Nos dois primeiros cantos, o poeta apresenta os comandantes das forças aqueias; neste, introduz as principais figuras do campo troiano, nomeadamente Príamo, Heitor, Páris e Helena. A ex-rainha de Esparta é descrita como simpática: ela lamenta profundamente o custo do episódio por si protagonizado e chega a desejar ter morrido antes de fugir com Páris, o que mostra a sua vergonha e a consciência da sua responsabilidade na morte de tantas pessoas. O seu remorso e arrependimento, a consciência de que agiu mal e é a causa de tanto sofrimento são bem evidentes quando observa as fileiras do exército aqueu. A cena torna-se pungente quando questiona se os seus irmãos (Castor e Pólux), que não consegue vislumbrar no seio dos Aqueus, se terão recusado a integrar a expedição grega e a lutar por uma irmã tão odiosa, desconhecendo que, na realidade, estão mortos, pelo que a sua ausência não se deve à raiva ou à vergonha pela irmã, mas antes por fazerem parte da vasta lista de vítimas do conflito que ela originou. Quando Afrodite a junta no quarto a Páris, Helena resiste e parece não nutrir grande afeição por ele, chegando inclusive a criticá-lo pela sua cobardia. No entanto, enquanto deusa, Afrodite tem o poder de forçar a ex-esposa de Menelau a amar Páris, o que gera, junto do ouvinte/leitor, uma situação contraditória que exemplifica a complexidade humana: Helena ama e despreza Páris em simultâneo.
Ao contrário dela, Páris não parece
sentir grande pudor ou sentido de responsabilidade pelo seu papel no espoletar
da guerra, no que contrasta com Heitor. Ao avistar Menelau, Páris foge, o que
lhe vale a crítica do irmão, muito mais consciente do ideal de honra, crítica
essa motivada pela desgraça e sofrimento que trouxe, tanto a si mesmo como a
todo o exército troiano. E chega mesmo a desejar que Páris tivesse morrido
antes de consumar o rapto da bela Helena e, com isso, desgraçar o seu povo. É
esta crítica de Heitor que faz com que Páris aceite duelar com Menelau, embora
contrariado; porém, a luta rapidamente se torna embaraçosa para o lado troiano,
e ele tem de ser salvo da morte por Afrodite, a deusa grega do amor (também
designada, no Canto V, como «deusa cobarde»), e não por um deus ligado à
guerra. O príncipe troiano culpa até os deuses pelo desfecho da contenda (algo
que o poeta jamais sugere e que é desmentido, por outro lado, pelo esforço
desenvolvido por Menelau durante o duelo, clarificador da ausência de ajuda a
seu favor), mas não mostra qualquer incómodo ou contrariedade quando a deusa o
leva para o seu quarto. E é este passo da Ilíada que mais contribui para
o esboço de um retrato profundamente disfórico de Páris: enquanto está
recolhido nos seus aposentos, fazendo amor com Helena, o exército troiano é
forçado a continuar a lutar em nome da mulher que ele roubou aos aqueus. Esta
conduta revela toda a cobardia de Páris e colide com o código de honra do
herói, o que desagrada ao seu próprio exército, que o odeia «como a morte».
Por seu turno, Príamo emerge como a
personagem mais humana. Dada a sua idade avançada, já não pode participar na
guerra como combatente, pelo que a sua intervenção não é movida por qualquer
desejo de honra ou glória. Os anciãos de Troia querem devolver Helena aos
Gregos, porém o velho monarca opõe-se-lhe. Ele não a culpa pelo sucedido e
trata-a com humanidade e compaixão, não obstante toda a desgraça que fez recair
sobre a cidade.
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