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sexta-feira, 30 de julho de 2021

Publicidade não enganosa


 

Análise do Canto VIII da Ilíada

             O desfecho da guerra vai alternando, no entanto, no final do presente canto, tudo parece apontar para a derrota dos Gregos. Heitor esteve prestes a apoderar-se das suas fortificações, e os seus subordinados parecem mais determinados do que nunca. O desespero mútuo por causa da guerra que esteve na origem de um cessar-fogo anterior deixou de se fazer notar. Se antes os Troianos ansiavam pelo fim do conflito, agora querem vencê-lo a todo o custo, e o facto de acamparem, nessa noite, fora das muralhas de Troia demonstra o quão desejam combater os inimigos.

            No que diz respeito aos deuses, há que salientar o facto de Zeus, até este ponto da estória, se ter mantido em grande parte fora da guerra, limitando a sua intervenção a supervisionar as ações e diferendos dos outros deuses e a enviar sinais/sonhos ocasionais. No entanto, neste momento, assume o controle direto dos acontecimentos, mudando a sua dinâmica de forma considerável: proíbe os outros deuses de intervirem e mergulha de cabeça na luta. Antes, as intervenções das demais divindades em favor do lado que apoiavam acabava por manter a luta equilibrada, não dando a nenhum dos exércitos grande vantagem sobre o outro; todavia, a entrada em cena de Zeus a favor dos Troianos faz pender a balança claramente para o seu lado. Esta reviravolta súbita no desenrolar da trama constitui uma mudança significativa no que diz respeito à dinâmica humana no poema. Com efeito, tudo se desenvolve no sentido de preparar o regresso de Aquiles ao combate. A própria declaração de Zeus a Hera, segundo a qual apenas o retorno do líder dos Mirmidões poderá salvar os Gregos do desaire, é sinónimo disso e dá sinal de que o foco narrativo se vai concentrar, a breve trecho, na sua figura e ação. Até agora, presenciámos as consequências nefastas (para os Gregos) da cólera de Aquiles; o Canto VIII prepara o cenário para uma explosão dessa sua fúria no campo da batalha.

            Neste passo da obra, existem diversos aspetos simbólicos que convém destacar. Os navios gregos simbolizam o lar e a possibilidade de fuga e de regresso ao seu conforto. Assim sendo, a intenção de Heitor de os queimar constitui uma ameaça direta à sua sobrevivência individual e enquanto povo. Sem nenhum outro meio de fuga, eles seriam feitos prisioneiros e massacrados. Esta possibilidade é tanto mais significativa se tivermos em conta que a esmagadora maioria dos homens gregos se encontram ali, tendo muito poucos ficado em casa. Além disso, aqueles são os melhores dos Gregos. Deste modo, a sua eventual derrota implicaria que os homens e os governantes mais destacados, fortes e nobres ali morreriam ou ficariam encalhados, deixando as suas cidades e reinos à mercê de quem os quisesse conquistar.

            Por outro lado, a nova postura de Zeus faz com que a balança penda fortemente a favor dos Troianos, o que torna imprescindível o regresso de Aquiles ao campo de batalha. O palco foi devidamente preparado, para que o protagonista da peça assuma finalmente o seu papel e ocupe o seu lugar central.

