quinta-feira, 29 de julho de 2021
Uma análise de Que farei com este livro?
Podcast Que farei com este livro?
Que farei com este livro? é o título de um podcast, da autoria de Catarina Duarte Almeida, que está disponível em qualquer plataforma de streaming.
Análise do Canto V da Ilíada
O Canto V constitui, essencialmente, a aresteia de Diomedes, a mais longa e sangrenta (à exceção da de Aquiles, nos Cantos XX a XXII), que, no fundo, procura compensar a ausência de Aquiles, não obstante não conseguir, em última análise, fornecer a força que o líder dos Mirmidões costumava proporcionar ao exército aqueu e ao combate, como o demonstra a observação de Hera, segundo a qual, enquanto o filho de Tétis combateu, nenhum cavalo de Troia se aventurou para além dos portões da cidade.
Tal como sucede na aristeia,
Diomedes é inspirado e auxiliado por uma divindade (neste caso, Atenas), as
suas armas salientadas e a sua vitória certa, apesar de se encontrar ferido.
Estilisticamente, o poeta recorre a determinados símiles para descrever as
cenas da batalha; por exemplo, compara a ação de Diomedes a água furiosa e os
seus ataques a um leão «louco por garras».
No que diz respeito aos deuses, mais
uma vez parecem dar pouca ou nenhuma importância às consequências das suas
ações para os humanos, exceto se se tratar de um seu protegido naquela ocasião.
O que lhes interessa essencialmente, de forma mesquinha, são os conflitos entre
si. Por outro lado, quando comparados com os homens, os deuses parecem mais
frágeis no que toca a lidar com a dor e o sofrimento. A título exemplificativo,
citem-se os casos de Afrodite e Ares, que, quando são feridos, recolhem logo ao
Olimpo e se queixam, quais crianças, ao «pai» Zeus, enquanto Diomedes continua
a combater depois de ser ferido.
As descrições das batalhas são
longas e frequentemente centram-se nos massacres em massa que as caracterizam,
mas alternam com apontamentos individuais. O poeta, em diversos momentos,
apresenta-nos a personagem que acabou de morrer ou está em vias disso,
dando-nos a conhecer os seus antecedentes, as suas origens e educação,
enfatizando frequentemente a perda que o seu passamento constitui para o seu
exército e a sua pátria. Além disso, Homero alterna descrições de mortes de
combatentes troianos e aqueus, estratégia que impede que a narração se torne
monótona e dê conta do fluxo e refluxo da batalha.
Por outro lado, as provocações são
um elemento bastante importantes no contexto das batalhas. Os soldados desafiam
a coragem e a honra dos seus companheiros para se incentivarem e motivarem para
o combate. Por exemplo, Sarpédon diz a Heitor que os seus comandados estão a
lutar bem melhor para defender Troia do que os troianos do filho de Príamo.
Durante os combates, os homens provocam também os seus inimigos com o intuito
de os desanimar, e até os próprios deuses usam esse estratagema, como, por
exemplo, quando Hera humilha os Aqueus, dizendo-lhes que Aquiles nunca permitiu
que os Troianos passassem além dos portões da cidade.
Resumo do Canto V da Ilíada
Diomedes, um soldado aqueu, é ferido por Pândaro, o que o leva a orar a Atenas, que lhe confere uma força sobre-humana e o poder de discernir os deuses no campo de batalha, mas alerta-o para não atacar nenhum, à exceção de Afrodite.
Dotado dos seus novos poderes,
Diomedes massacra todos os inimigos que lhe surgem pela frente. Eneias e
Pândaro perseguem-no, mas Atenas guia-lhe a lança, que proporciona uma morte
horrível ao arqueiro, enquanto o herói da Eneida é ferido e só não
encontra a morte graças à intervenção de Afrodite, sua mãe. Diomedes fere
também a deusa, cortando-lhe o pulso e mandando-a de volta ao Olimpo, onde
Dione, a sua mãe, a cura, e Zeus a adverte para não voltar a interferir na
guerra. Quanto a Eneias, é tratado por Apolo, que o cura e devolve,
posteriormente, à batalha, mas nesse percurso acaba por ser atacado por
Diomedes, gesto que configura uma transgressão ao acordo que tinha feito com
Atenas de não agredir qualquer outra divindade além de Afrodite. Apolo avisa
severamente o guerreiro grego e afasta-o do seu caminho, enquanto retira Eneias
do campo de batalha e deixa uma réplica do troiano no solo, para servir de
motivação aos companheiros. Por último, o deus do Sol incentiva Ares a lutar
por Troia, informando-o de que um aqueu (Diomedes) acabou de ferir a sua irmã
(Afrodite).
