essas «cousas» são a “terra ond’é” e “a “prol” que possui.
Na última estrofe,
nota-se a repetição do verso 1 no verso 13 apenas com a mudança do
vocábulo «partir» para o seu sinónimo «mudar», acentuando a ideia de
mudança que rodei a dozela, mudança que é global (“tempos”, “o al”, “a gente”, “ventos”
e “tod’outra ren”), mas na qual não se inclui o coração do seu amigo. Esta
oposição é marcada, mais uma vez, através da conjunção adversativa «mas». O uso
da anadiplose «mudar» / «mudam-s” chama a atenção para o fator “mudança”,
reforçado pela anáfora dos versos 14 a 16 e pelos polissíndetos.
Por outro lado, a rima interna entre «tempos» e «ventos» traduz
exatamente a ideia de transitoriedade.
Em suma, de acordo com
a terceira cobla, a mudança atinge “al” (tudo) e “tod’outra ren” (todas as
coisas).
● Refrão
O refrão (juntamente
com o penúltimo de cada estrofe) demonstram, por um lado, o otimismo e a
alegria da donzela, uma confiança no amor fiel do seu amigo. Através do verso
repetido, ela afirma e reafirma uma situação que não deve alterar-se: nada deve
mudar e o sentimento amoroso há de permanecer.
Por outro lado, a
insistência que o refrão estabelece tem um significado próprio. De facto, à primeira
vista, ele diz e repete que o amigo deve manter o coração firme. No entanto,
podemos questionar: aquela insistência não quererá dizer também que há alguma insegurança
por parte da mulher? Será o coração do amigo capaz de resistir à tendência que em
tudo se observa para a mudança?
● Dimensão moral e filosófica da cantiga
O uso da 1.ª
pessoa logo no verso 1 permite concluir que o poema se centra numa questão
de interesse pessoal: a lealdade do amigo. No entanto, a segunda estrofe alarga
a reflexão do «eu» a considerações de caráter filosófico. Por exemplo, o «home»
de que aí se fala não corresponde a nenhum homem em particular, antes evoca a
condição humana em geral.
Nessa reflexão está
implícita a comparação entre o presente e o passado, concluindo-se que as
coisas já não são “como soíam seer”. Esta comparação introduz na cantiga
uma tensão dramática, isto é, um conflito entre o que antes era e o que agora é,
que se acentua quando se confronta o comportamento do homem que “part’o coraçon
/ das cousas que ama” com o que é esperado do amigo da donzela.
Assim, se pela forma
estamos perante uma cantiga de amigo, pelo tema e pelo propósito ela
aproxima-se muito do chamado sirventês moral, que é uma composição de
origem provençal que se ocupa, em termos gerais, da crise de valores morais ou
religiosos, em estreita conexão com a decadência de costumes sociais.
Segundo Carlos Reis (Leituras
Orientadas, p. 66), «o “partir do mundo” que motiva a cantiga pode ser lido
como uma imagem que lembra a ameaça do fim de todas as coisas, um fim que a
mudança vai preparando. Ao mesmo tempo, [este poema] anuncia alguma poesia que
veio depois: o soneto de Camões que começa “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, o emocionante poema “Mignonne, allons voir si la rose”, do poeta
francês Ronsard, que nos diz da rápida mudança da juventude para a velhice; e,
muito mais próximo de nós, o “Soneto da fidelidade”, de Vinicius de Moraes que,
em tom de paródia, fala de um sentimento amoroso “que não seja imortal, posto
que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”.
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