Português: Fernão Lopes
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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A crise de 1383-1385

 
● Em 1357, D. Pedro I subiu ao trono, sucedendo a seu pai, D. Afonso IV, que, no anterior, tinha mandado matar D. Inês de Castro, amante do então príncipe D. Pedro, que posteriormente a declarou rainha, vingando-se de quem a assassinara.
 
● Em 1367, D. Pedro morreu, deixando D. Fernando como herdeiro do trono, bem como vários filhos bastardos (isto é, nascidos de relações fora do casamento). Um desses bastardos era o futuro D. João I, Mestre de Avis.
 
● D. Fernando nasceu em Coimbra, em 31 de outubro de 1345. Quando subiu ao trono, aos 21 anos, herdou um reino em paz e um erário muito rico.
 
● Durante o reinado ocorreram algumas guerras com Castela, até porque D. Fernando cria que o novo rei de Castela, D. João, seria um guerreiro fácil. Em 1371, casou com Leonor Teles, que vinha de um primeiro casamento, entretanto anulado. Esta união causou grande desagrado e movimentos de revolta popular em Lisboa.
 
● Em 1372, foi assinado um tratado de proteção e apoio com a Inglaterra, o qual foi reforçado no ano seguinte. Isto provocou outra guerra com Castela, da qual D. Fernando saiu derrotado.
 
● Entre 1375 e 1380, D. Fernando produziu leis de auxílio à agricultura (Lei das Sesmarias), à construção de navios e ao comércio.
 
● Em 1381 e 1382, Portugal foi invadido pelas tropas de D. João I de Castela. Depois do restabelecimento da paz e para a reforçar, foi estabelecido o Tratado de Salvaterra de Magos: a infanta D. Beatriz, herdeira do trono de Portugal, casaria com o rei / herdeiro de Castela (casamento esse que estará na origem dos problemas de sucessão dinástica que ocorreram pouco depois); se D. Fernando falecesse seu filho varão, as coroas de Portugal e Castela, embora separadas, seriam cingidas por D. João e D. Beatriz; quando estes falecessem, as coroas seriam herdadas pelos seus sucessores; se não os possuíssem nem D. Fernando outro(a) filho(a), ambas as coroas passariam para quem fosse rei de Castela; se D. Fernando falecesse sem mais filhos nem netos maiores de 14 anos, D. Leonor Teles, a sua viúva, ficaria como regente do reino.
 
● Passados 7 meses, em 1383, a 22 de outubro, D. Fernando morreu em Lisboa, nove dias antes de completar 38 anos. Em conformidade com o Tratado de Salvaterra de Magos, na falta de herdeiro masculino, D. Leonor Teles ficou como regente do reino. A sucessão passou para a única filha legítima, D. Beatriz. As cláusulas do matrimónio confiavam a regência e o governo do reino a Leonor Teles, até filho ou filha nascer a Beatriz. Por ter casado com a herdeira do trono português, o rei de Castela entendeu que tinha direito ao de Portugal, o que punha em causa a independência nacional, e decidiu invadir Portugal e tomar conta do poder.
 
● A partir daí, o descontentamento disparou, não propriamente contra D. Beatriz, mas contra o seu marido e contra Leonor Teles, e as revoltas sucederam-se em diversos locais, sobretudo em Lisboa. Num desses movimentos (que envolveu o povo, a burguesia e a pequena nobreza), foi assassinado o conde João Fernandes Andeiro, no dia 6 de dezembro de 1383. D. João, Mestre de Avis, apesar de alguma hesitação, afirmou-se então como líder dos que se opunham a Leonor Teles – Andeiro e D. João I – Beatriz, acabando por ser designado como «Regedor e Defensor do Reino», contra todos os tratados e à revelia de todo o direito. O próprio D. João I ajudou a assassinar o conde Andeiro, obrigou D. Leonor Teles a fugir e a unir forças com D. João I de Castela. Posteriormente, enviou embaixadores a Inglaterra com o propósito de renovar a aliança política contra Castela e começou a organizar a resistência.
 
● Em 1384, D. João de Castela pôs cerco a Lisboa, que durou cerca de cinco meses, mas uma mortífera epidemia de peste forçou-o a regressar a casa, em outubro, para reunir novas tropas. Nesse ano, Nuno Álvares Pereira comandou as tropas portuguesas que venceram os castelhanos na batalha de Atoleiros, no Alentejo.
 
● Segundo o professor Carlos Reis, a guerra com Castela teve três fases principais: na primeira (entre janeiro e outubro de 1834), D. João I de Castela invadiu Portugal e cercou Lisboa; entretanto, os Portugueses, chefiados por Nuno Álvares Pereira, filho ilegítimo do Mestre dos Hospitalários, derrotaram os Castelhanos em Atoleiros. Na segunda fase (entre maio e outubro de 1385), D. João de Castela invadiu Portugal de novo, mas foi derrotado em Aljubarrota por um exército português muito mais pequeno, mas melhor organizado e apoiado por archeiros e por conselheiros ingleses (além de outras batalhas menores, como Trancoso ou Valverde). Na terceira fase (entre julho de 1386 e novembro de 1387), um tratado formal entre Portugal e a Inglaterra trouxe o duque de Lancaster à Península Ibérica como pretendente à coroa castelhana. Uma primeira trégua foi assinada em 1387.
 
● Em 1385, realizaram-se as Cortes de Coimbra, onde D. João, Mestre de Avis, foi reconhecido e aclamado como rei de Portugal, depois de se ter libertado de outros dois pretendentes (D. João e D. Dinis, filhos ilegítimos do rei D. Pedro e de Inês de castro), com a ajuda de um famoso legista, João das Regras, enteado de Álvaro Pais, que ele prontamente nomeou seu primeiro chanceler.
 