Graças à ajuda divina, os Troianos
parecem ganhar vantagem na contenda, sobretudo graças à ação conjunta de Heitor
e Ares, demasiado fortes para os inimigos. Os heróis de ambos os lados vão
vingando a morte dos seus homens. Alarmadas com o recuo dos Gregos, Hera e
Atenas obtêm de Zeus a permissão para intervir no conflito em auxílio dos
Aqueus. Assim, Hera confronta os Gregos com o facto de Aquiles nunca ter
permitido que os inimigos saíssem para além dos seus portões, enquanto Atenas
permite que Diomedes ataque outros deuses e o incentiva a acometer Ares, que é
atingido pela carruagem e voa de regresso ao Olimpo, onde reclama de Zeus, que
lhe responde que mereceu o seu ferimento. Atingido o seu propósito, Hera e
Atenas retiram-se também do campo de batalha.
Análise do Canto IV da Ilíada
Ao contrário das religiões contemporâneas, os deuses gregos incorporam em si as mesmas paixões e falhas dos seres humanos e interagem com estes frequentemente. A diferença entre uns e outros é que as entidades divinas são eternas, enquanto a humanidade é mortal. A imortalidade divina transforma os seus conflitos em algo trivial e até algo caricato, em contraste com o sofrimento, a dor e a morte que marcam a existência terrena. Como não existem consequências para si, os deuses encontram até prazer nos conflitos em que se envolvem, o que pode ajudar a explicar o facto de Hera e Atenas não aceitarem a trégua entre Troianos e Aqueus, que poderia significar o fim daquela guerra interminável e a instauração da paz, e tudo fazerem para a batalha prosseguir, para vingarem o seu orgulho ferido com a questão do pomo de ouro.
Deste modo, a guerra é retomada, havendo
referências à morte de personagens menores e a confrontos individuais entre
figuras bem mais notáveis. As descrições dos ferimentos que os lutadores vão
sofrendo são terríveis, baseadas numa fórmula característica. Esses ferimentos
são provocados por espadas, lanças, flechas e pedras, que cortam, dilaceram,
esmagam diferentes partes do corpo, com a exposição ocasional de um ou outro
órgão interno. Tudo isto é apresentado pelo poeta com diferentes detalhes
específicos, no sentido de criar uma panóplia diversificada de mortes no campo
de batalha.
Retirar a armadura ao inimigo
derrotado ou apossar-se do seu cavalo constituem prémios valiosos cuja reivindicação
aumenta a honra do vencedor e desonra o derrotado. Só que a ânsia de obter
estas recompensas por vezes têm consequências fatais para quem as deseja
alcançar, dado que o coloca numa situação de alguma vulnerabilidade. É
exemplificativa disto a referência à primeira morte na obra: um soldado, após a
morte do inimigo, procura imediatamente retirar a armadura do corpo do morto,
«distrai-se» e acaba por ser assassinado.
Por outro lado, nem o partido Aqueu
nem o Troiano são apresentados no poema como melhores do que o outro. Tal é
demonstrado pela imagem de dois soldados, um grego e outro troiano, jazendo
mortos um ao lado do outro, enquanto companheiros seus prosseguem a luta e vão
tombando à sua volta. Este facto não pode ser dissociado de outra questão, a da
inexistência de vilões propriamente ditos no poema. De facto, se é verdade que
o poeta narra os eventos na ótica grega, de modo algum vilaniza os Troianos,
até porque, noutros momentos, os contendores foram aliados e combateram pelo
mesmo objetivo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aliança que dois povos
estabeleceram para combater as Amazonas. A violência, o sofrimento, a dor e a
morte recaem sobre ambos os exércitos de forma semelhante; o alívio sentido no
momento em que se acorda que o duelo entre Menelau e Páris porá fim ao conflito
é o mesmo para uns e outros; os combatentes das duas fações desejam que o
culpado pela eventual quebra da trégua seja massacrado e as suas mulheres
estupradas; quando o cessar-fogo é efetivamente rompido, fica claro que nenhum
dos partidos é o culpado, dado que o tiro de Pândaro sobre Menelau só é dado
porque Atenas a tal conduz. Assim sendo, é perfeitamente lícita a conclusão de
que os únicos que, verdadeiramente, retiram prazer da guerra e a quem prolongar
são os deuses, que manipulam os seres humanos para atingir os seus propósitos.
