Em ambos os seus poemas, Homero inicia a narração da ação «in medias res», ou seja, quando ela já vai a meio. O mesmo fará, por exemplo, Camões, muitos séculos depois, quando inicia a narração da viagem de Vasco da Gama à Índia quando ela já se encontra ao largo de Moçambique. O trajeto entre Lisboa e o país africano é relatado posteriormente sob a forma de analepse.
No caso da Ilíada, é referido
no início deste canto que a guerra entre Aqueus e Troianos já dura há mais de 9
anos. O motivo que esteve na sua origem é referido «en passant», presumindo-se
que os ouvintes já conhecem toda a história: Zeus designou Páris, um príncipe
troiano, para decidir qual das deusas – Hera, Atenas ou Afrodite – era a mais
bela. Essa disputa teve origem numa velha lenda, segundo a qual o chefe dos
deuses olímpicos e o seu irmão Poseidon desejavam desposas Tétis. No entanto,
Prometeu profetizou que o filho da deusa seria maior do que o seu pai, por isso
as divindades resolveram dá-la como esposa a Peleu, um homem já idoso, procurando,
assim, que a profecia não se concretizasse. Desse enlace nasceu Aquiles. Tétis,
sua mãe, mergulhou-o nas águas do rio Estige (o curso de água que atravessava o
Inferno) ainda bebé para o tornar invulnerável. Tal de facto sucedeu, exceto no
calcanhar por onde a mãe a segurou enquanto o mergulhava no rio (daí surgiu a
expressão «o calcanhar de Aquiles», que designa o ponto fraco de cada pessoa).
Aquiles tornou-se um poderoso guerreiro quando atingiu o estado adulto, porém
era mortal, e foi alertado por sua mãe de que tinha dois destinos possíveis:
por um lado, combateria em Troia e alcançaria a glória eterna, mas morreria
jovem; por outro, permaneceria na sua terra natal e teria uma vida longa,
contudo seria logo esquecido assim que perecesse. A escolha feita pelo líder
dos Mirmidões é conhecida. Mas a lenda não se esgota aqui. Para o casamento de
Tétis e Peleu, foram convidados todos os deuses exceto Éris, a deusa da
Discórdia (a discórdia, naturalmente, não era bem-vinda a um matrimónio). Ofendida,
marcou presença no enlace invisível e depositou na mesa um pomo de ouro com a
inscrição «Para a mais bela». Hera, Atenas e Afrodite discutiram entre si qual
seria a destinatária do fruto. Zeus, que não desejava atrair para si o odioso
da decisão e a fúria das perdedoras, designou Príamo para resolver a contenda,
no entanto, como já era idoso, o rei apontou o seu filho Páris, na altura um
pastor de rebanhos, para proceder à escolha. Cada uma das três deusas procurou
suborná-lo: Hera ofereceu-lhe o poder político e a oportunidade de ser o rei
mais forte de todos os tempos; Atenas, habilidade na guerra e a possibilidade
de ser o homem mais sábio de sempre; Afrodite, a mulher mais bela do mundo.
Páris escolheu a oferta desta última e entregou-lhe o pomo, atraindo em
simultâneo a fúria das outras duas deusas. Esse ser feminino era Helena, filha
de Zeus e de Leda, esposa de Tíndaro (e irmã gémea da rainha Clitemnestra, de
Castor e Pólux), rei de Esparta. A jovem possuía diversos pretendentes, e o seu
pai adotivo hesitava em tomar uma decisão acerca do marido da sua filha,
temendo ofender os demais. Ulisses, rei de Ítaca, resolveu a questão, levando a
que todos os pretendentes jurassem proteger Helena e a sua escolha, qualquer
que ela fosse. Em última análise, a jovem escolheu Menelau. Tempos depois, uma
embaixada troiana deslocou-se a Esparta, cidade de que o dito Menelau era rei.
Dessa embaixada diplomática fazia parte Páris, que, assim que viu Helena, se
apaixonou por ela, graças à ação de Afrodite. Os dois acabaram por fugir para
Troia, o que deixou enfurecido o marido da bela mulher, o qual relembrou aos
antigos pretendentes o juramento feito. Agamémnon, irmão de Menelau, reuniu
então um enorme exército de mil barcos e atravessou o mar Egeu, em direção à
cidade de Troia, iniciando um cerco que durou dez anos.
