Apesar de o título do poema apontar
para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto
autobiográfico?
É certo que o elemento «auto-» está
presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos
«meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que
aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia
se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo
que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A
Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva
presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da
autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia,
mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora
admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um
texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por
questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.
Uma leitura metafórica do poema permitiria
entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas»
como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente,
sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer
poético.
Porém, o poema pode ser lido também
de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do
quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam
de brincar com estas.
O uso do determinante possessivo
tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético
não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os
gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as
baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel
importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não
tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).
Numa crónica publicada na revista “Visão”,
Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido
durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação
metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos,
isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz
– e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que
em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua
interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois.
Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na
cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou,
com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”
A partir da leitura desta crónica,
Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que
“[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação
simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do
sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e
baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.
Assim sendo, esta composição poética
é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio
poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que
pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título
longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um
poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o
assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito
risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e
pela solidão humana que pode sugerir).
Além disso, os gatos ligam-se
afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma
que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a
escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão
associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória:
“O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para
crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”
O poema, pela relação que estabelece
entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à
questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não
vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história
de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior
de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”)
que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade
factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente
garantida.
O uso do presente do indicativo na
apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja,
a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à
autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que
compreende o relato de acontecimentos passados.
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