Resumo do Canto IV da Ilíada
No Olimpo, os deuses discutem sobre a guerra. Zeus argumenta que Menelau venceu o duelo com Páris, pelo que o conflito bélico deveria terminar, como acordado entre Gregos e Troianos, e Helena ser devolvida aos primeiros. A esta ideia opõe-se Hera, que não se satisfaz com a vitória grega, antes deseja a destruição completa de Troia. No final da discussão, Zeus cede e envia Atenas ao campo de batalha para levar os Troianos a quebrar a trégua.
Assim, disfarçada de soldado
troiano, a deusa convence o arqueiro Pândaro a disparar sobre Menelau. Ele
dispara, mas Atenas, que não deseja que o ex-esposo de Helena seja morto, unicamente
quer que os Aqueus tenham um pretexto para regressar ao combate, desvia a
flecha, que apenas fere levemente Menelau.
Deste modo, o objetivo do Olimpo é
alcançado: a trégua foi quebrada. Agamémnon reúne o seu exército e estimula e
desafia o orgulho dos principais guerreiros, narrando os grandes feitos dos
seus pais. A batalha recomeça e a carnificina também, destacando-se as ações de
Ulisses e Ájax, que liquidam várias figuras menores do lado troiano. Como
sempre, os deuses não ficam à margem e intervêm no desenrolar dos
acontecimentos, com destaque para Atenas, que ajuda os Gregos, e Apolo, que
está ao lado dos Troianos. E assim os humanos atuam como meros joguetes
manipulados pelos deuses.
Análise do Canto III da Ilíada
Nos dois primeiros cantos, o poeta apresenta os comandantes das forças aqueias; neste, introduz as principais figuras do campo troiano, nomeadamente Príamo, Heitor, Páris e Helena. A ex-rainha de Esparta é descrita como simpática: ela lamenta profundamente o custo do episódio por si protagonizado e chega a desejar ter morrido antes de fugir com Páris, o que mostra a sua vergonha e a consciência da sua responsabilidade na morte de tantas pessoas. O seu remorso e arrependimento, a consciência de que agiu mal e é a causa de tanto sofrimento são bem evidentes quando observa as fileiras do exército aqueu. A cena torna-se pungente quando questiona se os seus irmãos (Castor e Pólux), que não consegue vislumbrar no seio dos Aqueus, se terão recusado a integrar a expedição grega e a lutar por uma irmã tão odiosa, desconhecendo que, na realidade, estão mortos, pelo que a sua ausência não se deve à raiva ou à vergonha pela irmã, mas antes por fazerem parte da vasta lista de vítimas do conflito que ela originou. Quando Afrodite a junta no quarto a Páris, Helena resiste e parece não nutrir grande afeição por ele, chegando inclusive a criticá-lo pela sua cobardia. No entanto, enquanto deusa, Afrodite tem o poder de forçar a ex-esposa de Menelau a amar Páris, o que gera, junto do ouvinte/leitor, uma situação contraditória que exemplifica a complexidade humana: Helena ama e despreza Páris em simultâneo.
Ao contrário dela, Páris não parece
sentir grande pudor ou sentido de responsabilidade pelo seu papel no espoletar
da guerra, no que contrasta com Heitor. Ao avistar Menelau, Páris foge, o que
lhe vale a crítica do irmão, muito mais consciente do ideal de honra, crítica
essa motivada pela desgraça e sofrimento que trouxe, tanto a si mesmo como a
todo o exército troiano. E chega mesmo a desejar que Páris tivesse morrido
antes de consumar o rapto da bela Helena e, com isso, desgraçar o seu povo. É
esta crítica de Heitor que faz com que Páris aceite duelar com Menelau, embora
contrariado; porém, a luta rapidamente se torna embaraçosa para o lado troiano,
e ele tem de ser salvo da morte por Afrodite, a deusa grega do amor (também
designada, no Canto V, como «deusa cobarde»), e não por um deus ligado à
guerra. O príncipe troiano culpa até os deuses pelo desfecho da contenda (algo
que o poeta jamais sugere e que é desmentido, por outro lado, pelo esforço
desenvolvido por Menelau durante o duelo, clarificador da ausência de ajuda a
seu favor), mas não mostra qualquer incómodo ou contrariedade quando a deusa o
leva para o seu quarto. E é este passo da Ilíada que mais contribui para
o esboço de um retrato profundamente disfórico de Páris: enquanto está
recolhido nos seus aposentos, fazendo amor com Helena, o exército troiano é
forçado a continuar a lutar em nome da mulher que ele roubou aos aqueus. Esta
conduta revela toda a cobardia de Páris e colide com o código de honra do
herói, o que desagrada ao seu próprio exército, que o odeia «como a morte».