Resumo do Canto VIII da Ilíada

             No Olimpo, Zeus proíbe os outros deuses de interferir na guerra e, de seguida, viaja para o Monte Ida, perto de Troia. Aí, pesa o destino dos dois lados em confronto e os Gregos saem a perder. Então faz recair uma chuva de relâmpagos sobre o exército aqueu e vira a maré da batalha a favor dos Troianos, o que causa o recuo dos inimigos. Heitor e os seus comandados avançam, procurando derrubar a nova muralha dos Aqueus e queimar os seus navios. Entrementes, o marido de Andrómaca dirige.se a Nestor, que se encontra no meio do campo de batalha e é salvo por Diomedes, que o puxa para a sua carruagem bem a tempo, sendo perseguidos por Heitor. Hera, adivinhando a derrota iminente dos Gregos, inspira Agamémnon a despertar as suas tropas. O comandante aqueu reúne os seus soldados, desperta o seu orgulho, apela à sua coragem e bravura e ora a Zeus para permitir que os seus homens sobrevivam. O deus acolhe a oração e envia um sinal: uma águia transportando um cervo nas suas garras. Este sinal inspira os Gregos a lutar e eles eliminam alguns inimigos, nomeadamente o arqueiro Teucro, um dos melhores entre os aqueus, até ser ferido por Heitor e a maré da batalha mudar de novo. O comandante troiano rechaça os Gregos para trás das suas fortificações, até aos seus navios. Desesperadas, Hera e Atenas, contrariando as ordens de Zeus, preparam-se para interferir na luta, mas aquele envia-lhes a deusa Íris para os advertir acerca das consequências que tal interferência acarretará. Tendo consciência de que jamais poderão competir com Zeus, as duas deusas recuam e são informadas de que, na manhã seguinte, terão a última oportunidade de salvar o exército aqueu. E acrescenta que apenas o regresso de Aquiles poderá impedir a sua derrota,

            Nessa noite, os Troianos estão tão confiantes na sua superioridade e na vitória iminente que acampam na planície, portanto fora das muralhas que protegem Troia, e Heitor ordena aos seus homens que acendam múltiplas fogueiras para que os Gregos não possam fugir sem serem vistos. A noite salva as tropas de Agamémnon da derrota, mas Heitor tem em mente dar-lhes o golpe de misericórdia no dia seguinte.

Análise do Canto VII da Ilíada

             Homero, durante a narração, estabelece vários paralelismos. No caso deste canto, os desejos e as ações dos Gregos e dos Troianos são apresentados de forma paralela. Por exemplo, Heitor ataca Ájax com uma determinada arma e este contra-ataca usando o mesmo utensílio de guerra, geralmente causando mais dano no adversário; durante a trégua, o poeta descreve a dor dos Troianos enquanto queimam os seus mortos para, de seguida, fazer o mesmo com a dos Aqueus. A existência de uma causa comum, de uma dor comum, etc., e o seu reconhecimento vinculam os inimigos aos mesmos princípios de honra.

            Um desses princípios comuns prende-se com o respeito pelo outro e a dignidade individual. Exemplo disso é o duelo entre Heitor e Ájax, que termina com a troca de armas e com um pacto de amizade. O equilíbrio entre valores opostos, como a amizade e a inimizade, são uma das evidências de um indivíduo digno.

            Outro desses princípios tem a ver com a importância dada ao sepultamento dos mortos. Tal como o fantasma de Pátroclo afirma no Canto XXIII, o espírito de uma pessoa não entraria no mundo dos mortos até que fosse devidamente sepultado. Deixar uma alma por enterrar ou, pior, deixá-la como carniça para os animais selvagens, era um desrespeito para com o morto e pelas tradições religiosas da época. É tudo isto que preside ao estabelecimento da trégua na guerra. Note-se que, no caso da Ilíada, os corpos eram queimados numa pira, embora também houvesse casos na época de enterramento. Os ossos sobrantes na pira eram guardados numa jarra ou caixa decorativa, ou, em alternativa, enterrados junto ao local onde o corpo fora incinerado.

            Por último, uma chamada de atenção para a atuação dos deuses, que volta a revelar a sua mesquinhez e superficialidade. A preocupação, no final do canto, de Poseidon ao ver os Gregos erigir as suas muralhas tem a ver unicamente com o facto de tal obra poder ofuscar a muralha que ele construiu em redor de Troia. Por outro lado, a cena chama a atenção para o respeito que é devido sempre aos deuses, pois eles podem destruir as obras humanas com grande facilidade e por mero capricho.

Resumo do Canto VII da Ilíada

             O retorno de Heitor e Páris ao combate revigora as tropas troianas, mas Apolo e Atenas decidem finalizar a refrega naquele dia. Para tal, determinam a realização de um duelo. Assim, a deusa envia uma mensagem telepática a Heleno: Heitor deverá desafiar o guerreiro grego mais forte para lutar. É isso que o herói troiano faz: aproxima-se da linha inimiga e desafia-a a indicar alguém para combater consigo. Menelau é o único que tem coragem e dá um passo em frente, mas Agamémnon, consciente de que o irmão não é páreo para Heitor, dissuade-o do intento. Nestor, que é demasiado velho para responder ao desafio, exorta os seus companheiros a responder a Heitor. Nove guerreiros aqueus respondem ao chamamento e, dentre eles, Ájax é selecionado por sorteio.

