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domingo, 28 de março de 2021

Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes

 
Se fores boa menina
dou-te um periquito azul
eu fui boa menina
e sem querer abri a gaiola
se tivesses sido boa menina
o periquito azul não tinha fugido
mas eu fui boa menina.
 

            A composição poética constrói-se, em parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre ambos.

            Por outro lado, o poema configura uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança, sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as do segundo.

            A figura adulta oferece uma recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas. De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente: um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta da gaiola.

            A partir deste «episódio», mostra o contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar para se tornar uma “boa menina”.

            Por outro lado, podemos ler a fala inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo, a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram: ela não fora mesmo “boa menina”.

            Por oposição, a fala da criança traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como único determinante da sua conduta.

            Há, aqui, uma espécie de conflito quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela. As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas do bom comportamento não foram observadas.

            Todo o poema é percorrido pela ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele, dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?

 

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sábado, 27 de março de 2021

Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

 
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
contaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
 
            Este poema, constituído por 8 versos, constrói-se a partir da repetição de duas estruturas: “minha Musa” (vv. 1, 2 e 7) e “língua” (vv. 4 e 5), e tem como tema a relação do sujeito poético com a sua Musa.

            A Musa avisa o «eu», antes mesmo de desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa, castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça” que faz ao sujeito poético.

            Apesar de reconhecer a crueldade da sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo. Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da linguagem.

            Sucede que, neste poema, a Musa inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua. A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das formas verbais nas primeira e segunda pessoas.

            A nível estilístico, a repetição irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua” é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua” no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.

            Este acarretará, naturalmente, consequências. Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada, não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo, este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.

 

Manutenção preditiva de aviões

"Eu sou a luva", de Adília Lopes

 
Eu sou a luva
e a mão
Adília e eu
quero coincidir
comigo mesma
 

            Neste poema, o sujeito poético apresenta-se com diversos «eus».

            A composição poética abre com duas metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas, equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto, neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.

            A ausência de pontuação – nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim, o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu» do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.

            Esta nota permite fazer outra leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e» presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que, além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes (embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso, deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3. Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo «eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo «eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.

 

O avião é uma gangorra

ETOPS - Bimotores cruzando os oceanos

“Arte poética”, de Adília Lopes

 
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
            Esta composição poética tem como tema o ato de escrita, definido a partir de uma comparação estabelecida entre o poeta e um pescador que pretende “apanhar um peixe / com as mãos”.
            Segundo o sujeito poético, o poeta necessita de ter atenção e cuidado com as palavras, tal como o pescador necessita de muita atenção para pescar o peixe.
            A metáfora do peixe traduz o trabalho necessário durante o ato de escrita, visto que as palavras, “agindo como peixes”, são escorregadias e fugidias. O instrumento do pescador é a cana, enquanto o do poeta são as palavras, pelo que é necessário que o sujeito esteja sempre atento a elas. Para que a palavra não escape das suas mãos, é preciso ter cuidado em cada movimento, a cada verso. Tal como o pescar à mão é complexo, pois o peixe “debate-se / tenta escapar-se / escapa-se”, o poeta necessita também de persistir e lutar com as palavras para elaborar o poema.
            A ideia de luta é traduzida também pela estrutura formal do poema. De facto, a composição é constituída por uma única estrofe, constituída por 23 versos alternados, contribuindo, assim, para a construção da imagem de um peixe que, no instante em que parece estar preso entre as mãos do pescador, logo de seguida parecer escapar. Esta imagem é, pois, sugerida pela alternância de versos curtos (a maioria dos ímpares) e longos (os pares), bem como à concentração de versos mais pequenos, constituídos, no máximo, por três palavras, ocupando uma posição central no poema (versos 7 a 13).
            Deste modo, o sujeito poético sugere que o poema é o resultado de um trabalho árduo, que demanda esforço físico (“eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe”) e paciência. Esta luta constitui uma espécie de questão de vida ou morte.
            Assim, para o poeta, que luta com as palavras, existe apenas uma saída: a morte ou a salvação – “ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois”. No fundo, o que está em causa neste poema é o ato de escrita poética, temática abordada por diferentes escritores, sendo o mais célebre Fernando Pessoa e o seu “Autopsicografia”. Durante esse ato, o sujeito poético/poeta necessita de estar atento e concentrado e ser persistente, já que as palavras são escorregadias, como a imagem do peixe sugere, o que implica a tal atenção, precaução e persistência.
            Por outro lado, estas imagens vêm realçar a importância do trabalho com as mãos no ato de criação poética/artística, que exige uma determinada agilidade manual. Com efeito, o poeta necessita de selecionar adequadamente as palavras, as quais constituem a sua matéria-prima, que se materializam e tornam concretas quando são postas no papel. Tudo isto evidencia o “jogo perigoso” em que o poeta se vê envolvido durante o ato de criação poética, bem visível na imagem sôfrega de alguém a tentar apanhar um peixe com as mãos, o qual teima em escorregar e tentar escapar-lhe.
  

Por que razão um monomotor puxa para a esquerda? (parte II)

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