Mostrar mensagens com a etiqueta Opinião. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Opinião. Mostrar todas as mensagens
segunda-feira, 12 de dezembro de 2016
quinta-feira, 1 de dezembro de 2016
Chapecoense
«Quem já
perdeu alguém muito importante para si já sentiu o choque de ver que no dia
seguinte as pessoas acordam, trabalham, divertem-se, como se nada fosse. Já
sentiu a solidão do sofrimento anónimo. É esta a frieza quotidiana dos outros
que nos permite a todos acordar diariamente sabendo que um dia não acordaremos.
Mas há uns momentos que nos unem no sofrimento ou pelo menos nos unem ao
sofrimento dos outros. Coisas que nos lembram que somos, como humanos, uma
comunidade de mortais. A morte de pessoas notáveis, tragédias de grande
dimensão ou coisas inusitadas, como a morte de praticamente toda uma equipa de
futebol. Por o Chapecoense ser uma equipa brasileira, por o falecido treinador
Caio Júnior ter passado por várias equipas portuguesas e por Marcelo Boeck ter
jogado no Sporting e no Marítimo a coisa ainda nos tocou mais.
Com bons
resultados fora do Brasil, o clube de uma cidade brasileira com pouco mais do
que 200 mil habitantes era um exemplo raro de saúde financeira e estava, apesar
do seu modesto orçamento (quase dez vezes menos do que o Flamengo), em 9.º lugar
no campeonato. Disputava, pela primeira vez, a final da Copa Sul-Americana. O
Chapecoense conquistou a fama da pior forma possível. Mas é nestes momentos que
todos tentam mostrar o melhor de si: vários clubes brasileiros ofereceram
jogadores, o Atlético Nacional, a equipa colombiana com que se ia defrontar,
propôs que o Chapecoense recebesse o título e mais de 13 mil pessoas
tornaram-se sócias. Nenhuma morte serve para alguma coisa. Apenas consola saber
que não se perdeu tudo. Neste caso, serviu para um daqueles momentos em que nos
voltamos a lembrar como tudo é frágil, como é uma sorte cada um de nós ainda
estar vivo. E os nossos gestos de solidariedade são um tributo a essa sorte.»
Daniel Oliveira, in Record
quarta-feira, 21 de setembro de 2016
"O português como língua de Camões é um mito"
Em 735 adjetivos usados por Luís de Camões n'Os Lusíadas, apenas um é uma criação nova do poeta, uma estreia na história da língua portuguesa. É a palavra "insofrido", que significa "impaciente".
Esta contabilidade foi feita pelo linguísta Fernando Venâncio, que hoje apresenta alguns resultados da sua investigação dedicada àquela que será a primeira história do léxico português numa aula do curso de Estudos Camonianos da Universidade Nova de Lisboa, às 18h. "A primeira descoberta é que Camões inovou muito pouco", explica numa entrevista feita por telefone e email a partir de Amesterdão, onde é investigador na universidade.
"O uso que Camões faz do léxico exclusivo português já conhecido é extremamente moderado e, mais do que tudo, as exclusividades portuguesas introduzidas pela sua obra foram residuais. Dir-se-ia que Camões não acreditou numa língua portuguesa de perfil autónomo."
Sem ser n'Os Lusíadas, Fernando Venâncio encontrou apenas outro adjetivo novo de origem autóctone na lírica camoniana, desta vez "famulento", que significa "faminto".
Já as criações castelhanas estreadas naquele poema épico, publicado em 1572, são cinco (e estamos a contar sempre só adjetivos, palavras normalmente utilizadas para testar a inovação numa língua): "alvoroçado", "disfarçado", "enamorado", "rebelde" e "sotoposto".
Depois foram ainda enumerados os adjetivos latinos exclusivos do português, que atingem o número de treze ("abominoso", "cintilante", "celso", "fulvo", "humílimo", "longínquo", "piscoso", "crástino", "equório", "estelante", "frondente", "inconcesso", "prisco"). Entre estes, só dois - "longínquo" e "cintilante" - são realmente importantes, "o resto é extravagante e os adjetivos não voltam praticamente a ser usados".
Mas os adjetivos latinos já correntes em castelhano estreados por esta obra-prima da literatura renascentista europeia, que conta em verso a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, sobem até aos 54: "aéreo", "aquoso", "árido", "aspérrimo", "áureo", "belígero", "canino", "canoro", "cerúleo", "ciente", "cônsono", "diáfano", "dissonante", "espumante", "estipulante", "estupendo", "famélico", "ferino", "fétido", "fradulento", "fugaz", "fulgente", "fulminante", "furibundo", "hispano", "impudico", "inerme", "inerte", "infido", "inúmero", "inusitado", "lácteo", "malévolo", "náutico", "pirático", "plácido", "plúmbeo", "preeminente", "prestante", "proceloso", "pudibundo", "radiante", "rapace", "régio", "rotundo", "rutilante", "salso", "sanguinoso", "sitibundo", "sonoroso", "truculento", "vasto", "vendível", "virgíneo". Uma lista "extensa" que mostra que Camões transportou para a escrita portuguesa "o que de melhor, mais sólido e mais expressivo já circulava em castelhano em matéria de latinismos". Metade destes adjetivos "revelaram-se aquisições felizes e definitivas", tão duradouros como os outros que o poeta utiliza e que já vêm da Idade Média.
Até aqui o que faltou numa língua que tem sido intensamente escrutinada foi estudá-la numa perspetiva histórica, "comparando-a com a dos contemporâneos e de épocas anteriores". O professor da Universidade de Amesterdão diz que é assim que se consegue perceber que a inovação está lá, "mas não é portuguesa".
"Os cultismos que Camões utiliza são já correntes em castelhano", conhecidos na época por qualquer português instruído. "Camões não parece acreditar num português castiço, autónomo, irredutível". Empenha-se "numa modernização do português culto", mas "com recurso a criações castelhanas e ao latim do castelhano". E isso é "uma absoluta novidade, que desautoriza os nossos mitos criados à volta de uma 'língua de Camões', um mantra sem base material".