Por seu turno, Príamo emerge como a
personagem mais humana. Dada a sua idade avançada, já não pode participar na
guerra como combatente, pelo que a sua intervenção não é movida por qualquer
desejo de honra ou glória. Os anciãos de Troia querem devolver Helena aos
Gregos, porém o velho monarca opõe-se-lhe. Ele não a culpa pelo sucedido e
trata-a com humanidade e compaixão, não obstante toda a desgraça que fez recair
sobre a cidade.
quarta-feira, 28 de julho de 2021
Resumo do Canto III da Ilíada
O exército troiano marcha em direção ao homónimo aqueu. Páris, o príncipe de Troia, avança corajosamente à frente das suas forças e desafia os Aqueus para um combate individual com qualquer um deles, mas, quando é confrontado por Menelau, o marido de Helena, acobarda-se e recua, escondendo-se nas fileiras do seu exército. Heitor, seu irmão e comandante das forças que defendem Troia, humilha-o, afirmando que é mais belo do que corajoso. Com o orgulho ferido por causa da ofensa do irmão, Páris concorda em duelar com Menelau, declarando que o desenlace do duelo corresponderá ao fim da guerra e à restauração da paz, pois decidirá de vez qual dos dois terá Helena como esposa.
Enquanto os dois inimigos se
preparam para o combate, a deusa Íris, disfarçada de Laódice, irmã de Heitor,
visita Helena no palácio real e convida-a a assistir ao duelo entre Páris e
Menelau. Ela junta-se então a Príamo e a outros anciãos da cidade, identifica e
descreve os guerreiros aqueus mais fortes, nomeadamente Ulisses, Agamémnon e
Ájax. O rei troiano fica impressionado com a força e o esplendor dos Aqueus, mas
acaba por abandonar o local, pois não suporta ficar e assistir à morte do seu
filho Páris.
O combate tem início e nenhum dos
dois consegue ferir o outro ao arremessar as suas lanças. Menelau acaba por
quebrar a espada no elmo de Páris e, de seguida, agarra-o pelo capacete e
começa a arrastá-lo pelo solo, procurando estrangulá-lo com a tira do capacete.
Contudo, Afrodite, uma deusa aliada dos Troianos, intervém e rompe a tira para
que se solte das mãos de Menelau, que, frustrado, pega de novo na sua lança e
prepara-se para a espetar no inimigo, porém a deusa volta a interferir, levando
o troiano para o seu quarto no palácio de Príamo. Além disso, ela convoca
Helena, que censura Páris pela sua cobardia e, a seguir, se deita com ele.
De volta ao campo de batalha, os
Troianos e os Aqueus procuram Páris, que desapareceu magicamente da sua frente.
Perante isto, Agamémnon declara Menelau o vencedor do duelo e exige o retorno
de Helena.
Análise do Canto II da Ilíada
Em ambos os seus poemas, Homero inicia a narração da ação «in medias res», ou seja, quando ela já vai a meio. O mesmo fará, por exemplo, Camões, muitos séculos depois, quando inicia a narração da viagem de Vasco da Gama à Índia quando ela já se encontra ao largo de Moçambique. O trajeto entre Lisboa e o país africano é relatado posteriormente sob a forma de analepse.
No caso da Ilíada, é referido
no início deste canto que a guerra entre Aqueus e Troianos já dura há mais de 9
anos. O motivo que esteve na sua origem é referido «en passant», presumindo-se
que os ouvintes já conhecem toda a história: Zeus designou Páris, um príncipe
troiano, para decidir qual das deusas – Hera, Atenas ou Afrodite – era a mais
bela. Essa disputa teve origem numa velha lenda, segundo a qual o chefe dos
deuses olímpicos e o seu irmão Poseidon desejavam desposas Tétis. No entanto,
Prometeu profetizou que o filho da deusa seria maior do que o seu pai, por isso
as divindades resolveram dá-la como esposa a Peleu, um homem já idoso, procurando,
assim, que a profecia não se concretizasse. Desse enlace nasceu Aquiles. Tétis,
sua mãe, mergulhou-o nas águas do rio Estige (o curso de água que atravessava o
Inferno) ainda bebé para o tornar invulnerável. Tal de facto sucedeu, exceto no
calcanhar por onde a mãe a segurou enquanto o mergulhava no rio (daí surgiu a
expressão «o calcanhar de Aquiles», que designa o ponto fraco de cada pessoa).