            Heitor intimida-se com a envergadura do gigante, mas não cede. Ataca-o ousadamente, mas cada golpe é bloqueado pelo enorme escudo do adversário. Ájax fere ligeiramente o troiano e derruba-o com uma pedra. Como a noite está a chegar, arautos estimulados por Zeus cancelam a luta. Os dois heróis concordam em encerrar o duelo e trocam presentes em sinal de amizade.

            Nenhum dos lados está ansioso por regressar ao combate no dia seguinte. No acampamento grego, Nestor insta os seus companheiros a solicitar uma trégua de vinte e quatro horas para enterrar os mortos. Por outro lado, aconselha-os a construir fortificações à volta do acampamento para proteção. No lado adversário, Príamo faz uma proposta semelhante no que diz respeito à questão dos tombados em combate. Além disso, Antenor, o seu conselheiro, pede a Páris que devolva Helena e, desta forma, ponha fim à guerra, mas o príncipe troiano recusa, propondo como alternativa devolver todo o tesouro que trouxe consigo de Esparta. Quando os Gregos são confrontados com esta proposta no dia seguinte, compreendem o desespero dos Troianos e sentem a sua fraqueza, recusam o acordo, mas concordam em observar um dia de cessar-fogo para sepultar os respetivos mortos. Os Aqueus aproveitam também a pausa para construir uma trincheira em torno dos seus navios, tarefa que é observada por Zeus e Poseidon, que planeia destruir assim que os homens partirem.

Análise do Canto VI da Ilíada

             Este canto é marcado por duas cenas ilustrativas da brutalidade e da humanidade características da guerra. A brutalidade é exemplificada pela cena do prisioneiro troiano: Menelau está inclinado a mostrar misericórdia por ele, porém Agamémnon diz-lhe que nenhum inimigo deverá ser poupado, nem mesmo uma criança ainda na barriga da mãe. Já o encontro de Diomedes e Glauco exemplificam o outro lado da guerra, onde impera a amizade, considerada então sagrada, nomeadamente para com os hóspedes, e que passava de geração em geração. Em sentido contrário, a ação de Páris ao fugir com Helena desrespeita o princípio que deve caracterizar a relação entre um hóspede e o seu anfitrião. A cena de Diomedes e Glauco representa a vitória da amizade sobre a honra e a glória conquistadas na guerra, o que constitui um sinal de esperança para a humanidade.

            Esta cena contém também um simbolismo profundo no contexto da Ilíada. De facto, Glauco compara a vida dos seres humanos a gerações de folhas que morrem e renascem na primavera. Esta comparação simboliza o ciclo da vida: Glauco e Diomedes são as folhas velhas que morrerão, que serão levadas pelo vento e esquecidas.

            A ação de Heitor remete para a importância de viver uma vida nobre e honrada e caracterizada pela conquista da glória individual, não obstante o preço que seja necessário pagar. Andrómaca receia que o marido morra na batalha e pede-lhe que não volte. Apesar de ele estar consciente das terríveis consequências que a sua eventual derrota acarretará para a sua família, a sua pátria e especialmente a esposa, e de que a vida humana é muito frágil, pois é controlada pelos deuses, e não se pode prever como ou quando desembocará na morte, o seu sentido de honra e o desejo de glória não lhe permitirão seguir outro caminho. Uma vida sem honra não é digna de ser vivida.

            Este episódio tem outra função: humanizar a figura de Heitor. Tal é conseguido em vários momentos: as palavras que dirige a Andrómaca; a interação carinhosa com o filho; a cena em que a mãe amamenta o filho, que evidencia o modo como a guerra separa as famílias e priva os inocentes dos seus pais; o episódio em que Heitor assusta o filho com a crista do capacete ao retirá-lo, que mostra como o grande guerreiro troiano, que acaba de afirmar a sua aspiração à glória imortal e a sua vontade férrea de lutar contra o inimigo, também possui um lado carinhoso e ternurento. Além disso, a cena alivia a tensão dramática, pois afasta o olhar do leitor do horror da guerra, mas, em simultâneo, enfatiza a tragicidade da mesma: a inocência de uma criança de tenra idade versus o horror do combate.