Se o português era a língua dos marinheiros e dos comerciantes, o castelhano era a grande língua internacional da classe culta portuguesa e europeia. "Os portugueses estavam muito familiarizados com o castelhano. Isso vale para todo o português com contactos na corte, nas universidades. A língua culta, aquela em que as classes instruídas se exprimem é muito devedora do castelhano".
Fernando Venâncio dá o exemplo de Catarina de Áustria, que foi rainha de Portugal durante 53 anos e que nunca escreveu uma linha de português. "A verdade é que a língua da corte era o castelhano. Depois havia muitos professores, pregadores, confessores que vinham de Castela e isso obrigava muita gente, ativa ou passivamente, a exprimir-se ou a dominar o castelhano. Portanto, a presença do castelhano é imensa. Vemos isso naquilo que ficou, nos livros de piedade, nos dicionários. Tudo isso é castelhano ou traduzido do castelhano com muitos castelhanismos." O primeiro dicionário de português é de 1562, quando Camões já teria quase 40 anos.
Assim, era normal que quem quisesse ser erudito e moderno o fizesse sob uma influência castelhana. A preocupação de Camões foi, então, tudo o parece indicar, "iberizar o português", de modo a que a língua funcionasse internacionalmente. "Modernizou o português e fê-lo, inteligentemente, segundo o modelo castelhano, para poder ser lido por espanhóis e pela Europa culta da época."
Movida em Goa
Esta influência linguística do castelhano em Camões já foi anteriormente estudada, mas de uma forma limitada, tendo sido identificado na lírica de Camões algum aproveitamento lexical de célebres poetas castelhanos, como Juan de Mena e Garcilaso de la Vega, ou ainda de Juán Boscán, n'Os Lusíadas. Venâncio cita o trabalho dos anos 40 de Vieira de Lemos e Martínez Almoyna e, mais recentemente, o de Nicolás Extremera Tapiá. "Mas essa é uma parte ínfima do aproveitamento lexical que Camões fez do que já estava disponível em castelhano. Esta minha investigação é realmente o Camões todo. A novidade é a espetacular extensão do fenómeno."
Camões não está sozinho neste projeto linguístico, como lhe chama o investigador. Fernando Venâncio encontrou no jesuíta Luís Fróis "um duplo linguístico de Camões", porque o missionário também transpôs para português toda a riqueza latina que os castelhanos já usavam. Este homem, que sai de Lisboa aos 16 anos para nunca mais regressar, depois de chegar à Ásia em 1548, é "o mais dotado 'jornalista' português no Oriente" e as suas cartas sobre a Índia e sobre o Japão foram durante décadas "lidas, relidas e disputadas logo que chegavam a Portugal". Também ele, nitidamente, "investia numa 'iberização' da língua".
Estão os dois a fazer o mesmo em simultâneo. Apesar de terem percursos muito diferentes, ambos passam por Goa, que era por volta de meados do século XVI "um centro cultural fortíssimo". "De certeza que absorvem um clima cultural, a que eu chamei 'movida', que já não havia em Portugal. Uma imensa liberdade criativa e mundana que contrasta com o controlo social da época de D. João III e que durou até à chegada da Inquisição." O investigador diz que é "impensável" que Camões e Fróis, que conviveram oito anos em Goa, entre 1554 e 1562, "não se tenham conhecido, e até culturalmente estimulado". Todo este projeto linguístico de Camões e de Fróis, Fernando Venâncio tinha-o mostrado a Vasco Graça Moura, antes da morte do poeta e camonista, que ficou, descreve o professor universitário, "assombrado".
A partir de hoje o investigador vai com certeza testar a tese com outros camonistas. A história do léxico português, diz, é provável que seja publicada já para o ano no Brasil. Se não há quase nenhuma inovação lexical em Camões no português autóctone, isso não diminui a grandeza da sua criação literária. "E Camões é, sem a menor dúvida, um grande artista."
Sem ser n'Os Lusíadas, Fernando Venâncio encontrou apenas outro adjetivo novo de origem autóctone na lírica camoniana, desta vez "famulento", que significa "faminto".
Já as criações castelhanas estreadas naquele poema épico, publicado em 1572, são cinco (e estamos a contar sempre só adjetivos, palavras normalmente utilizadas para testar a inovação numa língua): "alvoroçado", "disfarçado", "enamorado", "rebelde" e "sotoposto".
Depois foram ainda enumerados os adjetivos latinos exclusivos do português, que atingem o número de treze ("abominoso", "cintilante", "celso", "fulvo", "humílimo", "longínquo", "piscoso", "crástino", "equório", "estelante", "frondente", "inconcesso", "prisco"). Entre estes, só dois - "longínquo" e "cintilante" - são realmente importantes, "o resto é extravagante e os adjetivos não voltam praticamente a ser usados".
Mas os adjetivos latinos já correntes em castelhano estreados por esta obra-prima da literatura renascentista europeia, que conta em verso a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, sobem até aos 54: "aéreo", "aquoso", "árido", "aspérrimo", "áureo", "belígero", "canino", "canoro", "cerúleo", "ciente", "cônsono", "diáfano", "dissonante", "espumante", "estipulante", "estupendo", "famélico", "ferino", "fétido", "fradulento", "fugaz", "fulgente", "fulminante", "furibundo", "hispano", "impudico", "inerme", "inerte", "infido", "inúmero", "inusitado", "lácteo", "malévolo", "náutico", "pirático", "plácido", "plúmbeo", "preeminente", "prestante", "proceloso", "pudibundo", "radiante", "rapace", "régio", "rotundo", "rutilante", "salso", "sanguinoso", "sitibundo", "sonoroso", "truculento", "vasto", "vendível", "virgíneo". Uma lista "extensa" que mostra que Camões transportou para a escrita portuguesa "o que de melhor, mais sólido e mais expressivo já circulava em castelhano em matéria de latinismos". Metade destes adjetivos "revelaram-se aquisições felizes e definitivas", tão duradouros como os outros que o poeta utiliza e que já vêm da Idade Média.