Aquiles tornou-se um poderoso guerreiro quando atingiu o estado adulto, porém
era mortal, e foi alertado por sua mãe de que tinha dois destinos possíveis:
por um lado, combateria em Troia e alcançaria a glória eterna, mas morreria
jovem; por outro, permaneceria na sua terra natal e teria uma vida longa,
contudo seria logo esquecido assim que perecesse. A escolha feita pelo líder
dos Mirmidões é conhecida. Mas a lenda não se esgota aqui. Para o casamento de
Tétis e Peleu, foram convidados todos os deuses exceto Éris, a deusa da
Discórdia (a discórdia, naturalmente, não era bem-vinda a um matrimónio). Ofendida,
marcou presença no enlace invisível e depositou na mesa um pomo de ouro com a
inscrição «Para a mais bela». Hera, Atenas e Afrodite discutiram entre si qual
seria a destinatária do fruto. Zeus, que não desejava atrair para si o odioso
da decisão e a fúria das perdedoras, designou Príamo para resolver a contenda,
no entanto, como já era idoso, o rei apontou o seu filho Páris, na altura um
pastor de rebanhos, para proceder à escolha. Cada uma das três deusas procurou
suborná-lo: Hera ofereceu-lhe o poder político e a oportunidade de ser o rei
mais forte de todos os tempos; Atenas, habilidade na guerra e a possibilidade
de ser o homem mais sábio de sempre; Afrodite, a mulher mais bela do mundo.
Páris escolheu a oferta desta última e entregou-lhe o pomo, atraindo em
simultâneo a fúria das outras duas deusas. Esse ser feminino era Helena, filha
de Zeus e de Leda, esposa de Tíndaro (e irmã gémea da rainha Clitemnestra, de
Castor e Pólux), rei de Esparta. A jovem possuía diversos pretendentes, e o seu
pai adotivo hesitava em tomar uma decisão acerca do marido da sua filha,
temendo ofender os demais. Ulisses, rei de Ítaca, resolveu a questão, levando a
que todos os pretendentes jurassem proteger Helena e a sua escolha, qualquer
que ela fosse. Em última análise, a jovem escolheu Menelau. Tempos depois, uma
embaixada troiana deslocou-se a Esparta, cidade de que o dito Menelau era rei.
Dessa embaixada diplomática fazia parte Páris, que, assim que viu Helena, se
apaixonou por ela, graças à ação de Afrodite. Os dois acabaram por fugir para
Troia, o que deixou enfurecido o marido da bela mulher, o qual relembrou aos
antigos pretendentes o juramento feito. Agamémnon, irmão de Menelau, reuniu
então um enorme exército de mil barcos e atravessou o mar Egeu, em direção à
cidade de Troia, iniciando um cerco que durou dez anos.
Se, no Canto I, o poeta destacou as
figuras de Agamémnon, o seu orgulho e teimosia, e de Aquiles, homem corajoso,
mas também orgulhoso e temperamental, e o seu conflito, no II são salientados
Ulisses e Nestor, que são trazidos a primeiro plano a propósito da debandada
dos soldados em direção aos seus navios, para regressarem a casa. Os discursos
que ambos proferem a propósito desse evento destacam o seu papel de
conselheiros sábios e previdentes, astutos e com clareza de espírito,
características fundamentais para fazer retornar o exército ao cumprimento do
propósito que o tinha trazido ali. Por outro lado, os seus discursos não deixam
dúvidas de que são os mais talentosos dos Aqueus em matéria de oratória e retórica.