            Os últimos cantos têm em comum o confronto entre deuses e humanos. Se estes se envolvem na sua guerra terrível, os primeiros perdem-se nos seus próprios conflitos, muitas vezes, arcados pela futilidade e mesquinhez. Curioso, porém, é o facto de as disputas entre as divindades olímpicas acarretarem mais violência entre os homens. Por outro lado, as lealdades e as motivações dos deuses mostram-se mais superficiais do que as dos humanos. Por exemplo, não cumprem os pactos que estabelecem com grande facilidade, como acontece com Ares, o deus da guerra, que se tinha comprometido a auxiliar os Gregos, mas acaba por se passar para o lado troiano. Quando a guerra não lhes corre de feição, reclamam do árbitro, ou seja, de Zeus. Em suma, a imagem que ressalta dos conflitos no Olimpo é a de uma família disfuncional.

Resumo do Canto VI da Ilíada

             Com os deuses afastados da batalha, os Gregos fazem os Troianos recuar em direção a Troia, e Menelau faz refém um cocheiro troiano, chamado Adestro, que lhe roga que o liberte. O ex-esposo de Helena está inclinado a atender ao pedido em troca de um resgate, mas Agamémnon convence-o a matar o prisioneiro, o que os irmãos fazem em conjunto.

            Heleno, um adivinho, exorta Heitor a regressar a Troia e a pedir a sua mãe, Hécuba, e às demais mulheres nobres que orem no templo de Atenas e façam oferendas à deusa. De seguida, vai ao encontro de Páris, que se retirou da batalha, alegando que estava demasiado triste para lutar. Heitor e Helena não escondem o seu desprezo pelo irmão e companheiro, o que faz com que Páris regresse ao combate. Depois Heitor visita a sua esposa, Andrómaca, que está ocupada com o filho de ambos, Astianax, e observa, ansiosa, o combate que decorre em baixo, na planície. Ela implora ao marido que se retire da luta, mas ele recusa a ideia, pois a sua honra não o permite e, se o fizesse, morreria de vergonha, além de que não pode fugir ao seu destino, seja ele qual for. Então beija o filho, que se assusta inicialmente com a crista do capacete, mas acaba por corresponder ao afeto do pai numa cena familiar comovente. Quando Heitor regressa à batalha, Andrómaca sofre, convencida de que o esposo morrerá em breve. No caminho, encontra o irmão e os dois voltam à refrega.

            Neste canto, há um outro momento digno de destaque. Diomedes e Glauco, um troiano, enfrentam-se no campo de batalha. O grego questiona-se quem será o inimigo, pois não se tinha apercebido da sua presença. Glauco informa-o, então, sobre a sua linhagem, e acabam por descobrir que os seus antepassados trocaram presentes de amizade entre si. Os dois declaram também amizade um pelo outro e trocam as armaduras.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Uma análise de Que farei com este livro?

     
     O trabalho aqui divulgado é uma análise da obra Que farei com este livro?, da autoria de José Saramago.
     Trata-se de uma tese de mestrado, de Cybele Regina Melo dos Santos, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

     O trabalho pode ser encontrado no link seguinte: tese.

Podcast Que farei com este livro?


    Que farei com este livro? é o título de um podcast, da autoria de Catarina Duarte Almeida, que está disponível em qualquer plataforma de streaming.

     Nas palavras da autora, « trata-se de um podcast de frequência semanal, de episódios curtos, que dá uma breve explicação dos conteúdos programáticos do ensino secundário». A ligação para o primeiro episódio, reproduzido neste caso no Spotify, é este: Que farei com este livro? [clicar no link].

     Com a autorização da autora, iremos publicando os episódios que for produzindo, com a respetiva ligação.