● O rei de Castela voltou a invadir novamente Portugal com um exército que incluía a maioria da nobreza portuguesa. Os dois exércitos enfrentaram-se no dia 14 de agosto de 1385, em Aljubarrota. Os Portugueses triunfaram, graças à ação de Nuno Álvares Pereira, já então condestável do exército português. Esta derrota dos castelhanos teve consequências políticas definitivas. As vitórias nas batalhas de Aljubarrota, Trancoso e Valverde, com a ajuda de tropas inglesas, confirmaram aquele reconhecimento e o início da dinastia de Avis.
 
● A partir de então, foi-se estabelecendo uma certa normalidade na vida pública portuguesa. Em 1387, o tratado de Windsor reafirmou a aliança com a Inglaterra, reforçada pelo casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, que pertencia à família real inglesa. Em 1381, nasceu o príncipe D. Duarte, que sucedeu a D. João I.
 
Entre 1396 e 1402, aconteceu uma nova guerra com Castela, ainda motivada pela ambição do trono de Portugal. Só em 1411 o tratado de Segóvia terminou os conflitos entre Portugal e Castela, que vinham praticamente desde o reinado de D. Fernando.
 
● Em 1414, decidiu-se a expedição e conquista de Ceuta, que teve lugar no ano seguinte, em 1415, a 21 de agosto, data que marca o início da expansão portuguesa, que se estendeu até ao século XVI.
 
● Em 1433, morreu D. João I, sucedendo-lhe o seu filho D. Duarte, que no ano seguinte – 1434 – nomeou Fernão Lopes cronista-mor do reino.
 
● O reinado de D. Duarte durou cerca de cinco anos. Após a sua morte, em 1438, sucedeu-lhe D. Afonso V, passando a rainha Leonor de Aragão regente até à maioridade do príncipe.
 
● Foi no reinado de D. Afonso V, em 1454, que Fernão Lopes, já idoso, deixou de ser cronista-mor do reino.
 
Todos estes acontecimentos estiveram na base de mudanças sociais que anunciavam o fim de um modo de viver e de pensar, que era o da Idade Média. Algumas dessas mudanças sociais e mentais foram as seguintes:
• A distinção entre nobreza e povo vai perdendo significado na segunda metade do século XIV e na primeira metade do século XV.
• As profissões lucrativas, como era o caso dos mesteirais, começam a ganhar importância, pois têm um ofício com alguma dignidade social. Este fenómeno ocorre essencialmente nas cidades e dá origem a corporações: a dos sapateiros, a dos alfaiates, a dos ferreiros, a dos pedreiros, etc.
• Os mesteirais não se confundem com a chamada “arraia-miúda”, ou seja, vendedores ambulantes, lavadeiras, ajudantes de mesteirais, serviçais, etc.
• Algumas (poucas) pessoas que tinham origem em famílias de mesteirais estudam e podem ser consideradas letradas (os juristas, os notários, etc.). Terá sido o que sucedeu com Fernão Lopes.
• Uma nova classe social vai-se afirmando – a burguesia –, que ganha poder, graças ao comércio e à produção de bens com valor material, que lhe permite intervir ativamente na vida pública, designadamente nas Cortes. É a burguesia (os chamados «homens-bons») que afirma o patriotismo e a ideia de pátria como valores a defender em momentos de crise. Foi o que aconteceu na crise dinástica de 1383-1385.
 

A peste negra em Portugal

 
A peste negra chegou a Portugal no outono de 1348 e terá causado a morte a quase metade da população nacional, o que mergulhou o país no caos: muitas aldeias ficaram despovoadas, deu-se um enorme êxodo rural (um grande número de trabalhadores deixou as terras na esperança de uma vida melhor na cidade), a produção agrícola – nomeadamente a cerealífera – ressentiu-se imenso. Por isso, em 1375, D. Fernando publicou a Lei das Sesmarias, que obrigava os antigos camponeses a cultivar a terra, mediante salários tabelados.
 

Fim da Idade Média e o início dos tempos modernos

 
● O século XIV, na Europa, foi marcado por vários acontecimentos / factos:

▪ grande recessão económica;

▪ guerras sucessivas flagelaram as populações;

▪ alterações climáticas diminuíram a produção agrícola;

▪ períodos de fomes cíclicas;

▪ grande instabilidade social: os burgueses acusavam os senhores de saques, de cobrar taxas enormes e de lhes fazer concorrência desleal no comércio; levantamentos populares, com os burgueses a agruparem-se em reuniões para se defenderem das desvalorizações; a «arraia miúda», cansada de tanta exploração, atacava os castelos;

▪ a pandemia de peste negra, originada na Crimeia e que se espalhou pela Europa entre 1347 e 1350, que terá causado a morte de um terço da população europeia – esta pandemia foi a principal causa do caos que se viveu na Europa.

 

quinta-feira, 21 de março de 2019

Estilo e arte narrativa de Fernão Lopes

. As crónicas de Fernão Lopes enquadram-se numa fase da língua portuguesa normalmente conhecida como português antigo e exibem construções sintáticas, expressões e vocabulário com marcas da língua de um período de amadurecimento. Apesar dos arcaísmos (“talente”, “aadur”, “açalmamento”) e de construções arcaicas (“Ca nenhuu por estonce podia outra cousa cuidar”), é claro que a língua portuguesa já sofreu uma evolução que a distingue dos seus primórdios.