Até aqui o que faltou numa língua que tem sido intensamente escrutinada foi estudá-la numa perspetiva histórica, "comparando-a com a dos contemporâneos e de épocas anteriores". O professor da Universidade de Amesterdão diz que é assim que se consegue perceber que a inovação está lá, "mas não é portuguesa".
"Os cultismos que Camões utiliza são já correntes em castelhano", conhecidos na época por qualquer português instruído. "Camões não parece acreditar num português castiço, autónomo, irredutível". Empenha-se "numa modernização do português culto", mas "com recurso a criações castelhanas e ao latim do castelhano". E isso é "uma absoluta novidade, que desautoriza os nossos mitos criados à volta de uma 'língua de Camões', um mantra sem base material".
Se o português era a língua dos marinheiros e dos comerciantes, o castelhano era a grande língua internacional da classe culta portuguesa e europeia. "Os portugueses estavam muito familiarizados com o castelhano. Isso vale para todo o português com contactos na corte, nas universidades. A língua culta, aquela em que as classes instruídas se exprimem é muito devedora do castelhano".
Fernando Venâncio dá o exemplo de Catarina de Áustria, que foi rainha de Portugal durante 53 anos e que nunca escreveu uma linha de português. "A verdade é que a língua da corte era o castelhano. Depois havia muitos professores, pregadores, confessores que vinham de Castela e isso obrigava muita gente, ativa ou passivamente, a exprimir-se ou a dominar o castelhano. Portanto, a presença do castelhano é imensa. Vemos isso naquilo que ficou, nos livros de piedade, nos dicionários. Tudo isso é castelhano ou traduzido do castelhano com muitos castelhanismos." O primeiro dicionário de português é de 1562, quando Camões já teria quase 40 anos.
Assim, era normal que quem quisesse ser erudito e moderno o fizesse sob uma influência castelhana. A preocupação de Camões foi, então, tudo o parece indicar, "iberizar o português", de modo a que a língua funcionasse internacionalmente. "Modernizou o português e fê-lo, inteligentemente, segundo o modelo castelhano, para poder ser lido por espanhóis e pela Europa culta da época."
Movida em Goa
Esta influência linguística do castelhano em Camões já foi anteriormente estudada, mas de uma forma limitada, tendo sido identificado na lírica de Camões algum aproveitamento lexical de célebres poetas castelhanos, como Juan de Mena e Garcilaso de la Vega, ou ainda de Juán Boscán, n'Os Lusíadas. Venâncio cita o trabalho dos anos 40 de Vieira de Lemos e Martínez Almoyna e, mais recentemente, o de Nicolás Extremera Tapiá. "Mas essa é uma parte ínfima do aproveitamento lexical que Camões fez do que já estava disponível em castelhano. Esta minha investigação é realmente o Camões todo. A novidade é a espetacular extensão do fenómeno."
Camões não está sozinho neste projeto linguístico, como lhe chama o investigador. Fernando Venâncio encontrou no jesuíta Luís Fróis "um duplo linguístico de Camões", porque o missionário também transpôs para português toda a riqueza latina que os castelhanos já usavam. Este homem, que sai de Lisboa aos 16 anos para nunca mais regressar, depois de chegar à Ásia em 1548, é "o mais dotado 'jornalista' português no Oriente" e as suas cartas sobre a Índia e sobre o Japão foram durante décadas "lidas, relidas e disputadas logo que chegavam a Portugal". Também ele, nitidamente, "investia numa 'iberização' da língua".
Estão os dois a fazer o mesmo em simultâneo. Apesar de terem percursos muito diferentes, ambos passam por Goa, que era por volta de meados do século XVI "um centro cultural fortíssimo". "De certeza que absorvem um clima cultural, a que eu chamei 'movida', que já não havia em Portugal. Uma imensa liberdade criativa e mundana que contrasta com o controlo social da época de D. João III e que durou até à chegada da Inquisição." O investigador diz que é "impensável" que Camões e Fróis, que conviveram oito anos em Goa, entre 1554 e 1562, "não se tenham conhecido, e até culturalmente estimulado". Todo este projeto linguístico de Camões e de Fróis, Fernando Venâncio tinha-o mostrado a Vasco Graça Moura, antes da morte do poeta e camonista, que ficou, descreve o professor universitário, "assombrado".
A partir de hoje o investigador vai com certeza testar a tese com outros camonistas. A história do léxico português, diz, é provável que seja publicada já para o ano no Brasil. Se não há quase nenhuma inovação lexical em Camões no português autóctone, isso não diminui a grandeza da sua criação literária. "E Camões é, sem a menor dúvida, um grande artista."
Isabel Salema, in Público (20 de abril de 2016)
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
A fábula do burro e a Educação
A estória é bem conhecida mas lembro-a rapidamente: o
dono de um burro teve que se ausentar e deixou dinheiro a um vizinho para ir
comprando comida para o animal enquanto ele estava fora. O vizinho, para poupar
dinheiro, foi dando cada vez menos comida ao burro até que ele morreu de fome.
O comentário do desajeitado aforrador foi: “Que pena! O animal foi morrer logo
agora, quando já estava quase habituado a não comer!”.
O orçamento proposto pelo Governo para 2014 corta – em
cima dos cortes anteriores – mais 314 milhões de euros no Ministério da
Educação. Os gastos com professores e auxiliares no ensino básico representam
um corte de 13% em relação ao orçamento anterior.