Se, no Canto I, o poeta destacou as
figuras de Agamémnon, o seu orgulho e teimosia, e de Aquiles, homem corajoso,
mas também orgulhoso e temperamental, e o seu conflito, no II são salientados
Ulisses e Nestor, que são trazidos a primeiro plano a propósito da debandada
dos soldados em direção aos seus navios, para regressarem a casa. Os discursos
que ambos proferem a propósito desse evento destacam o seu papel de
conselheiros sábios e previdentes, astutos e com clareza de espírito,
características fundamentais para fazer retornar o exército ao cumprimento do
propósito que o tinha trazido ali. Por outro lado, os seus discursos não deixam
dúvidas de que são os mais talentosos dos Aqueus em matéria de oratória e retórica.
Além de estar na origem dos dois
discursos de Ulisses e Nestor, a fuga dos soldados gregos cumpre três
propósitos no poema. Por um lado, evidencia o dramatismo da situação vivida
pelos Aqueus: o seu líder, afinal, não tem consciência da baixa moral que se
instalou entre as suas tropas, daí a incredulidade quando assiste à debandada e
desistência da guerra. A celeridade e a ansiedade com que os soldados fogem
exemplificam a dor e o sofrimento que vivem, mas demonstram igualmente como o
prosseguimento futuro da batalha será mais difícil ainda, em razão da saudade e
da falta de motivação para o combate que revelam. Por outro lado, ao dar conta,
de forma tão enfática, do sofrimento dos Gregos, o poeta enfatiza, com
antecedência, a glória que constituirá a vitória final dos Aqueus, já que estes
estiveram muito próximos de abandonar o campo de batalha e regressar a casa
cobertos de vergonha e caídos em desgraça. O facto de os homens mostrarem que
são capazes de superar o seu sofrimento, o seu desespero e o desejo de retornar
para casa, para junto dos seus, em direção à vitória na guerra indicia
claramente a imensidão do triunfo grego. Em terceiro lugar, a fuga leva à
enumeração das forças aqueias. Seguindo o conselho de Nestor, elas organizam-se
por cidade e clã, o que garante a motivação dos soldados: ao lutarem lado ao
lado com os seus amigos e familiares, o seu investimento emocional no combate
estaria garantido e a distinção entre corajosos e cobardes seria mais fácil de
fazer. Até a tarefa de construir o catálogo parece constituir um exercício
grandioso, justificando a nova invocação das musas por parte do poeta. Embora a
listagem possa constituir uma tarefa enfadonha para o leitor atual, ela seria,
na época, motivo de orgulho, emoção e inspiração. A conquista de Troia foi um
feito épico, glorioso, para o qual contribuíram muitos homens e muitas cidades,
incluindo as menores. Cada grego que escutava a história e ouvia citar a sua
cidade e os seus líderes e heróis antigos lendários como participantes desse triunfo
histórico sentiria um orgulho desmedido, ao ver evocada a sua herança honrosa.
Estilisticamente, neste canto voltam
a destacar-se traços da oralidade, como as repetições. Por exemplo, no seu
início, Zeus envia a Agamémnon uma mensagem através de um sonho, que é repetido
ao rei grego quase integralmente e que este reproduz ao seu exército com as
mesmas palavras. As descrições do ritual de sacrifício que encontramos noutras
poemas são uma repetição parcial ou integral da que encontramos neste canto.
Estas repetições são muito importantes, na medida em que destacam e reforçam
ideias importantes junto dos ouvintes da obra que, por esta ser transmitida
oralmente e não por escrito, não poderiam coltar atrás e reler um passo que não
compreendessem à primeira leitura). Além disso, estas repetições davam tempo ao
poeta/ao contador para pensar no trecho seguinte. Outro recurso que avulta
neste canto é a comparação. O exército aqueu é comparado enxames de abelhas e a
moscas, a um incêndio e a bandos de pássaros. Estas comparações evocam a vida
para além da guerra, mas também contêm sugestões de agressividade, violência ou
destruição trazidas pela guerra. O efeito geral das múltiplas comparações do
Canto II sugere que a guerra e o conflito são parte integrantes da existência
humana.
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