. Na Crónica de D. João I, a narração alterna com a descrição e com o diálogo para incutir vivacidade e energia no relato dos episódios mais relevantes da Crise de 1383-1385. Fernão Lopes cria ritmo e tensão através da forma expressiva de narrar os acontecimentos e da introdução de discurso direto no relato (“– U matom o Meestre?”).

. A vivacidade, o ritmo e a emoção das personagens são também conseguidos através de características do discurso como as marcas de oralidade e a simplicidade da linguagem (registo corrente e vocabulário familiar), os verbos de movimento, os verbos introdutores do discurso (“bradar”), as interjeições e as apóstrofes (“Ó Senhor!”). O dinamismo da ação resulta do uso de tempos, formas e aspetos verbais como o imperfeito do indicativo, o gerúndio e o aspeto durativo. O uso de recursos expressivos é relativamente parco e pouco vai além da comparação, da metáfora e da personificação.

. As descrições são pautadas pelo forte apelo visual, isto é, pelo visualismo. O narrador desempenha o papel da testemunha dos acontecimentos; percorre os espaços e caracteriza os lugares, o ambiente e as figuras (indivíduos ou grupos) que encontra. O uso de verbos associados ao olhar (“oolhae”, “vede”) ajuda a salientar o visualismo das situações descritas. Por vezes, as sensações visuais são associadas às auditivas (cap. XV).

. Numa técnica semelhante à do cinema ou da reportagem, o narrador percorre os espaços, detendo-se em figuras individuais ou em grupos, como sucede na descrição do sofrimento do povo de Lisboa (cap. CXLVIII). Em colaboração com as outras técnicas anteriormente descritas, assim se consegue criar um estilo expressivo que põe em destaque pormenores patéticos (ou seja, de sofrimento) da situação descrita.

. Articulação entre objetividade e subjetividade:
- Objetividade presente no rigor da pormenorização (exs.: descrições pormenorizadas com valor descritivo e informativo);
- Subjetividade presente na apreciação crítica e emotiva dos factos relatados (exs.: interrogação retórica, frase exclamativa).

. Coloquialismo:
- Interpelação do interlocutor (narratário), recorrendo à 2.ª pessoa do plural e à apóstrofe;
- Utilização do verbo ouvir, sugerindo a interação oral;
- Reprodução de cantigas populares;
- Uso de palavras / expressões de sabor popular e / ou arcaizante.

. Visualismo e dinamismo:
- Articulação entre planos gerais (focalização da cidade e dos atores coletivos aque nela intervêm) e planos de pormenor (incidência em grupos de personagens e / ou em situações particulares);
- Recriação dos acontecimentos de forma dinâmica;
- Emprego de vocábulos que marcam o sensorialismo da linguagem (atos de ver e ouvir);
- Emprego de recursos expressivos que conferem visualismo ao relato: comparação, personificação, enumeração, hipérbole.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Construção de uma identidade nacional


. A difusão geral da identidade nacional pela totalidade da população portuguesa dependeu da difusão da escrita e da imprensa, da implantação de um sistema eleitoral, da generalização de práticas administrativas uniformes e da participação ativa da população na vida pública. Note-se, contudo, que a noção de povo soberano, na realidade, se refere ao conjunto dos que se apresentavam como seus representantes.

. A noção de espírito do povo (Volksgeist) implica coerência interna, através de comportamentos comuns a todos os membros de uma comunidade.

. A noção de identidade nacional abarca as noções de «reino», «fronteiras», «naturalidade» e «território». Inicialmente, para as classes populares, porém, o reino implicava apenas uma noção territorial, sem trazer consigo a ideia de uma comunidade constituída por todos os seus habitantes. Quando adquiriu um sentido territorial, a noção de reino passou a implicar também a de «fronteiras». De facto, enquanto significou o poder sobre os vassalos, mais do que o poder sobre o espaço que eles habitavam, a noção de fronteira era uma realidade humana, mutável, imprecisa; normalmente uma zona de combate ou uma área deserta. Afetada pela noção de «naturalidade», passou a considerar-se antes a linha que separava os vassalos de um rei dos do rei vizinho. Tornou-se então complementar na noção de território, e este, por sua vez, interpretou-se como suporte físico da diferença para com aqueles que habitavam para além das respetivas fronteiras. A fronteira sempre separou os «nossos» dos «outros», ou seja, os nacionais dos estrangeiros.

. O processo de consciencialização da identidade nacional foi gradual, pois influenciou primeiro os representantes régios, depois o clero e, em seguida, as restantes classes, influenciadas nesse processo de consciencialização nacional pelos símbolos nacionais: o escudo de armas do rei, a bandeira nacional e a moeda.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Atores individuais e coletivos na 'Crónica de D. João I'

. Como afirma António José Saraiva (1965), a história que Fernão Lopes tinha de contar era bastante complexa, pela diversidade da natureza de cenas que deveria incluir. No entanto, o cronista narra os eventos históricos em causa com enorme mestria, alternando o fio da narrativa com instantâneos intensamente dramáticos, momentos em que, ao desenvolver situações através do confronto de personagens (como, por exemplo, no episódio do assassinato do conde Andeiro), mostra ter características de um verdadeiro dramaturgo.

. Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos criadores de caracteres tanto individuais como coletivos, vindo, por este motivo, a influenciar poetas, romancistas e dramaturgos de épocas posteriores.

1. Atores individuais

. As personagens individuais criadas pelo cronista são variadas e complexas, sendo devassadas na sua intimidade por um olhar incisivo.

. Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo seu protagonismo: D. Leonor Teles, o Mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira.

a) Leonor Teles é caracterizada de forma profundamente negativa, na medida em que é descrita como objeto de um ódio profundo por parte do povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido que queria a independência do trono português e suspeita de ter sido a responsável pela morte do marido, D. Fernando (cf. Cap. XI da Crónica). Apesar disto, Fernão Lopes não oculta a sua grandeza e força, que lhe permitem manipular figuras masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro (filho ilegítimo de D. Pedro e de D. Inês de Castro) e o próprio Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de Castela, recusando-se a ingressar num convento.

b) O Mestre de Avis é caracterizado como um homem vulgar, hesitante e vulnerável às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo, pelas oscilações do seu comportamento aquando da conjura contra o conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à conjura, fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa quando se apercebe de que a conspiração será inevitavelmente descoberta). Apesar destes defeitos – que o tornam uma personagem profundamente realista –, D. João I mostra também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o que o converte numa figura cativante.

c) Nuno Álvares Pereira é caracterizado como um herói hagiográfico, isto é, com traços de santidade, e, ao mesmo tempo, como um grande guerreiro.

2. Atores coletivos

. As personagens coletivas (como, por exemplo, a população de Lisboa) têm um papel ativo e decisivos, determinando o curso dos acontecimentos.

. Com efeito, sempre que é narrado um evento importantes, o cronista faz questão de expor o que pensava dele a opinião pública, como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento em que a população da cidade oscila entre a esperança de que a frota castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos saíssem vitoriosos, exercendo uma vingança cruel sobre os sitiados.

. Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes, resumida através de um dito que sai de uma multidão – como sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de Lisboa, que mostram a profunda determinação dos habitantes da cidade.

. A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos (como sucede aquando da derrota dos castelhanos no cerco de Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da cidade) torna Fernão Lopes um cronista único entre os seus congéneres medievais.


domingo, 27 de janeiro de 2019

Afirmação da consciência coletiva na 'Crónica de D. João I'

. Na Crónica de D. João I emerge um sentimento coletivo do povo português que se traduz na consciência de se pertencer a uma mesma nação. A consciência nacional dos portugueses advém, em grande medida, de temerem a invasão estrangeira (castelhana) e de sentirem a independência do reino e a sua liberdade ameaçadas durante a Crise de 1383-1385. Por isso, Fernão Lopes faz a apologia do rei, mas, principalmente, da resistência ao inimigo castelhano, dando voz a uma coletividade que não aceita o lugar que lhe é destinado dentro do direito senhorial, que cria o seu direito novo, fundado no sentimento nacional, o «amor da terra», e defende-o de armas na mão. A palavra “Portugal” define, não já um território, mas um corpo de gente animado de um pensamento, expressão ainda apenas em esboço do direito pelo qual um novo povo se levantou contra um rei, o direito nacional.

. O sentimento nacional afirma-se porque, nessa ameaça, se fortalece a noção de comunidade. O povo de Lisboa manifesta-se contra a regente D. Leonor e contra a influência estrangeira (Cap. XI) e sofre em conjunto a dureza e as privações do cerco que João de Castela monta à capital (cap. CXLVIII). Contudo, são também portugueses de várias terras e regiões que se mobilizam para preparar a resistência a essa invasão e que enfrentam o exército castelhano nas batalhas de Atoleiros e de Aljubarrota.

. A ideia de ser português está enraizada na «arraia-miúda», isto é, o povo; porém, dela comungam também a burguesia e a nobreza que se mantém fiel à causa patriótica. De facto, o povo ganha a consciência coletiva de que tem um papel mais ativo e quer participar na vida política do reino e na condução dos destinos da nação: intervém para «salvar» o Mestre, mobiliza-se para enfrentar os castelhanos e quer decidir quem será o próximo rei de Portugal.

. Em termos narrativos, a consciência de grupo e o sentimento nacional são representados através da noção de personagem coletiva, quando se trata da multidão de Lisboa, que revela uma vontade comum (cap. XI), que se organiza em conjunto para defender a capital (cap. CXV) e que sofre em conjunto o cerco imposto pelos castelhanos à capital do reino (cap. CXLVIII). Por outro lado, a enumeração de grupos sociais e profissionais (soldados) chama a atenção também para o facto de a unidade nacional se fazer a partir da motivação e do desempenho dos grupos que a compõem.

. No plano da escrita da história, a Crónica de D. João I contribui, ao mesmo tempo, para representar o sentimento coletivo vivido durante a Crise de 1383-1385 e para afirmar essa consciência nacional. A obra foi encomendada pelo rei D. Duarte, filho de D. João I. Um dos objetivos de Fernão Lopes foi demonstrar o patriotismo dos portugueses e valorizar o papel do Mestre de Avis, fundador da Casa de Avis, na defesa da independência do reino e na construção do novo Portugal, que nasce na segunda dinastia. Fernão Lopes ajuda a legitimar (justificar) o direito de D. João I ao trono do reino português.

. Fernão Lopes coloca-nos perante a existência do povo como sujeito da História, do povo que se sente senhor da terra onde nasce, vive, trabalha e morre e que ganha consciência coletiva contra os que querem senhoreá-lo, do povo que é a fonte última do direito. O povo é aquele que ganha a sua vida quer com o trabalho manual (mesteirais e lavradores), quer com a «indústria», isto é, a atividade, habilidade e iniciativa em qualquer ramo produtivo e pacífico. Ou seja, uma das grandes novidades da crónica de Fernão Lopes é o aparecimento do povo como força que se quer afirmar, saindo da passividade medieval, do direito senhorial.