Assim, reduzir professores e auxiliares, é uma poupança
que nos vai custar muito caro. Cada vez mais as nossas escolas vão estar
preparadas para educar alunos que têm ambientes familiares estimulantes e que
lhes permitem seguir o currículo sem a necessidade de apoios. Para os outros,
aqueles cada vez mais numerosos que não têm em casa, quem lhes dê apoio ou quem
lhes possa pagar este apoio, a escola está cada vez mais pobre. Pobre porque
não consegue criar ambientes de aprendizagem diferenciados que tenham atenção
aos diferentes ritmos e condições de aprendizagem; pobre porque cada vez mais é
encorajada a atuar como se os alunos se dividissem em “normais” – aqueles que
aprendem da forma como tradicionalmente se ensina e os “especiais” aqueles que
dão problemas e que não se tem possibilidades e recursos para ensinar.
E voltamos à fábula do burro. Todos estes cortes têm os
seus efeitos: um dia perdemos uma auxiliar, daqui a meses um professor, para o
ano mais duas auxiliares, e assim vamos… Tal como o burro vamo-nos desabituando
de comer… A questão que é preciso recordar é o final da estória: o burro
morreu. Quer dizer que estes cortes na educação vão-nos distanciando de uma
escola para todos em cuja construção estivemos empenhados durante muitos anos.
Não se trata só de racionalizar os gastos, o problema é que estamos a retomar
uma conceção de escola – à semelhança da escola de má memória do “antigamente”
– que ensine quem quer, quem está preparado, quem se comporta, quem ao fim e ao
cabo se apresenta como um aluno “normal”.
Era muito bom que não nos conformássemos, que não nos
habituássemos a esta dieta de recursos que fazem regredir a nossa educação e
que leva a que muitos milhares de alunos – que podiam e são os nossos filhos –
se sintam estrangeiros numa escola que foi feita para eles.
David Rodrigues
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Educação, 'quo vadis'?
«A sociedade em que vivemos
encontra-se em acelerado processo de fragmentação, ela perdeu qualquer ideia
clara e global de si própria, pelo que tem, naturalmente, a maior dificuldade
em definir objectivos para a educação. Dito de outro modo, a crise da escola
decorre de fenómenos civilizacionais que a ultrapassam, nomeadamente da
destradicionalização e da desinstitucionalização das sociedades contemporâneas,
que minam o estatuto não só dos saberes mas também dos professores. Fenómenos
que desorientam a escola, cada vez mais transformada numa instituição à qual se
pedem soluções para tudo, sem se lhe darem meios para nada. Esta mudança acabou
contudo por adoptar novas finalidades, em que a aquisição de conteúdos
formadores se subalterniza face a um suposto desenvolvimento mais multifacetado
do aluno, que deve simplesmente tornar-se capaz de ir aprendendo... a aprender.
Se no ensino tradicional e hierárquico a transmissão de conhecimentos era
central, o ensino individualista e democrático aposta numa aprendizagem que se
confunde com o desabrochar de uma misteriosa espontaneidade criativa. O que,
note-se, faz do professor refém de um paralisante paradoxo, que é o de todos
reclamarem mais educação, sem que quase ninguém aceite, na realidade, ser
educado. As novas tecnologias foram a cereja em cima do bolo deste processo
cheio de equívocos, criando uma miragem de facilitismos em que não caíram nem
Bill Gates nem Steve Jobs, que, como há dias Nick Bilton contava no The New
York Times, nunca dispensaram sólidas bases convencionais para os seus filhos,
certos de que é a partir delas que as novas tecnologias revelam o seu
extraordinário potencial. Mas a mutação tecnológica não é a única, nem a
principal responsável, pela desorientação em que vive a escola. Como já tenho
referido, há mais mutações decisivas a ter em conta: a que ocorreu nas relações
entre a família e a escola, a que alterou o estatuto dos saberes e a que
decorreu da sua democratização. A cumplicidade entre a família e a escola era
um elo tradicional que se volatilizou nas últimas décadas, com a primeira a
descartar para a segunda as suas obrigações educativas. E, com esta
transformação, aumentou também a erosão das funções mais óbvias da escola,
sempre em nome dos valores afectivos de uma infância e de uma adolescência
altamente idealizadas, que ignoram tanto a escassez da sua experiência como o
empobrecimento do seu actual ambiente simbólico. Por outro lado, a mutação do
estatuto dos saberes e do conhecimento foi de cento e oitenta graus. A escola
tradicional assentava no reconhecimento do valor intrínseco dos saberes que a
escola transmitia e na indiscutível necessidade de os adquirir. Ora, este
reconhecimento tornou-se nos nossos dias bem problemático, na medida em que a cultura
perdeu o estatuto escolar que tinha, e que colocava a curiosidade e o desejo de
saber no cerne de todas as concepções da educação. Agora vivemos numa sociedade
que, ao mesmo tempo que pretende assumir-se como uma sociedade do conhecimento,
se revela como aquela em que o desejo de saber quase desapareceu. Por fim, a
mutação democrática conduziu a que qualquer tipo de autoridade seja quase
sempre assimilado a um intolerável autoritarismo, como se a autoridade se
tivesse tornado incompatível com a democracia. E, com esta erosão da
autoridade, a escola ficou cativa de todos os caprichos dos alunos e de todas
as contingências governativas. E é nisto que estamos: numa escola à deriva.»
Manuel Maria Carilho, in Diário de Notícias
terça-feira, 12 de agosto de 2014
"Temos maus professores" - crónica de Alexandre Homem Cristo
Alexandre Homem Cristo, assessor do CDS e investigador (salvo erro), publicou uma crónica no Observador.
A peça de sapiência tem muito que se lhe diga, como se poderá constatar a partir das pérolas seguintes:
- «Portugal tem maus professores. E não é por acaso: é fácil tornar-se professor.»;
- «... quem hoje vai para professor não são os bons alunos.»;
- «quem hoje frequenta os cursos da área da educação são, em média, os que têm níveis socioeconómicos mais baixos e que, por isso, obtêm mais bolsas de acção social.»;
- «Assim, em termos gerais, quem quer ser professor são os piores alunos, os mais pobres e os menos cultos.»;
- «Ora, afinal, o que mostram os resultados? Que 14% reprovou. Que 63% cometeu erros ortográficos (15% fez 5 ou mais erros).».