Além de estar na origem dos dois
discursos de Ulisses e Nestor, a fuga dos soldados gregos cumpre três
propósitos no poema. Por um lado, evidencia o dramatismo da situação vivida
pelos Aqueus: o seu líder, afinal, não tem consciência da baixa moral que se
instalou entre as suas tropas, daí a incredulidade quando assiste à debandada e
desistência da guerra. A celeridade e a ansiedade com que os soldados fogem
exemplificam a dor e o sofrimento que vivem, mas demonstram igualmente como o
prosseguimento futuro da batalha será mais difícil ainda, em razão da saudade e
da falta de motivação para o combate que revelam. Por outro lado, ao dar conta,
de forma tão enfática, do sofrimento dos Gregos, o poeta enfatiza, com
antecedência, a glória que constituirá a vitória final dos Aqueus, já que estes
estiveram muito próximos de abandonar o campo de batalha e regressar a casa
cobertos de vergonha e caídos em desgraça. O facto de os homens mostrarem que
são capazes de superar o seu sofrimento, o seu desespero e o desejo de retornar
para casa, para junto dos seus, em direção à vitória na guerra indicia
claramente a imensidão do triunfo grego. Em terceiro lugar, a fuga leva à
enumeração das forças aqueias. Seguindo o conselho de Nestor, elas organizam-se
por cidade e clã, o que garante a motivação dos soldados: ao lutarem lado ao
lado com os seus amigos e familiares, o seu investimento emocional no combate
estaria garantido e a distinção entre corajosos e cobardes seria mais fácil de
fazer. Até a tarefa de construir o catálogo parece constituir um exercício
grandioso, justificando a nova invocação das musas por parte do poeta. Embora a
listagem possa constituir uma tarefa enfadonha para o leitor atual, ela seria,
na época, motivo de orgulho, emoção e inspiração. A conquista de Troia foi um
feito épico, glorioso, para o qual contribuíram muitos homens e muitas cidades,
incluindo as menores. Cada grego que escutava a história e ouvia citar a sua
cidade e os seus líderes e heróis antigos lendários como participantes desse triunfo
histórico sentiria um orgulho desmedido, ao ver evocada a sua herança honrosa.
Estilisticamente, neste canto voltam
a destacar-se traços da oralidade, como as repetições. Por exemplo, no seu
início, Zeus envia a Agamémnon uma mensagem através de um sonho, que é repetido
ao rei grego quase integralmente e que este reproduz ao seu exército com as
mesmas palavras. As descrições do ritual de sacrifício que encontramos noutras
poemas são uma repetição parcial ou integral da que encontramos neste canto.
Estas repetições são muito importantes, na medida em que destacam e reforçam
ideias importantes junto dos ouvintes da obra que, por esta ser transmitida
oralmente e não por escrito, não poderiam coltar atrás e reler um passo que não
compreendessem à primeira leitura). Além disso, estas repetições davam tempo ao
poeta/ao contador para pensar no trecho seguinte. Outro recurso que avulta
neste canto é a comparação. O exército aqueu é comparado enxames de abelhas e a
moscas, a um incêndio e a bandos de pássaros. Estas comparações evocam a vida
para além da guerra, mas também contêm sugestões de agressividade, violência ou
destruição trazidas pela guerra. O efeito geral das múltiplas comparações do
Canto II sugere que a guerra e o conflito são parte integrantes da existência
humana.
Resumo do Canto II da Ilíada
Para cumprir a sua promessa a Tétis de ajudar os Troianos, Zeus envia um sonho falso a Agamémnon, no qual lhe aparece a figura de Nestor, que o convence de que poderá derrotar e conquistar Troia se atacar as muralhas da cidade. No dia seguinte, o comandante do exército aqueu reúne-o para dar início ao ataque, mas antes, para testar a coragem dos soldados e a sua vontade de lutar, mente-lhes, dizendo-lhes que desistiu da guerra e que vai voltar para casa. Ato contínuo, os soldados correm para os navios, mas Hera, ao ver isto, alerta Atenas, que inspira Ulisses, o mais eloquente dos gregos, a fazê-los regressar. Acolitado por Nestor, o rei de Ítaca dirige ao exército palavras de encorajamento e insultos, no sentido de despertar o seu orgulho e restaurar a sua confiança e vontade de guerrear. Por outro lado, relembra-os dos sinais que indiciavam a sua vitória na guerra, nomeadamente da profecia de Calcas, proferida aquando da primeira reunião do exército aqueu na Grécia, segundo a qual uma cobra de água deslizou até à costa e devorou um ninho de nove pardais. De acordo com o adivinho, a profecia significava que passariam nove anos até que os Aqueus conquistassem Troia. E aproveita para recordar aos soldados a sua jura de então de que não abandonariam a luta até que a cidade fosse conquistada.
De seguida, Nestor encoraja
Agamémnon a organizar os combatentes por cidade e clã, para que pudessem lutar
ao lado dos seus amigos, conhecidos e familiares. De seguida, o poeta invoca as
musas para auxiliarem a sua memória e enumera as cidades que contribuíram com
tropas para formar o exército grego, o número e homens com que cada uma
contribuiu e quem lidera cada contingente. No final da enumeração, o poeta
realça os mais bravos dos Aqueus, nomeadamente Aquiles e Ájax. Então, Agamémnon
dá início aos preparativos para a batalha e faz sacrifícios em honra de Zeus.
Das tropas que se preparam para o combate não fazem parte Aquiles e os
Mirmidões, por causa da sua jura de que não mais tomaria parte na guerra.