   Crise política de 1383-1385
   (período do país sem rei / período de tomada de consciência de liberdade e responsabilidades)
   . papel decisivo na fase de nomeação do Mestre (cap. XI)
   . vivência heroica dos grandes momentos da revolução:
- preparação do cerco, de forma empenhada e valorosa (cap. CXV)
- vivência da miséria associada à falta de mantimentos durante o cerco (cap. 148)


domingo, 13 de janeiro de 2019

Conceção da História e método historiográfico de Fernão Lopes


. Fernão Lopes, na sua obra, apresenta uma conceção original de História, tanto em relação à tradição historiográfica como aos autores contemporâneos.
. Antes dele, todos os textos que se reportassem a acontecimentos do passado, independentemente de serem lendas, contos tradicionais, romances de cavalaria e narrativas de crónicas e de livros de linhagens, eram aceites como relatos históricos sem que a sua veracidade fosse averiguada.
. A experiência profissional de Fernão Lopes como notário e arquivista não só lhe incutiu a consciência da necessidade de fundar a verdade histórica num documento escrito, como também lhe proporcionou o acesso a documentos escritos e a testemunhos orais, que, caso contrário, lhe estariam vedados.
. No prólogo da Crónica de D. João I, o cronista expõe o seu ponto de vista sobre o trabalho do historiador, descrevendo o método utilizado para tentar manter a imparcialidade:
1. Recolher informação de numerosos testemunhos escritos, de modo a assegurar o rigor dos factos históricos avançados;
2. Apesar de seguir a historiografia anterior no processo de elaboração do texto, procedendo ao corte e montagem de textos de outros autores, sujeito as fontes a uma análise criteriosa, procurando verificar qual seria a mais verosímil ou a mais adequada à lógica interna dos factos; verificou também a verdade desses testemunhos escritos através do seu confronto com documentos oficiais.

Adaptado de Entre nós e as palavras 10, Editorial Santillana.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Capítulo CXLVIII da Crónica de D. João I


🔺 Título: sintetiza o conteúdo temático do capítulo:
- os factos ocorridos durante o cerco a Lisboa (a falta de mantimentos dos sitiados);
- as consequências psicológicas e sociais decorrentes desses factos (o sofrimento da população).


🔺 Tema: as dificuldades de Lisboa face ao cerco castelhano.


🔺 Estrutura interna

🔼Introdução (do início até "vieram na frota do Porto."): Cerco da cidade → fome → escassez de mantimentos, motivado pela quantidade de pessoas existentes na cidade.

                Os mantimentos existentes na cidade gastam-se cada vez mais depressa, tornando-se escassos, devido ao facto de o número de habitantes da cidade aumentar cada vez mais, porque a ela se recolheu muita gente (lá estavam os habitantes de Lisboa, pessoas que vieram dos arredores, famílias inteiras e os que vieram numa frota do Porto para socorrer a capital).


🔼 Desenvolvimento (desde "E alguns se tremetiam..." até ao antepenúltimo parágrafo, inclusive).

1) Tentativas infrutíferas de superar a situação (até “… mester sobrelo conselho.”).

1.1. Procura de trigo no Ribatejo (desde "E alguns..." até "... cinco mil homens.").

a) Motivos da procura:
- o cerco à cidade;
- a presença de muita gente na cidade;
- a falta de alimentos.

b) Resultados: quase nulos
- a oposição castelhana;
- pouco trigo e raro.

c) Estado de alerta constante entre os portugueses.

                Durante a noite, os sitiados embarcam em batéis e vão buscar trigo ao Ribatejo para abastecer a cidade, correndo enorme perigo, pois são atacados pelos castelhanos. Sempre que os sinos repicam e tocam a rebate, a população vai em socorro das galés. Esta recolha de mantimentos obedece, aparentemente, a um plano prévio, dado que parece existir uma partilha de tarefas e funções distribuídas: há aqueles que vão recolher mantimentos que já estavam prontos (“… ali carregavom de trigo que já achavom prestes, per recados que ante mandavom…”), através do Rio Tejo; há sinais combinados para alertar para os perigos, nomeadamente os decorrentes da presença dos castelhanos, etc.: “ali carregavom”; “Os que esperavam…”; “… repicavom logo por lhe acorrerem.”; “… aguardando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra lá, repicavom logo por lhe acorrerem…”.
                Apenas uma vez os galés foram tomadas, graças à denúncia de um “homem natural d’Almadãa”, cujo castigo pela traição foi terrível: “el foi depois tomado e preso e arrastado, e decepado e enforcado.” (enumeração, polissíndeto e gradação).
                No entanto, o trigo é tão pouco e raro que não supre as necessidades (atente-se na comparação com o milagre da multiplicação dos pães).


1.2. Expulsão da cidade da gente incapaz, fraca e pobre [("não pertencentes pera defensão", prostitutas, judeus") – desde "Em esto gastou-se..." até "... mester sobrelo conselho."].

a) Consequências da fome: a ausência de esmolas para os pobres.

b) Motivos:
- não podiam lutar / não podiam contribuir para a defesa da cidade;
- consumiam os mantimentos aos defensores.

c) O drama dos expulsos:
- refúgio no acampamento castelhano (1.º momento): “comer e acolhimento”;
- recusa de refúgio por parte dos castelhanos (2.º momento): para “gastar mais a cidade”, o rei de Castela ordena que mais nenhum sejam acolhido e que todos os que tinham sido sejam expulsos do acampamento.