Vamos lá por partes...
1. «Temos maus professores» é o título, mas o cronista concentra a sua atenção num conjunto de candidatos a professores, isto é, que não exercem na sua maioria. Assim sendo, há desde logo aqui um problema de coerência textual.
2. Clama o articulista contra os erros ortográficos dados pelos desempregados que realizaram a Prova Pacóvia. Bom, «14% reprovou»? «63% cometeu erros»? Alexandre, o amigo também não dá para professor, pois comete erros - neste caso de concordância - básicos. Ups! É investigador! Diacho!
3. Afirma, do alto da sua torre, que os alunos que pretendem ser professores são pobres e que isso é uma das justificações principais para a sua impreparação genérica e para os erros ortográficos que deram na Prova Pacóvia. Seguindo esta linha de raciocínio, gente pobre não deve ser professora... e, por extensão, médica, engenheira... papa... Nasceu pobre e desfavorecida, deve morrer pobre e desfavorecida.
4. Além disso... caguei para esta gente. Farto!
terça-feira, 24 de junho de 2014
A função pública e a austeridade, uma relação que resiste ao tempo
quarta-feira, 18 de junho de 2014
"Não gosto do brasileiro", Alexandre Martins
A minha rua estava deserta. Horas
antes daquele jogo, o esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu
tínhamos ocupado os nossos lugares cativos no passeio para arrasarmos aquela
ideia estúpida de que no futebol tudo pode acontecer: o Brasil ia ganhar à
Itália e não se falava mais nisso.
Eles tinham o calcanhar de Sócrates, os passes de Falcão e a
força de Leovegildo Lins da Gama Júnior, ou apenas Júnior – um defesa que
também jogava no meio-campo e que foi obrigado a resumir a imponência do seu
nome completo a um modesto apelido só para caber nos cromos da Panini. Todos
eles eram Zico dos pés à cabeça.
E nós, na Rua 3, tínhamos o
esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu, à falta de uma selecção
portuguesa para apoiar nesse Mundial. E também tínhamos o brasileiro.
Nascido em Angola e neto de portugueses, foi parar à minha
rua da mesma forma que quase todos nós tínhamos ido parar à nossa rua. Mas isso
era coisa de adultos: eles ainda discutiam se o Mário Soares era bom ou era
mau, e nós discutíamos se o Serginho tinha lugar na selecção do Brasil. (É
claro que não tinha).
O certo é que todos nós também
éramos Zico. Uns nos pés, outros na cabeça, outros só quando adormeciam e
começavam a sonhar.
Os pés do Zico eram do peco, que
fintava toda a gente, ia lá à frente marcar um golo e ainda regressava a tempo
de fintar a própria sombra; o esqueleto ficou com a cabeça, que levantava para
ver onde ia pôr a bola enquanto rodopiava sobre si mesmo e nos mantinha à
distância com os longos braços.
Eu estava no meio, só que no meio errado: tinha a precisão
de passe do peco e a fantasia do esqueleto, precisamente a soma dos zeros de
cada um deles. (Ainda hoje me gabo de ter sido a criança magra que mais vezes
foi à baliza em toda a história do futebol de rua).
Mas agora a minha rua estava deserta.
Por um qualquer fenómeno que ainda hoje resiste às leis da ciência e aos
mistérios da religião, o Brasil acabara de perder com a Itália, em Espanha, e
tudo na minha rua ficou diferente. Nem a rulote do Nando, que vendia as
melhores pastilhas Gorila de Portugal, voltou a abrir nesse dia.
Eu e os meus amigos tínhamos
acabado de receber a primeira lição de vida através do futebol. Uma lição que
ainda hoje me acompanha sempre que me levanto da cama: faças o que fizeres,
nunca vistas de amarelo.
Mal acabou o jogo, os pais do
brasileiro pegaram nele e foram morar para o Brasil. Há quem diga que passaram
quatro anos entre uma coisa e outra, mas não é essa a recordação que eu tenho
da mentira que contei na frase anterior.
Eu, o esqueleto e o brasileiro
éramos os melhores amigos. Separar aquele grupo foi como arrancar o Zico ao
Sócrates e ao Falcão. Ainda hoje falo sobre futebol com o esqueleto, que perdeu
o direito à alcunha em meados da década de 1990. Mas não falo muito com o
brasileiro porque já não gosto dele. Não gosto do brasileiro porque ele se foi
embora.
sábado, 19 de abril de 2014
"Key for Schools"
«À boa maneira do Estado Novo, o Estado Novo II tem-se afanado em recrutar, obrigatoriamente, voluntários para corrigirem os exames de Cambridge, a que se irão sujeitar os alunos do 9.º ano. Passemos ao largo do provincianismo que paga agora a Cambridge, aquilo que os professores portugueses sempre fizeram e bem. Mas denunciemos o truque. O exame que os alunos vão fazer chama-se, na tipologia de Cambridge, Key for Schools. Corresponde, na descrição do Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas Estrangeiras, ao nível A2. As Metas Curriculares de Inglês, aprovadas por Crato, dizem que este nível deve ser cumprido pelos estudantes do 7.º ano de escolaridade. E que dizem para os do 9.º ano? Que o nível a cumprir é o B1, que corresponde, na nomenclatura de Cambridge, a um exame denominado Preliminary of Schools. Ou seja, os alunos do 9.º ano vão fazer o exame desenhado para os do 7.º. Terão, obviamente, bons resultados. É este o rigor de Crato, chancelado por Cambridge.»