Zeus envia um mensageiro a Troia,
avisando os Troianos sobre os preparativos do exército aqueu. Aqueles reúnem as
suas tropas sob o comando de Heitor, filho de Príamo, o rei da cidade. Depois o
poeta cataloga as forças troianas, à semelhança do que tinha feito com os
Gregos.
Análise do Canto I da Ilíada
Agamémnon só aceitará devolver a sua
escrava se receber, em troca, Criseida, um «prémio igual», portanto, o que
origina o conflito com Aquiles: cada um insulta a honra e o orgulho do outro –
o filho de Tétis e Peleu apelida o rei de ganancioso e cobarde, enquanto este
menospreza as qualidades guerreiras daquele. Quando Agamémnon retira Briseida a
Aquiles, desonra-o, bem como a sua mãe, por extensão, o que significa que
agravou o seu maior guerreiro e os deuses do Olimpo. Note-se que Agamémnon já
tinha cometido o crime da sua filha Ifigénia, cuja vida sacrificou para
beneficiar do favor dos ventos nas velas dos seus navios que tinham encalhado a
caminho de Troia antes do início da guerra, gesto que causará a sua própria
morte, às mãos da sua esposa, após o seu regresso da batalha, em parte como
vingança pelo sacrifício da jovem. Nada disto faz parte da ação da Ilíada,
mas ajuda a compreender a postura de Agamémnon, que tudo sacrificou (incluindo
a sua filha, o que configura a sua hybris, o desafio pelo qual irá pagar
o máximo preço: a vida) para atender ao seu orgulho e alcançar os seus
objetivos.
Assim sendo, a Ilíada, no
Canto I, centra-se na fúria de Aquiles, nomeadamente na sua origem/causa, no
modo como incapacita o exército aqueu e como, posteriormente, é redirecionada
para os Troianos. Assim sendo, é possível supor que a guerra propriamente dita
serve mais como pano de funo da obra do que como seu assunto principal. É uma
hipótese de análise que se pode colocar em cima da mesa. Parecendo confirmar
esta ideia, temos o facto de, aquando do enfrentamento entre Agamémnon e
Aquiles, o conflito entre Troianos e Aqueus durar há quase dez anos; além
disso, a ausência do filho de Tétis do campo de batalha dura apenas alguns dias
e o poema termina pouco depois do seu regresso. Por outro lado, a obra de
Homero não enuncia as origens nem o desenlace da guerra, antes se debruça sobre
as origens e o fim da fúria de Aquiles.
Um outro foco de análise da Ilíada
prende-se com a figura dos deuses, as suas ações e motivações. São eles que
conduzem os humanos. Note-se, por exemplo, que, no fundo, o responsável do
conflito entre Agamémnon e Aquiles é Apolo e a praga enviada sobre o
acampamento aqueu, não obstante a importância da natureza humana. Para os gregos
antigos, quer as motivações internas quer os acontecimentos que estão fora do
controle humano são obra dos deuses. Por exemplo, Aquiles só não mata Agamémnon
porque Atenas o impede. De modo muito genérico, podemos dizer que os deuses
intervêm nos assuntos mortais de duas formas. Por um lado, agem como forças
externas no curso dos acontecimentos. Exemplo disto é o facto de ser Apolo a
enviar a praga sobre os Aqueus. Por outro lado, eles constituem forças internas
que agem sobre os indivíduos, como se pode comprovar pelo facto de ser Atenas,
a deusa grega da sabedoria, a impedir Aquiles de matar Agamémnon, um ato
distante de qualquer racionalidade, vencendo-o antes através das palavras. Além
disso, as ações dos deuses funcionam ainda como forma de alívio cómico. Por
exemplo, a querela entre Zeus e Hera configura um conflito bem mais leve do que
a disputa entre Aquiles e Agamémnon.
Isto não impede que o poeta
apresente as divindades próximas da mundividência humana. Zeus compromete-se a
auxiliar os Troianos não por uma questão moral, mas apenas para pagar um favor
que deve a Tétis. De modo semelhante, a hesitação em cumpri a promessa não tem
a ver com a intenção de não interferir no curso dos acontecimentos, mas com o
seu receio de irritar Hera. Quando esta fica realmente irritada, o esposo só a
consegue silenciar quando ameaça estrangulá-la. Estes exemplos de partidarismo,
orgulho ferido e conflitos domésticos, bastante comuns entre os deuses
olímpicos, sugerem uma imagem das divindades como figuras mais «humanas» do que
se poderia esperar.
