Agamémnon só aceitará devolver a sua
escrava se receber, em troca, Criseida, um «prémio igual», portanto, o que
origina o conflito com Aquiles: cada um insulta a honra e o orgulho do outro –
o filho de Tétis e Peleu apelida o rei de ganancioso e cobarde, enquanto este
menospreza as qualidades guerreiras daquele. Quando Agamémnon retira Briseida a
Aquiles, desonra-o, bem como a sua mãe, por extensão, o que significa que
agravou o seu maior guerreiro e os deuses do Olimpo. Note-se que Agamémnon já
tinha cometido o crime da sua filha Ifigénia, cuja vida sacrificou para
beneficiar do favor dos ventos nas velas dos seus navios que tinham encalhado a
caminho de Troia antes do início da guerra, gesto que causará a sua própria
morte, às mãos da sua esposa, após o seu regresso da batalha, em parte como
vingança pelo sacrifício da jovem. Nada disto faz parte da ação da Ilíada,
mas ajuda a compreender a postura de Agamémnon, que tudo sacrificou (incluindo
a sua filha, o que configura a sua hybris, o desafio pelo qual irá pagar
o máximo preço: a vida) para atender ao seu orgulho e alcançar os seus
objetivos.
Assim sendo, a Ilíada, no
Canto I, centra-se na fúria de Aquiles, nomeadamente na sua origem/causa, no
modo como incapacita o exército aqueu e como, posteriormente, é redirecionada
para os Troianos. Assim sendo, é possível supor que a guerra propriamente dita
serve mais como pano de funo da obra do que como seu assunto principal. É uma
hipótese de análise que se pode colocar em cima da mesa. Parecendo confirmar
esta ideia, temos o facto de, aquando do enfrentamento entre Agamémnon e
Aquiles, o conflito entre Troianos e Aqueus durar há quase dez anos; além
disso, a ausência do filho de Tétis do campo de batalha dura apenas alguns dias
e o poema termina pouco depois do seu regresso. Por outro lado, a obra de
Homero não enuncia as origens nem o desenlace da guerra, antes se debruça sobre
as origens e o fim da fúria de Aquiles.
Um outro foco de análise da Ilíada
prende-se com a figura dos deuses, as suas ações e motivações. São eles que
conduzem os humanos. Note-se, por exemplo, que, no fundo, o responsável do
conflito entre Agamémnon e Aquiles é Apolo e a praga enviada sobre o
acampamento aqueu, não obstante a importância da natureza humana. Para os gregos
antigos, quer as motivações internas quer os acontecimentos que estão fora do
controle humano são obra dos deuses. Por exemplo, Aquiles só não mata Agamémnon
porque Atenas o impede. De modo muito genérico, podemos dizer que os deuses
intervêm nos assuntos mortais de duas formas. Por um lado, agem como forças
externas no curso dos acontecimentos. Exemplo disto é o facto de ser Apolo a
enviar a praga sobre os Aqueus. Por outro lado, eles constituem forças internas
que agem sobre os indivíduos, como se pode comprovar pelo facto de ser Atenas,
a deusa grega da sabedoria, a impedir Aquiles de matar Agamémnon, um ato
distante de qualquer racionalidade, vencendo-o antes através das palavras. Além
disso, as ações dos deuses funcionam ainda como forma de alívio cómico. Por
exemplo, a querela entre Zeus e Hera configura um conflito bem mais leve do que
a disputa entre Aquiles e Agamémnon.
Isto não impede que o poeta
apresente as divindades próximas da mundividência humana. Zeus compromete-se a
auxiliar os Troianos não por uma questão moral, mas apenas para pagar um favor
que deve a Tétis. De modo semelhante, a hesitação em cumpri a promessa não tem
a ver com a intenção de não interferir no curso dos acontecimentos, mas com o
seu receio de irritar Hera. Quando esta fica realmente irritada, o esposo só a
consegue silenciar quando ameaça estrangulá-la. Estes exemplos de partidarismo,
orgulho ferido e conflitos domésticos, bastante comuns entre os deuses
olímpicos, sugerem uma imagem das divindades como figuras mais «humanas» do que
se poderia esperar.
Em suma, o Canto I da Ilíada
deixa, desde logo, bem visível a importância do orgulho e da honra pessoal no
contexto do sistema grego de valores da Antiguidade. Exemplo disso são as
atuações de Aquiles e Agamémnon, que colocam o seu «eu», o seu orgulho, a sua
glória individual acima do bem-estar do seu exército. O comandante aqueu
acredita que, enquanto chefe do exército, tem direito ao maior prémio
disponível – Briseida –, por isso não hesita em hostilizar o seu guerreiro mais
destacado, para garantir que possuirá o que acredita ser-lhe devido. Por seu
turno, Aquiles opta por defender o seu direito a Briseida, o despojo que lhe
coube após a vitória e o saque da cidade aliada de Troia, em vez de acalmar a
situação. Orgulhosos, cada uma das personagens considera que submeter-se à
vontade do outro constituiria uma humilhação, em vez de um gesto de honra ou
dever. Isto significa que ambos colocam o seu interesse à frente do do seu povo
e dos seus comandados, colocando, em última análise, em risco todo o esforço de
guerra.
Note-se, por último, que é possível
observar características da tradição oral logo no Canto I, como, por exemplo, o
recurso a epítetos. Cada personagem ou objeto podem ser referidos ou descritos
de diferentes maneiras. É o caso de Aquiles, frequentemente descrito como «de
pés velozes», «divino», etc. Por vezes, a escolha do vocabulário é condicionada
pelo respeito pela métrica. Por outro lado, a repetição de epítetos ou
determinadas expressões ajudava os ouvintes a identificar de imediato
personagens e objetos.
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