Prof. Santana Castilho
sexta-feira, 4 de abril de 2014
sábado, 18 de janeiro de 2014
"Quando Deus entrou no meu carro"
|
sábado, 29 de junho de 2013
sexta-feira, 29 de março de 2013
As vantagens e desvantagens do 'Facebook'
«Isto do Facebook é uma coisa porreira ! Sobretudo para os que conseguem ter muitos Amigos "virtuais". Passo a explicar: imaginemos que um cidadão mediano, como eu, está a ficar com o automóvel nas lonas (é quase o caso). Chega aqui, e pergunta: "quem é que me arranja um automóvel por um preço gentil, capaz de levar a minha carcaça às compras, trazendo-a para casa sem dano?". E logo aparece um Amigo, consciente e consciencioso, a dizer: "Tenho eu um carrinho para si, por um preço simpático". Imaginemos que um pagador de impostos , como eu, deseja deslumbrar um Amigo com uma refeição "acima de qualquer suspeita". Chega aqui e pergunta: "Onde é que se come a melhor posta mirandesa"? E logo, logo, aparece uma Amiga e diz: " No Restaurante tal, com uma óptima relação preço-qualidade". Imaginemos que um votante, chega aqui e pergunta: "Onde é que se arranja um Presidente da República que, finalmente, não nos envergonhe continuamente?". Bom, aí faz-se um longo, longo, longo silêncio e as respostas que chegam são todas reticentes, ratadas, cheias de hiatos. Conclusão: é muito mais fácil comprar um automóvel e comer uma sensacional posta mirandesa do que arranjar um PR que se cheire. Como diria La Palisse, né?»
Professor Amadeu Homem
quinta-feira, 28 de março de 2013
"Portugal em queda"
«Habituados como estamos às más notícias já nem reagimos quando surge mais uma. A notícia vinda das Nações Unidas devia ter provocado ondas de choque, mas deixou-nos indiferentes. No relatório que acaba de ser publicado, baseado em dados de 2012, Portugal caiu dois lugares no Índice de Desenvolvimento Humano, estando agora na modesta 43.ª posição, na cauda da primeira liga e quase a ser despromovido para a segunda. Essa queda soma-se às quedas dos anos anteriores: no relatório de 2011 tínhamos caído um lugar e no de 2010 tínhamos caído seis lugares. Já basta de tanto cair!
O referido índice classifica os países com base não apenas na riqueza, medida pelo PIB, mas também na saúde, medida pela esperança média de vida, e na educação, medida pelo número de anos na escola. Se o PIB português está dolorosamente a cair (segundo os cálculos das Nações Unidas, está a descer desde 2007, estando hoje abaixo do valor de 2000), o progresso na longevidade é apenas ligeiro (actualmente a esperança média de vida é de 79,7 anos) enquanto na escolaridade há estagnação (nuns confrangedores 7,7 anos de escolaridade média na população adulta). No global, e devido ao declínio económico, o nosso índice está desde o início desta década praticamente imóvel após décadas de crescimento. E, em contraste connosco, a maior parte dos países estão a desenvolver-se, alguns ultrapassando-nos. O relatório chama precisamente a atenção para a acentuada subida de numerosos países, principalmente do hemisfério sul. Em todo o mundo, os “campeões” da descida, em valor absoluto, são a Grécia e a Líbia, com Portugal logo a seguir, com quedas semelhantes às de Chipre, Barbados, Zimbabwe e Madagáscar. Repito para que conste: à escala planetária, em 186 países há apenas sete nações a descer e a portuguesa é uma delas.
Quem são os responsáveis? A principal culpa é, obviamente, dos maus governos que temos tido. Os professores Daron Acemoglu e James Robinson, do MIT e de Harvard respectivamente, no seu livro “Porque Falham as Nações” (Temas e Debates, 2013) informam-nos, com abundantes e eloquentes exemplos, que a falta de prosperidade dos países não tem a ver nem com a geografia nem com a cultura, mas sim com o funcionamento das instituições políticas. Os nossos “anos perdidos” no passado recente não eram uma fatalidade, atribuível à nossa situação no mundo ou à nossa particular tradição, mas sim uma consequência dos nossos erros políticos e económicos. Acrescem, claro, os erros alheios, pois a Europa não está bem: vão longe as expectativas de crescimento da Estratégia de Lisboa no ano 2000.
Os governos que elegemos nos últimos anos têm rostos. Independentemente das responsabilidades que não são poucas dos governos anteriores (António Guterres já assumiu uma quota parte), elas são de José Sócrates, que governou de 2005 a 2011, e de Pedro Passos Coelho, que governa desde 2011. O primeiro – os números não enganam – governou mal e o segundo – os números voltam a não enganar - está a governar mal. Não interessam nesta altura a não ser ao próprio as justificações de Sócrates em penosas prédicas televisivas. Ele já foi afastado por eleições de um modo claro. Uma vez que o governo anterior já foi mudado, resta-nos mudar o actual governo. As próximas eleições autárquicas vão ter uma leitura política nacional, ao revelar nas urnas a grande angústia das pessoas. E, como Passos Coelho já afirmou querer que se “lixem as eleições”, será provavelmente feita a sua vontade nas legislativas de 2015, que ele com grande antecedência já vê perdidas.
Poderá Passos Coelho fazer alguma coisa para evitar a sua queda, que decorre da queda do país? Sim, pode ainda mudar alguns dos seus ministros e secretários de estado. Não podendo alterar a troika externa, que nos manieta a todos, pode mexer nessa troikainterna que o assessora, formada pelo inefável Miguel Relvas, pelo desacreditado Vítor Gaspar e pelo desorientado Carlos Moedas. Sendo Passos Coelho político desde que nasceu, deveria saber que está a ser arrastado para mais fundo pelos seus colaboradores mais próximos. Neste momento, os seus eleitores não estão com ele, o seu partido dificilmente está com ele (é público e notório que os “barões” não estão, multiplicando-se em comentários televisivos) e o seu parceiro de coligação só finge que está com ele (Paulo Portas, matreiro, deixa que os outros digam o que ele pensa).