Em suma, o Canto I da Ilíada
deixa, desde logo, bem visível a importância do orgulho e da honra pessoal no
contexto do sistema grego de valores da Antiguidade. Exemplo disso são as
atuações de Aquiles e Agamémnon, que colocam o seu «eu», o seu orgulho, a sua
glória individual acima do bem-estar do seu exército. O comandante aqueu
acredita que, enquanto chefe do exército, tem direito ao maior prémio
disponível – Briseida –, por isso não hesita em hostilizar o seu guerreiro mais
destacado, para garantir que possuirá o que acredita ser-lhe devido. Por seu
turno, Aquiles opta por defender o seu direito a Briseida, o despojo que lhe
coube após a vitória e o saque da cidade aliada de Troia, em vez de acalmar a
situação. Orgulhosos, cada uma das personagens considera que submeter-se à
vontade do outro constituiria uma humilhação, em vez de um gesto de honra ou
dever. Isto significa que ambos colocam o seu interesse à frente do do seu povo
e dos seus comandados, colocando, em última análise, em risco todo o esforço de
guerra.
Note-se, por último, que é possível
observar características da tradição oral logo no Canto I, como, por exemplo, o
recurso a epítetos. Cada personagem ou objeto podem ser referidos ou descritos
de diferentes maneiras. É o caso de Aquiles, frequentemente descrito como «de
pés velozes», «divino», etc. Por vezes, a escolha do vocabulário é condicionada
pelo respeito pela métrica. Por outro lado, a repetição de epítetos ou
determinadas expressões ajudava os ouvintes a identificar de imediato
personagens e objetos.
terça-feira, 27 de julho de 2021
Resumo do Canto I da Ilíada
A
narrativa propriamente dita começa nove amos (quase dez) após o início do
conflito bélico, no momento em que os Aqueus saqueiam uma cidade aliada de
Troia e capturam duas jovens e belas donzelas: Criseida e Briseida. Agamémnon,
o comandante do exército aqueu, reclama Criseida para sua escrava e concubina,
enquanto Aquiles fica com Briseida. Crises, o pai da primeira e sacerdote de
Apolo, implora a Agamémnon que lhe devolva a filha, oferecendo em troca um rico
resgate. No entanto, o monarca grego recusa-se a satisfazer o pedido do pai
ferido, por isso reza a Apolo, que envia uma praga sobre o acampamento grego
que causa a morte de muitos soldados.
Passados
dez dias do surgimento da praga, Aquiles reúne o exército aqueu no sentido de
averiguar a sua causa. Calcas, um adivinho, revela então que ela constitui uma
vingança enviada por Apolo a pedido de Crises por causa de Agamémnon se ter
recusado a devolver a filha ao sacerdote, o que provoca a fúria do líder do
exército grego, que declara que só devolverá Criseida se Aquiles lhe der
Briseida como compensação. Esta exigência humilha e enfurece o maior guerreiro
aqueu, que ameaça retirar-se da guerra e levar consigo os Mirmidões, os seus
guerreiros. A discussão entre os dois sobe de tom e somente a intervenção de
Atenas impede Aquiles de matar Agamémnon. Os conselhos da deusa e o discurso
sábio de Nestor conseguem, por fim, impedir o duelo.
Nessa
noite, Agamémnon envia Criseida de volta para o seu pai e manda enviados +ara
Briseida seja retirada da tenda de Aquiles e conduzida à sua. Aquiles pede,
então, a Tétis, deusa do mar e sua mãe, que solicite a Zeus que castigue os
Aqueus, depois de lhe ter contado a sua discussão com Agamémnon. Tétis promete
falar com o chefe dos deuses, que lhe deve um favor, assim que ele regressar de
um período de treze dias de festa com os etíopes. Enquanto isso, Ulisses
devolve Criseida ao pai e faz sacrifícios em honra de Apolo. O regresso da
filha deixa Crises muito feliz e reza ao deus para que termine a praga enviada
sobre o acampamento grego. Apolo aceita a oração e Ulisses regressa para junto
dos seus companheiros.
Sucede
que Aquiles, depois do confronto com Agamémnon, não voltou a participar na
guerra. Entrementes, passados doze dias, Tétis fala com Zeus, como havia
prometido ao filho, mas o pai dos deuses hesita em ajudar os Troianos, pois
Hera, sua esposa, está do lado dos Gregos, mas acaba por concordar, o que deixa
a deusa furiosa, porém o seu filho Hefesto convence-a a não iniciar um conflito
entre os deuses por causa de meros mortais.