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domingo, 4 de abril de 2021

O mito de Aracne - Iseult Gillespie

Resumo do conto "Sempre é uma companhia"

             O conto situa-se na época da II Guerra Mundial e narra-nos a história de um casal que possui uma venda numa aldeia alentejana e cujo quotidiano é caracterizado pela solidão, pelo isolamento do mundo, pela monotonia e tédio e pela agressividade entre os membros desse casal.

            Este panorama é alterado com a chegada de dois vendedores de telefonias, que convencem o Batola, a personagem principal, a comprar um aparelho. Perante a oposição da mulher, um dos vendedores propõe uma compra à condição: a telefonia ficará à experiência durante um mês. Passado esse tempo, se não a quiserem, poderão devolvê-la e receber de volta as “letras”.

            A aquisição do aparelho provoca uma mudança enorme na povoação e na vida dos seus habitantes: os ceifeiros dirigem-se todos à venda do casal para ouvir as notícias da guerra, saem de lá “alta noite” e a discutir o que ouviram “numa grande animação”. As mulheres deslocam-se igualmente para a venda após a ceia, para ouvir as melodias e até (as velhas” dançar ao som da telefonia. Os aldeãos sentem-se, assim, agora, mais próximos do mundo, por consequência menos isolados e solitários.

            Esta mudança acaba por se estender à própria mulher do Batola, que abandona a sua prepotência e o seu autoritarismo e se mostra submissa, pedindo ao marido para ficarem com a telefonia, visto que “é uma companhia” naquele deserto.

domingo, 28 de março de 2021

"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes

 
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
 

            Apesar de o título do poema apontar para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto autobiográfico?

            É certo que o elemento «auto-» está presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos «meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia, mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.

            Uma leitura metafórica do poema permitiria entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas» como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente, sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer poético.

            Porém, o poema pode ser lido também de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam de brincar com estas.

            O uso do determinante possessivo tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).

            Numa crónica publicada na revista “Visão”, Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois. Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”

            A partir da leitura desta crónica, Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que “[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.

            Assim sendo, esta composição poética é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e pela solidão humana que pode sugerir).

            Além disso, os gatos ligam-se afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória: “O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”

            O poema, pela relação que estabelece entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”) que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente garantida.

            O uso do presente do indicativo na apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja, a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que compreende o relato de acontecimentos passados.

 

Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes

 
Se fores boa menina
dou-te um periquito azul
eu fui boa menina
e sem querer abri a gaiola
se tivesses sido boa menina
o periquito azul não tinha fugido
mas eu fui boa menina.
 

            A composição poética constrói-se, em parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre ambos.

            Por outro lado, o poema configura uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança, sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as do segundo.

            A figura adulta oferece uma recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas. De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente: um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta da gaiola.

            A partir deste «episódio», mostra o contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar para se tornar uma “boa menina”.

            Por outro lado, podemos ler a fala inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo, a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram: ela não fora mesmo “boa menina”.

            Por oposição, a fala da criança traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como único determinante da sua conduta.

            Há, aqui, uma espécie de conflito quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela. As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas do bom comportamento não foram observadas.

            Todo o poema é percorrido pela ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele, dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?

 

Como estacionar um avião

sábado, 27 de março de 2021

Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes

 
A minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
contaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra
 
            Este poema, constituído por 8 versos, constrói-se a partir da repetição de duas estruturas: “minha Musa” (vv. 1, 2 e 7) e “língua” (vv. 4 e 5), e tem como tema a relação do sujeito poético com a sua Musa.

            A Musa avisa o «eu», antes mesmo de desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa, castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça” que faz ao sujeito poético.

            Apesar de reconhecer a crueldade da sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo. Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da linguagem.

            Sucede que, neste poema, a Musa inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua. A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das formas verbais nas primeira e segunda pessoas.

            A nível estilístico, a repetição irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua” é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua” no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.

            Este acarretará, naturalmente, consequências. Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada, não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo, este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.

 

Manutenção preditiva de aviões

"Eu sou a luva", de Adília Lopes

 
Eu sou a luva
e a mão
Adília e eu
quero coincidir
comigo mesma
 

            Neste poema, o sujeito poético apresenta-se com diversos «eus».

            A composição poética abre com duas metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas, equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto, neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.

            A ausência de pontuação – nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim, o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu» do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.

            Esta nota permite fazer outra leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e» presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que, além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes (embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso, deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3. Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo «eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo «eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.

 

O avião é uma gangorra

ETOPS - Bimotores cruzando os oceanos

“Arte poética”, de Adília Lopes

 
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
 
            Esta composição poética tem como tema o ato de escrita, definido a partir de uma comparação estabelecida entre o poeta e um pescador que pretende “apanhar um peixe / com as mãos”.
            Segundo o sujeito poético, o poeta necessita de ter atenção e cuidado com as palavras, tal como o pescador necessita de muita atenção para pescar o peixe.
            A metáfora do peixe traduz o trabalho necessário durante o ato de escrita, visto que as palavras, “agindo como peixes”, são escorregadias e fugidias. O instrumento do pescador é a cana, enquanto o do poeta são as palavras, pelo que é necessário que o sujeito esteja sempre atento a elas. Para que a palavra não escape das suas mãos, é preciso ter cuidado em cada movimento, a cada verso. Tal como o pescar à mão é complexo, pois o peixe “debate-se / tenta escapar-se / escapa-se”, o poeta necessita também de persistir e lutar com as palavras para elaborar o poema.
            A ideia de luta é traduzida também pela estrutura formal do poema. De facto, a composição é constituída por uma única estrofe, constituída por 23 versos alternados, contribuindo, assim, para a construção da imagem de um peixe que, no instante em que parece estar preso entre as mãos do pescador, logo de seguida parecer escapar. Esta imagem é, pois, sugerida pela alternância de versos curtos (a maioria dos ímpares) e longos (os pares), bem como à concentração de versos mais pequenos, constituídos, no máximo, por três palavras, ocupando uma posição central no poema (versos 7 a 13).
            Deste modo, o sujeito poético sugere que o poema é o resultado de um trabalho árduo, que demanda esforço físico (“eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe”) e paciência. Esta luta constitui uma espécie de questão de vida ou morte.
            Assim, para o poeta, que luta com as palavras, existe apenas uma saída: a morte ou a salvação – “ou morremos os dois / ou nos salvamos os dois”. No fundo, o que está em causa neste poema é o ato de escrita poética, temática abordada por diferentes escritores, sendo o mais célebre Fernando Pessoa e o seu “Autopsicografia”. Durante esse ato, o sujeito poético/poeta necessita de estar atento e concentrado e ser persistente, já que as palavras são escorregadias, como a imagem do peixe sugere, o que implica a tal atenção, precaução e persistência.
            Por outro lado, estas imagens vêm realçar a importância do trabalho com as mãos no ato de criação poética/artística, que exige uma determinada agilidade manual. Com efeito, o poeta necessita de selecionar adequadamente as palavras, as quais constituem a sua matéria-prima, que se materializam e tornam concretas quando são postas no papel. Tudo isto evidencia o “jogo perigoso” em que o poeta se vê envolvido durante o ato de criação poética, bem visível na imagem sôfrega de alguém a tentar apanhar um peixe com as mãos, o qual teima em escorregar e tentar escapar-lhe.
  

Por que razão um monomotor puxa para a esquerda? (parte II)

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