E a oposição? Que diz António José Seguro? Se não há confiança no governo, menos há na oposição. O líder da oposição vê o país em queda, vê o governo em queda e nada mais lhe ocorre do que esperar que um e outro caiam mais. Não oferece solução nenhuma. Eleições agora para quê? Não esqueçamos, como mostram os dados das Nações Unidas, que a queda do país não é de hoje e que o maior partido da oposição é co-responsável por ela.»
Prof. Carlos Fiolhais, in Público de 27 de março de 2013
segunda-feira, 25 de março de 2013
"O problema do X"
"A língua? O que o Estado não destrói (ver acordo ortográfico, s.f.f.), o povo massacra. Não bastavam os rústicos que usam a palavra «empoderamento» sem se rir, os burgessos que começam as frases com «Dizer que...» e os tradicionais e encantadores parolos do «fizestes», «gostastes» e «soubestes» na segunda pessoa do singular.
Singulares como somos, agora inventamos uma praga fresquinha, a qual consiste em substituir o «s» pelo «x» no início de certos vocábulos. Se não repararam, liguem o televisor e reparem. De repente, inúmeros portugueses passaram a comer a xopa, a ir ao xentro, a frequentar Xerralves, a ver xéries, a dormir xonecas, a lamentar a xituação, a ter xintomas e a aproveitar os xábados para se xentarem num xítio simpático a xaborerar um xyrah com queijo da xerra.
Não se trata de uma adaptação manca do ancestral chotaque das Beiras, que sempre teria a atenuante etnológica: é uma afectação nova em folha cujo carácter epidemiológico ignora regiões e acomete o País de norte a sul. De onde, ou melhor, de quem provém? Não se sabe. Nunca se sabe, e eis a vantagem do AO, cujos criadores são patetas, mas patetas identificados, enquanto os delinquentes que minam a língua sob anonimato andam para aí à xolta e a xorrir com xarcasmo."
Não se trata de uma adaptação manca do ancestral chotaque das Beiras, que sempre teria a atenuante etnológica: é uma afectação nova em folha cujo carácter epidemiológico ignora regiões e acomete o País de norte a sul. De onde, ou melhor, de quem provém? Não se sabe. Nunca se sabe, e eis a vantagem do AO, cujos criadores são patetas, mas patetas identificados, enquanto os delinquentes que minam a língua sob anonimato andam para aí à xolta e a xorrir com xarcasmo."
Alberto Gonçalves, Sábado de 21 a 27 de março de 2013
segunda-feira, 11 de março de 2013
O declínio da Europa
«A Europa vai entrar num declínio sob todos os aspectos – económico, cultural, intelectual. Aliás, se se vir a evolução das universidades na Europa, é aterradora. Não na parte das ciências exactas, mas no que era o chamado “ramo das humanidades” — e que infelizmente se passou a chamar “ciências sociais” — as universidades entraram numa decadência aflitiva. A universidade pública tem desprezado esse ramo do saber. Como é que se alimenta cultura e os valores da cultura, se se nega pertinência, validade e interesse àquilo que são saberes não científicos, mas que são saberes à mesma? Então a Guerra e Paz do Tolstoi, O Vermelho e o Negro do Stendhal, o D. Quixote do Cervantes, um trio do Schubert, a Filosofia, não interessam para nada? Todo este ramo do saber está descuidado e pervertido pelos estudos culturais e pelo pós-modernismo. Daqui vem uma ameaça à sanidade cultural do pensamento do Ocidente.(...) Há uma relação entre pós-modernismo e neoliberalismo. O neoliberalismo corrói e opõe-se à social-democracia e à democracia cristã. O pós-modernismo é a outra lei da selva, é a lei da selva no campo cultural e intelectual. Não é por acaso que surgem, alastram e invadem ao mesmo tempo. Eu sou muito conservadora, mas não subscrevo, nem nunca subscreveria, a tese de que a vida em sociedade está sujeita à lei da selecção natural dos mais fortes e que os mais fracos podem rebentar contra a parede.»
Prof. Fátima Bonifácio, in Público
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
O crime de Lance Armstrong
Por Ferreira Fernandes
DEPOIS de dez anos a pedalar pela inocência, Lance Armstrong largou o selim, sentou-se num sofá e confessou o que sabíamos: é um mentiroso. Valha-nos como consolação que aquele que venceu centenas de grandes atletas secos e musculados acabou em lágrimas nas duas etapas com a gordinha Oprah Winfrey. A frase mais citada da famigerada entrevista: "Dopei-me porque queria ganhar a qualquer preço." Que tomava EPO suspeitou-se, provou-se e, desde esta semana, confessou-se. Agora que fosse a qualquer preço... Só em prémios pelas vitórias em sete Tours de France ganhou três milhões de euros, o que levou a uma bola de neve de 100 milhões de euros amassados numa carreira de mentira. Daí que a sessão de psicoterapia entre Armstrong e Oprah não deva iludir.
Nas estatísticas oficiais da Volta à França, o quadro de honra ocupa-se com os vencedores: o 1.º da classificação geral, o 1.º do prémio da montanha e o 1.º da classificação por pontos. Os outros, são os outros. Não reza a história. Sendo que nesse quadro de honra, de facto, o vencedor é só um, o camisola amarela. Ora de 1999 a 2005, esse quadro de honra do Tour é omisso sobre o camisola amarela. Foi varrido, não pelo carro vassoura, mas pela justiça que provou que Lance Armstrong fizera batota. Sete anos em que talvez tenha havido um campeão que quis ganhar mas não "a qualquer preço", ganhou, mas chegou só a segundo de Armstrong. E, graças ao mentiroso, deixou de existir.
Diário de Notícias, 20 de janeiro de 2013
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
'O fantástico sr. Madureira'
O fantástico sr. MadureiraPublicado ontem
A minha figura do ano, do que ontem acabou e do que hoje começa, é o porteiro da escola dos meus filhos. A tarefa desempenhada pelo fantástico sr. Madureira encerra em si o máximo de eficiência que deve reclamar-se a todos os funcionários e trabalhadores, mas é, simultaneamente, um extraordinário exemplo do mínimo de coerência usado pelo Estado para gerir um dos mais decisivos pilares de um país: o sistema educativo.
