«A sociedade em que vivemos
encontra-se em acelerado processo de fragmentação, ela perdeu qualquer ideia
clara e global de si própria, pelo que tem, naturalmente, a maior dificuldade
em definir objectivos para a educação. Dito de outro modo, a crise da escola
decorre de fenómenos civilizacionais que a ultrapassam, nomeadamente da
destradicionalização e da desinstitucionalização das sociedades contemporâneas,
que minam o estatuto não só dos saberes mas também dos professores. Fenómenos
que desorientam a escola, cada vez mais transformada numa instituição à qual se
pedem soluções para tudo, sem se lhe darem meios para nada. Esta mudança acabou
contudo por adoptar novas finalidades, em que a aquisição de conteúdos
formadores se subalterniza face a um suposto desenvolvimento mais multifacetado
do aluno, que deve simplesmente tornar-se capaz de ir aprendendo... a aprender.
Se no ensino tradicional e hierárquico a transmissão de conhecimentos era
central, o ensino individualista e democrático aposta numa aprendizagem que se
confunde com o desabrochar de uma misteriosa espontaneidade criativa. O que,
note-se, faz do professor refém de um paralisante paradoxo, que é o de todos
reclamarem mais educação, sem que quase ninguém aceite, na realidade, ser
educado. As novas tecnologias foram a cereja em cima do bolo deste processo
cheio de equívocos, criando uma miragem de facilitismos em que não caíram nem
Bill Gates nem Steve Jobs, que, como há dias Nick Bilton contava no The New
York Times, nunca dispensaram sólidas bases convencionais para os seus filhos,
certos de que é a partir delas que as novas tecnologias revelam o seu
extraordinário potencial. Mas a mutação tecnológica não é a única, nem a
principal responsável, pela desorientação em que vive a escola. Como já tenho
referido, há mais mutações decisivas a ter em conta: a que ocorreu nas relações
entre a família e a escola, a que alterou o estatuto dos saberes e a que
decorreu da sua democratização. A cumplicidade entre a família e a escola era
um elo tradicional que se volatilizou nas últimas décadas, com a primeira a
descartar para a segunda as suas obrigações educativas. E, com esta
transformação, aumentou também a erosão das funções mais óbvias da escola,
sempre em nome dos valores afectivos de uma infância e de uma adolescência
altamente idealizadas, que ignoram tanto a escassez da sua experiência como o
empobrecimento do seu actual ambiente simbólico. Por outro lado, a mutação do
estatuto dos saberes e do conhecimento foi de cento e oitenta graus. A escola
tradicional assentava no reconhecimento do valor intrínseco dos saberes que a
escola transmitia e na indiscutível necessidade de os adquirir. Ora, este
reconhecimento tornou-se nos nossos dias bem problemático, na medida em que a cultura
perdeu o estatuto escolar que tinha, e que colocava a curiosidade e o desejo de
saber no cerne de todas as concepções da educação. Agora vivemos numa sociedade
que, ao mesmo tempo que pretende assumir-se como uma sociedade do conhecimento,
se revela como aquela em que o desejo de saber quase desapareceu. Por fim, a
mutação democrática conduziu a que qualquer tipo de autoridade seja quase
sempre assimilado a um intolerável autoritarismo, como se a autoridade se
tivesse tornado incompatível com a democracia. E, com esta erosão da
autoridade, a escola ficou cativa de todos os caprichos dos alunos e de todas
as contingências governativas. E é nisto que estamos: numa escola à deriva.»
Manuel Maria Carilho, in Diário de Notícias
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