                Inicialmente, os castelhanos recebem bem as pessoas expulsas da cidade, mas, quando percebem que Lisboa beneficia com isso, dado que haveria menos pessoas para alimentar, mandam-nas regressar.
                Todos os que se recusassem a partir seriam açoitados e obrigados a retornar para a cidade. O seu desespero é total, pois certamente não seriam acolhidos de volta, nomeadamente aqueles que tinham saído voluntariamente, já que preferiam ser prisioneiros dos castelhanos do que morrer à fome.

d) O Mestre ordena que se faça o levantamento do pão existente em Lisboa, tendo-se concluído que é muito escasso.


2) Fome da população: carência de pão e carne (desde "Na cidade não havia trigo..." até "...tam presentes tinham?").

a) Valor/preço dos mantimentos: alto e exagerado, dada a sua escassez.

b) Natureza dos mantimentos:
- pão de bagaço de azeitona e dos bolbos das malvas;
- raízes de ervas;
- melaço cristalizado;
- criação de porcos;
- comércio de galinhas, ovos e bois;
- carne das bestas.

c) O drama dos que padecem:
- a animalização das pessoas, que procuram desesperadamente comida no chão;
- a morte;
- os peditórios: as crianças mendigam pela cidade, pedindo comida;
- a falta de leite das mães.

d) O drama dos que morrem:
. a morte provocada pela ingestão de determinados alimentos e de água;
. a morte provocada pela fome.


3) Resistência da população: o patriotismo e a solidariedade da população – apesar da situação extrema de penúria e de desespero, do ambiente de tristeza e de conflitos ocasionais banais, sempre que os sinos repicam, todos se aprestam para enfrentar o inimigo castelhano; por outro lado, consolam-se uns aos outros naquele momento de infortúnio.

                De facto, apesar de famintos e extenuados, são solidários uns com os outros e corajosos contra os castelhanos, continuando a manifestar uma identidade coletiva que os une num propósito comum.
                Mais uma vez, a cidade é apresentada como uma personagem coletiva, um ser só: “Toda a cidade era dada a nojo” (isto é, toda a cidade sofria, tanto os pobres como os ricos – “grandes pessoas da cidade”). Assim, Lisboa é apresentada como um grande corpo coletivo que sofre.


4) Fome e desespero – Tentativas infrutíferas de ultrapassar a situação (desde "Oh quantas vezes..." até "... podia obrar."): recurso a Deus:
- missas;
- preces.

                A população reza, devota e desesperadamente, pedindo a Deus que a ajude, mas, vendo que as suas preces não são atendidas e que a sua dor é cada vez maior, chega a pedir a morte.


5) A incapacidade do Mestre resolver a situação (desde “Sabia, porém…” até “… rumor do povo.”)

                o Mestre e os seus, sabendo que nada podem fazer, sentem-se impotentes e ignoram os lamentos da população.
                Neste passo, aparentemente Fernão Lopes critica a ação de D. João e do seu Conselho, dado que “çarravom suas orelhas do rumor do poboo”, parecendo assim o cronista cumprir a imparcialidade e a neutralidade enunciadas no “Prólogo” à crónica.


6) O desespero da população (desde “Como nom quereis…” até “… per duas guisas.”) – dois inimigos: a fome e o rei de Castela levam ao desejo de morte.


7) Tentativa de superar a fome: corre o boato de que o Mestre irá expulsar da cidade todos os que não tenham alimentos, o que intensifica o desespero das pessoas, transformado em alívio ao saberem que tal não é verdade.


8) Justificação da situação de fome:
- excesso de população (a quantidade de pessoas que se recolheu dentro das muralhas da cidade);
- a falta de alimentos.


                Em suma, a falta de alimentos e o aumento do número de habitantes da cidade de Lisboa durante o cerco castelhano tem como consequências:
. a diminuição das esmolas públicas (ll. 24-25), o que evidencia falta de solidariedade desumanização;
. a expulsão da cidade de todas as pessoas consideradas incapazes de a defender;
. a falta de trigo para vender e consequente subida do preço de vários produtos (trigo, vinho, pão e carne), o que origina a fome entre a população, que come qualquer coisa, e a morte de muitas pessoas;
. o apego à religião constitui uma forma de mitigar todos os sofrimentos vividos.

                Em suma, a falta de alimentos e o aumento do número de habitantes da cidade de Lisboa durante o cerco castelhano tem como consequências:
. a diminuição das esmolas públicas (ll. 24-25), o que evidencia falta de solidariedade desumanização;
. a expulsão da cidade de todas as pessoas consideradas incapazes de a defender;
. a falta de trigo para vender e consequente subida do preço de vários produtos (trigo, vinho, pão e carne), o que origina a fome entre a população, que come qualquer coisa, e a morte de muitas pessoas;
. o apego à religião constitui uma forma de mitigar todos os sofrimentos vividos.


🔼 Conclusão (2 últimos parágrafos): desabafo comovente de Fernão Lopes.

                Fernão Lopes congratula os que viverão no futuro, porque não passarão pelos sofrimentos que Lisboa tem de passar durante o cero.


🔺 Consequências do cerco a Lisboa (síntese):

1. Sociais:
- expulsão dos fracos e não aptos para a defesa da cidade por falta de alimentos;
- a preferência pelo cativeiro dos castelhanos, em detrimento de morrer à fome.

2. Económicas:
- a diminuição / ausência de esmolas;
- a escassez e o preço elevado dos alimentos;
- a impossibilidade de comprar mantimentos, por causa do seu preço elevado.