Entre turmas do ensino básico e do jardim de infância, a escola do Meiral, em Gaia, tem cerca de 300 alunos. O sr. Madureira sabe, sem exceção, o nome de todos os estudantes e respetivos encarregados de educação. É fácil imaginar a confusão que se instala junto ao portão da escola quando a campainha toca, às 17.30 horas. Pequenos e graúdos aparecem aos magotes, mas nenhum sai da escola sem que o porteiro tenha avistado, do lado de fora, quem os vem buscar. É um trabalho quase insano, mas desempenhado com absoluta eficácia pelo sr. Madureira. Os pais sabem quanto vale este alívio.
O piso do estabelecimento de ensino está pejado de desenhos de jogos tradicionais, todos feitos pelo sr. Madureira, para gosto e gozo das crianças. Este exemplo de dedicação estende-se a todas as tarefas atribuídas ao porteiro.
E aí vem o absurdo: são os pais que têm de quotizar-se para garantir que a escola continua a ter porteiro. Isto, ao mesmo tempo que a Câmara de Vila Nova de Gaia garante livros grátis a todos os alunos, independentemente dos rendimentos auferidos pelos pais. É uma estupidez cuja explicação resulta, pois claro, do caos. Mesmo que quisesse, a Câmara não podia pagar o vencimento do porteiro, porque essa é uma competência do Ministério da Educação. Ora, o Ministério da Educação, apertado nos gastos como está, terá a vida do sr. Madureira (deste e de muitos outros que seguramente estarão espalhados pelas escolas do país) numa das mais baixas escalas de problemas a resolver nos próximos 10 ou 20 anos.
É um vício que me acompanha: para cada reforma anunciada pelo Governo procuro sempre encontrar uma pessoa que nela se encaixe. O resultado raras vezes é animador. A esquizofrenia que rodeia este caso é particularmente reveladora: o Estado que decide à distância será sempre incapaz de resolver problemas como o do sr. Madureira. Que são apenas pequenos na aparência, porque na essência são, afinal, os problemas que verdadeiramente mexem com as nossas vidas, com o nosso quotidiano.
É por isso que o fantástico sr. Madureira, cujas palavras são esmagadas pelo silêncio que as cerca, como diria o Manuel António Pina, é a minha figura do ano. Do que passou, do que hoje começa e dos que aí vêm. Porque, temo, o silêncio há de continuar a ser esmagador.
Bom ano. |
'Obrigado, professores!'
"A International Association for the Evaluation of Educational Achievement realiza, cada quatro anos, dois estudos conceituados internacionalmente: o TIMMS (Trends in International Mathematics and Science Study) e o PIRLS (Progress in International ReadingLiteracy Study). Portugal participou na edição de ambos de 1995, tendo ficado nos últimos lugares do ranking. Ausente dos estudos de 1999, 2003 e 2007, voltou a ser cotado em 2011. Entre 50 países ficou no 15.º lugar a matemática e 19.º em ciências. Entre 45 países, foi 19.º no PIRLS. Em valor absoluto, os resultados são positivamente relevantes. Mas em valor relativo ainda são mais: de 1995 para 2011 foi Portugal o país que mais progrediu em matemática e o segundo que mais avançou no ensino das ciências; se reduzirmos o universo aos países da União Europeia, estamos na 12.ª posição em ciências, sétima em matemática e oitava em leitura; se ponderarmos estes resultados face ao estudo económico e financeiro das famílias e dos estados com que nos comparamos, o seu significado aumenta exponencialmente e deita por terra o discurso dos que odeiam os professores. Há bem pouco, Gaspar, arauto da econometria e vuvuzela dos indicadores internacionais, rotulava de ineficiente o sistema de ensino. O seu amanuense Crato, outrora impante de PIMMS e PIRLS na mão, ficou mudo agora. Relativizo os estudos e discuto os critérios e os objectivos destes estudos. Não os valorizo como eles os valorizam. Mas é por isso que denuncio o silêncio oficial. Porque estes resultados, valham o que valerem, são, inequivocamente, fruto do trabalho dos professores portugueses. Apesar de tudo, quantas vezes apesar das políticas. Obrigado, professores!"
Santana Castilho, in Público (02/01/2013)
A ação de Nuno Crato em 2012: um balanço
"Quem revisite o anterior discurso do ora ministro da Educação facilmente acreditaria que, uma vez no posto, dele só se poderiam esperar políticas que conduzissem ao crescente interesse dos professores pelo ensino. Mas o engano foi colossal. Tão-só seguiu e ampliou à dimensão do desumano a estratégia de proletarização dos docentes: desinvestiu na sua formação; reduziu-lhes os salários e aumentou-lhes os horários de trabalho; manteve exigências burocráticas que roçam o sadismo; fixou-lhes vários locais de trabalho, obrigando-os a deslocarem-se de uns para outros em períodos não remunerados e a expensas próprias; desafiou os tribunais não cumprindo as sentenças favoráveis aos despedidos; com um volume de despedimentos nunca visto em alguma classe profissional em Portugal (30 mil, segundo os critérios mais generosos), criou um exército de mão-de-obra barata, na reserva, miserável, chantageado e sem horizontes de futuro. Poderá o país aceitar este desperdício de gente formada à custa de muitos milhões? A fome das crianças já não está encapotada. Diminuiu drasticamente o apoio aos alunos deficientes e aos grupos social e culturalmente mais debilitados. Ampliou-se e prossegue o hediondo agrupamento de escolas, contra tudo e contra todos, sobretudo contra os alunos. Quando o resultado deste crime político for visível, daqui a anos, acontecerá aos protagonistas responsáveis o mesmo que aconteceu aos que trouxeram o país às catacumbas em que se encontra: nada."
Santana Castilho, in Público (02/01/2013)
Subscrever:
Mensagens
(
Atom
)