Português: Análise do Canto I da Ilíada

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Análise do Canto I da Ilíada

             O primeiro verso da Ilíada apresenta-nos desde logo o tema do poema: a cólera/a fúria de Aquiles, evidenciada pela primeira palavra da obra – menin. E qual é a sua causa? Nada mais nada menos do que o orgulho e a honra, este último um conceito central na Antiguidade. Por outro lado, a palavra menin também significa «preço» ou «valor», o que significa que a perda de um prémio muito valioso por parte de Agamémnon constitui igualmente uma perda significativa de honra. No entanto, parece que abdicar de algo muito valioso para resguardar o seu exército constituiria também um gesto de honra e valor. Todavia, o orgulho de Agamémnon impossibilita isso, mesmo tendo como contrapartida a promessa de valiosas recompensas futuras.

            Agamémnon só aceitará devolver a sua escrava se receber, em troca, Criseida, um «prémio igual», portanto, o que origina o conflito com Aquiles: cada um insulta a honra e o orgulho do outro – o filho de Tétis e Peleu apelida o rei de ganancioso e cobarde, enquanto este menospreza as qualidades guerreiras daquele. Quando Agamémnon retira Briseida a Aquiles, desonra-o, bem como a sua mãe, por extensão, o que significa que agravou o seu maior guerreiro e os deuses do Olimpo. Note-se que Agamémnon já tinha cometido o crime da sua filha Ifigénia, cuja vida sacrificou para beneficiar do favor dos ventos nas velas dos seus navios que tinham encalhado a caminho de Troia antes do início da guerra, gesto que causará a sua própria morte, às mãos da sua esposa, após o seu regresso da batalha, em parte como vingança pelo sacrifício da jovem. Nada disto faz parte da ação da Ilíada, mas ajuda a compreender a postura de Agamémnon, que tudo sacrificou (incluindo a sua filha, o que configura a sua hybris, o desafio pelo qual irá pagar o máximo preço: a vida) para atender ao seu orgulho e alcançar os seus objetivos.

            Assim sendo, a Ilíada, no Canto I, centra-se na fúria de Aquiles, nomeadamente na sua origem/causa, no modo como incapacita o exército aqueu e como, posteriormente, é redirecionada para os Troianos. Assim sendo, é possível supor que a guerra propriamente dita serve mais como pano de funo da obra do que como seu assunto principal. É uma hipótese de análise que se pode colocar em cima da mesa. Parecendo confirmar esta ideia, temos o facto de, aquando do enfrentamento entre Agamémnon e Aquiles, o conflito entre Troianos e Aqueus durar há quase dez anos; além disso, a ausência do filho de Tétis do campo de batalha dura apenas alguns dias e o poema termina pouco depois do seu regresso. Por outro lado, a obra de Homero não enuncia as origens nem o desenlace da guerra, antes se debruça sobre as origens e o fim da fúria de Aquiles.

            Um outro foco de análise da Ilíada prende-se com a figura dos deuses, as suas ações e motivações. São eles que conduzem os humanos. Note-se, por exemplo, que, no fundo, o responsável do conflito entre Agamémnon e Aquiles é Apolo e a praga enviada sobre o acampamento aqueu, não obstante a importância da natureza humana. Para os gregos antigos, quer as motivações internas quer os acontecimentos que estão fora do controle humano são obra dos deuses. Por exemplo, Aquiles só não mata Agamémnon porque Atenas o impede. De modo muito genérico, podemos dizer que os deuses intervêm nos assuntos mortais de duas formas. Por um lado, agem como forças externas no curso dos acontecimentos. Exemplo disto é o facto de ser Apolo a enviar a praga sobre os Aqueus. Por outro lado, eles constituem forças internas que agem sobre os indivíduos, como se pode comprovar pelo facto de ser Atenas, a deusa grega da sabedoria, a impedir Aquiles de matar Agamémnon, um ato distante de qualquer racionalidade, vencendo-o antes através das palavras. Além disso, as ações dos deuses funcionam ainda como forma de alívio cómico. Por exemplo, a querela entre Zeus e Hera configura um conflito bem mais leve do que a disputa entre Aquiles e Agamémnon.

            Isto não impede que o poeta apresente as divindades próximas da mundividência humana. Zeus compromete-se a auxiliar os Troianos não por uma questão moral, mas apenas para pagar um favor que deve a Tétis. De modo semelhante, a hesitação em cumpri a promessa não tem a ver com a intenção de não interferir no curso dos acontecimentos, mas com o seu receio de irritar Hera. Quando esta fica realmente irritada, o esposo só a consegue silenciar quando ameaça estrangulá-la. Estes exemplos de partidarismo, orgulho ferido e conflitos domésticos, bastante comuns entre os deuses olímpicos, sugerem uma imagem das divindades como figuras mais «humanas» do que se poderia esperar.

            Em suma, o Canto I da Ilíada deixa, desde logo, bem visível a importância do orgulho e da honra pessoal no contexto do sistema grego de valores da Antiguidade. Exemplo disso são as atuações de Aquiles e Agamémnon, que colocam o seu «eu», o seu orgulho, a sua glória individual acima do bem-estar do seu exército. O comandante aqueu acredita que, enquanto chefe do exército, tem direito ao maior prémio disponível – Briseida –, por isso não hesita em hostilizar o seu guerreiro mais destacado, para garantir que possuirá o que acredita ser-lhe devido. Por seu turno, Aquiles opta por defender o seu direito a Briseida, o despojo que lhe coube após a vitória e o saque da cidade aliada de Troia, em vez de acalmar a situação. Orgulhosos, cada uma das personagens considera que submeter-se à vontade do outro constituiria uma humilhação, em vez de um gesto de honra ou dever. Isto significa que ambos colocam o seu interesse à frente do do seu povo e dos seus comandados, colocando, em última análise, em risco todo o esforço de guerra.

            Note-se, por último, que é possível observar características da tradição oral logo no Canto I, como, por exemplo, o recurso a epítetos. Cada personagem ou objeto podem ser referidos ou descritos de diferentes maneiras. É o caso de Aquiles, frequentemente descrito como «de pés velozes», «divino», etc. Por vezes, a escolha do vocabulário é condicionada pelo respeito pela métrica. Por outro lado, a repetição de epítetos ou determinadas expressões ajudava os ouvintes a identificar de imediato personagens e objetos.

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