3. Psicológicas:
- a coragem;
- o choro;
- o desespero;
- o conforto e a solidariedade mútuos.


🔺 Caracterização das personagens

 O povo de Lisboa – personagem coletiva (sente e age como um só): comportamentos e sentimentos diversificados, que evidenciam o agravamento da miséria e do estado anímico:






- o medo da vingança do rei de Castela, caso a cidade caísse nas suas mães
- disponibilidade total, "quando repicavom os sinos";
- coragem: a procura empenhada de alimentos (as idas de homens ao Ribatejo e a sua defesa por parte dos que esperavam), colocando a vida em risco
- defesa corajosa da cidade, ultrapassando a fraqueza humana e revelando um esforço sobrenatural;
- luta pela sobrevivência, procurando comida de forma degradante e bebendo água até à morte e pedindo esmola pela cidade;
- crueldade: a punição do traidor;
- pedido de ajuda a Deus, face à situação de desespero reinante;
¯
- população unida, solidária na desgraça, consciente no risco, sofre no presente e receia o futuro, mas não desiste de lutar e tenciona resistir até ao fim;


 Mestre de Avis – personagem individual:
- governante responsável, infortunado e ativo;
- solidário com o seu povo;
- sofre e resiste com ele;
- sentimentos:
. dor, motivada pelo conhecimento da situação de carência que o povo vive;
. impotência e incapacidade de resolver ou atenuar a gravidade da situação ("veendo estes males a que acorrer nom podia.") e as dificuldades da população;
. sofrimento graças à incapacidade de socorrer a população;
- atos: o Mestre e os do seu Conselho fecham os ouvidos "ao rumor do poboo", não por indiferença ou hostilidade, mas porque lhes eram dolorosas "douvir taaes novas (...) a que acorrer nom podiam";
- assume comportamentos de emergência face à situação extrema que a cidade vive, nomeadamente a expulsão dos que não têm mantimentos para se alimentar, uma forma difícil de atenuar o sofrimento da restante população.



🔺 Linguagem e estilo

. Marcas do estilo de Fernão Lopes:

-» o tom coloquial:
- uso da segunda pessoa do plural: "ouvistes"; "esguardae";
- uso da interrogação retórica: "Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer... da vida aa morte?"; "veede que fariam aquelles que as continuadamente tam presentes tinham?"; “Pera que é dizer mais de taes falecimentos?”;
- uso da exclamação: "Oo quantas vezes... não eram compridas!";

-» a interpelação do leitor:
- uso da interrogação retórica;
- uso da apóstrofe: “Ó geeraçom que depois veo […] de taes padecimentos!”;
- uso da frase imperativa: “Ora esguardae como se fosses presente”;
- uso da interjeição “Ó”;

-» o pormenor descritivo e o visualismo:
- uso da adjetivação, por vezes dupla: "faminto"; "forte e rijo"; "triste e mesquinho"; "desvairados"; "desaventuirada"; "doorosas"; "cruel";
- a comparação concreta para precisar uma ideia abstrata: "assi como é natural cousa a mão ir amiúde onde se a door, assi uus homees falando com outros, nom podiam em al departir, senom em na mingua que cada uu padecia";
- a personificação: "toda a cidade era dada a nojo, chea de mesquinhas querelas";
- paralelismo de construção: "Uus choravom antre si, mal dizendo (...) Outros se querelavom a seus amigos, dizendo...";
- a referência ao valor dos alimentos:
. "Ca valia o alqueire quatro libras, e o alqueire de milho quarenta soldos, e a camada de vinho três e quatro libras.";
. "... e pequena posta de porco valia cinco e seis libras, que eram uma dobra castelã; e a galinha quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos. E se os almogávaros traziam alguus bois, valia cada uu setenta libras, que eram catorze dobras cruzadas, valendo então a dobra cinco e seis libras; e a cabeça e as tripas, uma dobra...";
. "Andavom os moços de três e de quatro anos...";
- a enumeração gradativa: “Das carnes, […] ua dobra”;
- vocabulário relacionado com os atos de ver (“vede”) e ouvir (“ouvistes”) – as sensações auditivas têm grande relevância na descrição, pois é através delas que o narrador exprime a noção do perigo: os sinos repicam, tocam a rebate, alertando a população, que acorre rapidamente onde é necessário quando os ouve;

-» o realismo descritivo:
. "No lugar u costumavom vender o trigo, andavom homees e moços esgravatando a terra e se achavom alguus grãos de trigo, metiam-nos na boca, sem tendo outro mantimento. Outros se fartavom de ervas e bebiam tanta água, que achavom mortos homees e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.";
. "Andavom os moços de três e de quatro anos pedindo pão pela cidade por amor de Deus, como lhes ensinavom suas madres; e muitos não tinham outra cousa que lhe dar senão lágrimas que com eles choravom, que eram triste cousa de ver; e se lhes davom pão como uma noz, haviam-no por grande bem.";
. "... ficados os geolhos, beijando a terra, bradavom a Deus que lhes acorresse...";
. "Os padres e madres viam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e peitos sobreles, não tendo com que lhe acorrer senom pranto e espargimento de lágrimas".

