Português: Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

sábado, 27 de março de 2021

Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

 
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
contaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
 
            Este poema, constituído por 8 versos, constrói-se a partir da repetição de duas estruturas: “minha Musa” (vv. 1, 2 e 7) e “língua” (vv. 4 e 5), e tem como tema a relação do sujeito poético com a sua Musa.

            A Musa avisa o «eu», antes mesmo de desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa, castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça” que faz ao sujeito poético.

            Apesar de reconhecer a crueldade da sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo. Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da linguagem.

            Sucede que, neste poema, a Musa inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua. A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das formas verbais nas primeira e segunda pessoas.

            A nível estilístico, a repetição irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua” é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua” no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.

            Este acarretará, naturalmente, consequências. Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada, não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo, este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.

 

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