Português: “Arte poética”, de Adília Lopes

sábado, 27 de março de 2021

“Arte poética”, de Adília Lopes

 
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
            Esta composição poética tem como tema o ato de escrita, definido a partir de uma comparação estabelecida entre o poeta e um pescador que pretende “apanhar um peixe / com as mãos”.
            Segundo o sujeito poético, o poeta necessita de ter atenção e cuidado com as palavras, tal como o pescador necessita de muita atenção para pescar o peixe.
            A metáfora do peixe traduz o trabalho necessário durante o ato de escrita, visto que as palavras, “agindo como peixes”, são escorregadias e fugidias. O instrumento do pescador é a cana, enquanto o do poeta são as palavras, pelo que é necessário que o sujeito esteja sempre atento a elas. Para que a palavra não escape das suas mãos, é preciso ter cuidado em cada movimento, a cada verso. Tal como o pescar à mão é complexo, pois o peixe “debate-se / tenta escapar-se / escapa-se”, o poeta necessita também de persistir e lutar com as palavras para elaborar o poema.
            A ideia de luta é traduzida também pela estrutura formal do poema. De facto, a composição é constituída por uma única estrofe, constituída por 23 versos alternados, contribuindo, assim, para a construção da imagem de um peixe que, no instante em que parece estar preso entre as mãos do pescador, logo de seguida parecer escapar. Esta imagem é, pois, sugerida pela alternância de versos curtos (a maioria dos ímpares) e longos (os pares), bem como à concentração de versos mais pequenos, constituídos, no máximo, por três palavras, ocupando uma posição central no poema (versos 7 a 13).
            Deste modo, o sujeito poético sugere que o poema é o resultado de um trabalho árduo, que demanda esforço físico (“eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe”) e paciência. Esta luta constitui uma espécie de questão de vida ou morte.
            Assim, para o poeta, que luta com as palavras, existe apenas uma saída: a morte ou a salvação – “ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois”. No fundo, o que está em causa neste poema é o ato de escrita poética, temática abordada por diferentes escritores, sendo o mais célebre Fernando Pessoa e o seu “Autopsicografia”. Durante esse ato, o sujeito poético/poeta necessita de estar atento e concentrado e ser persistente, já que as palavras são escorregadias, como a imagem do peixe sugere, o que implica a tal atenção, precaução e persistência.
            Por outro lado, estas imagens vêm realçar a importância do trabalho com as mãos no ato de criação poética/artística, que exige uma determinada agilidade manual. Com efeito, o poeta necessita de selecionar adequadamente as palavras, as quais constituem a sua matéria-prima, que se materializam e tornam concretas quando são postas no papel. Tudo isto evidencia o “jogo perigoso” em que o poeta se vê envolvido durante o ato de criação poética, bem visível na imagem sôfrega de alguém a tentar apanhar um peixe com as mãos, o qual teima em escorregar e tentar escapar-lhe.
  

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