-» objetividade:
. os pormenores de caráter económico (“ca valia o alqueire quatro livras; e o alqueire do milho quarenta soldos…”);
. o realismo descritivo relativo à luta pela sobrevivência (“Das carnes, isso meeesmo, havia em ela […] bem mostravom seus encubertos padecimentos.”);

-» subjetividade – a apreciação crítica e emotiva dos factos relatados:
. interrogações retóricas: “Como non lançariam fora a gente minguada […] havia mester sobr’elo conselho?”;
. frase exclamativa na interpelação final às gerações vindouras: “Ó geeraçom de depois […] de taes padecimentos!”;

-» alternância entre
. planos gerais: o grande plano da cidade e dos atores coletivos que nela intervêm (linhas 1 a 5, por exemplo);
. planos de pormenor: a incidência em grupos de personagens e/ou situações particulares (por exemplo, a procura de grãos de trigo, por “homees e moços”);

-» comunicação do narrador com o narratário, isto é, o leitor:
. o narrador apela à leitura de capítulos anteriores, dirigindo-se diretamente aos leitores: “Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes”;
. o narrador interpela diretamente o leitor para o aproximar da situação descrita: “Veede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tinham?”;
. o narrador convoca o leitor para o passado de dor que reporta, procurando fazer-lhe notar que quem nasceu depois daquela provação, tal como ele (leitor), teve sorte;
. o narrador convida os leitores a observar o que se passa em Lisboa: “Ora esguardae como se fosses presente…”.


. Outros recursos

- A elegia comovida.

- A análise psicológica dos que padecem e morrem.

- A sugestão de simultaneidade (apelo final):
. texto/facto narrado;
. facto narrado/leitura.

- As funções da linguagem:
. informativa;
. expressiva;
. apelativa.

- Enumeração, polissíndeto e gradação (“… e forom descobertos per huu homem natural dAlmadãa, e tomados per os Castellaãos; e el foi depois tomado e preso e arrastado, e deçepado e enforcao.”): traduz os castigos infligidos ao homem de Almada que encontrou barcos com trigo, evidenciando a crueldade e a brutalidade da punição.

- A gradação                                             ü intensidade dramática
- A multiplicação do clímax                   þ                   ¯
estrutura trágica

- Os tipos de frase:
- exclamativas            ü sublinham a gravidade e o dramatismo da situação  em que a
- interrogativas          þ população se encontrava.

- Exclamações            ü conferem autenticidade e emotividade à descrição,  tornando-a mais viva e
- Interrogações          þ e suscitando a comoção e a adesão do leitor.

- Arcaísmos: "pero", "ca" (pois, porque), "uus", "nenhuus", "antre", "nojo", "departir", "guisas".

- Comparação:
. "... assi dos que se colherem dentro do termo de homees aldeãos com mulheres e filhos, como dos que vierom na frota do Porto...";
. "... tamanho pão como uma noz...";
. "E assi como é natural cousa a mão ir amiúde onde sêe a dor, assi uns homees falando com outros não podiam em al departir senão em na míngua que cada um padecia": evidencia a necessidade de os habitantes de Lisboa lidarem com a sua dor, através do diálogo com quem comungava do seu sofrimento, tal como a mão o faz através do contacto físico, no caso de padecimentos dessa natureza;
. "... tanta diferença há de ouvir estas cousas àqueles que as então passaram, como há da vida à morte?";
. mester de o multiplicar como fez Jesu Christo aos pães”: reforça o dramatismo, uma vez que só um milagre poderia salvar a cidade.

- Advérbio de modo: "escusamente"; "mui rijamente"; "mui apertadamente"; "à pressa".

- Personificações:
- da cidade de Lisboa;
- “as pubricas esmolas começarom desfalecer”.

- Pleonasmos:
. "colherom dentro";
. "deitar fora";
. "lançarem fora";
. "os a morte privasse da vida".

- Metáforas:
. "rogavam a morte que os levasse";
. "cerravom suas orelhas do rumor do povo.";
. "padeciam duas grandes guerras" (…) sse defender da morte per duas guisas…”: os habitantes de Lisboa enfrentam duas guerras – a guerra (o cerco) contra os castelhanos e a fome resultante do cerco – que impedia que se defendessem quer da morte, quer, por falta de forças, do inimigo;
. "ondas de tais aflições?";
. “Os padres e madres viam estalar de fome os filhos…”: explicita a desgraça das crianças, tal como o que estala parte, morre, também as crianças morriam, privadas de alimentos;
. “… andavom homees e moços esgaravatando a terra”: a metáfora evidencia o desespero das pessoas por causa da fome. Tal como as galinhas esgaravatam a terra em busca dos grãos de milho, também as pessoas, levadas pelo desespero da fome, remexiam a terra como aquelas à procura de algum grão perdido.

- Adjectivação expressiva.

- Apóstrofe: "Oh, geraçom que depois veio, povo bem-aventurado...".

- Hipérbole: "ondas de tais aflições!".

- Eufemismo: “Assim que rogavam a morte que os levasse…” – explicita o desejo de morte, pois é preferível esta aos padecimentos que sofrem.

- Tempos verbais: pretérito perfeito e imperfeito.



🔺 O texto como documento da época em que se insere

1. Pelo conteúdo:
- contexto histórico:
. o cerco da cidade de Lisboa pelos castelhanos.

2. Pela forma:
- o texto como exemplo da fase arcaica da língua:
. grande número de hiatos (encontro de vogais ásperas): doo, veede, door, seer, Meestre, etc.;
. a terminação -om nos nomes (razom, coraçom, etc.), nos advérbios (nom) e na terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo dos verbos da primeira conjugação (esforçavom-se, repicavom, encomendavom, braadavom, çarravom, etc.);
. o uso de conjugações arcaicas: pero (mas), ca (pois, porque);
. a ocorrência de pronomes arcaicos: all (outra coisa);
. o uso da forma arcaica do determinante indefinido (huus, nenhuu, hua) e da preposição (antre);
. a dupla negativa: "nenhuu nom mostrava";
. o uso de arcaísmos: nojo, departir, guisas.


Análise de outros capítulos:

    . Capítulo XI.

    . Capítulo CXV.
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