Gavin MacLeod


1931 - 29/05/2021

 

Análise do Canto V da Ilíada

             O Canto V constitui, essencialmente, a aresteia de Diomedes, a mais longa e sangrenta (à exceção da de Aquiles, nos Cantos XX a XXII), que, no fundo, procura compensar a ausência de Aquiles, não obstante não conseguir, em última análise, fornecer a força que o líder dos Mirmidões costumava proporcionar ao exército aqueu e ao combate, como o demonstra a observação de Hera, segundo a qual, enquanto o filho de Tétis combateu, nenhum cavalo de Troia se aventurou para além dos portões da cidade.

            Tal como sucede na aristeia, Diomedes é inspirado e auxiliado por uma divindade (neste caso, Atenas), as suas armas salientadas e a sua vitória certa, apesar de se encontrar ferido. Estilisticamente, o poeta recorre a determinados símiles para descrever as cenas da batalha; por exemplo, compara a ação de Diomedes a água furiosa e os seus ataques a um leão «louco por garras».

            No que diz respeito aos deuses, mais uma vez parecem dar pouca ou nenhuma importância às consequências das suas ações para os humanos, exceto se se tratar de um seu protegido naquela ocasião. O que lhes interessa essencialmente, de forma mesquinha, são os conflitos entre si. Por outro lado, quando comparados com os homens, os deuses parecem mais frágeis no que toca a lidar com a dor e o sofrimento. A título exemplificativo, citem-se os casos de Afrodite e Ares, que, quando são feridos, recolhem logo ao Olimpo e se queixam, quais crianças, ao «pai» Zeus, enquanto Diomedes continua a combater depois de ser ferido.

            As descrições das batalhas são longas e frequentemente centram-se nos massacres em massa que as caracterizam, mas alternam com apontamentos individuais. O poeta, em diversos momentos, apresenta-nos a personagem que acabou de morrer ou está em vias disso, dando-nos a conhecer os seus antecedentes, as suas origens e educação, enfatizando frequentemente a perda que o seu passamento constitui para o seu exército e a sua pátria. Além disso, Homero alterna descrições de mortes de combatentes troianos e aqueus, estratégia que impede que a narração se torne monótona e dê conta do fluxo e refluxo da batalha.

            Por outro lado, as provocações são um elemento bastante importantes no contexto das batalhas. Os soldados desafiam a coragem e a honra dos seus companheiros para se incentivarem e motivarem para o combate. Por exemplo, Sarpédon diz a Heitor que os seus comandados estão a lutar bem melhor para defender Troia do que os troianos do filho de Príamo. Durante os combates, os homens provocam também os seus inimigos com o intuito de os desanimar, e até os próprios deuses usam esse estratagema, como, por exemplo, quando Hera humilha os Aqueus, dizendo-lhes que Aquiles nunca permitiu que os Troianos passassem além dos portões da cidade.

Resumo do Canto V da Ilíada

             Diomedes, um soldado aqueu, é ferido por Pândaro, o que o leva a orar a Atenas, que lhe confere uma força sobre-humana e o poder de discernir os deuses no campo de batalha, mas alerta-o para não atacar nenhum, à exceção de Afrodite.

            Dotado dos seus novos poderes, Diomedes massacra todos os inimigos que lhe surgem pela frente. Eneias e Pândaro perseguem-no, mas Atenas guia-lhe a lança, que proporciona uma morte horrível ao arqueiro, enquanto o herói da Eneida é ferido e só não encontra a morte graças à intervenção de Afrodite, sua mãe. Diomedes fere também a deusa, cortando-lhe o pulso e mandando-a de volta ao Olimpo, onde Dione, a sua mãe, a cura, e Zeus a adverte para não voltar a interferir na guerra. Quanto a Eneias, é tratado por Apolo, que o cura e devolve, posteriormente, à batalha, mas nesse percurso acaba por ser atacado por Diomedes, gesto que configura uma transgressão ao acordo que tinha feito com Atenas de não agredir qualquer outra divindade além de Afrodite. Apolo avisa severamente o guerreiro grego e afasta-o do seu caminho, enquanto retira Eneias do campo de batalha e deixa uma réplica do troiano no solo, para servir de motivação aos companheiros. Por último, o deus do Sol incentiva Ares a lutar por Troia, informando-o de que um aqueu (Diomedes) acabou de ferir a sua irmã (Afrodite).

            Graças à ajuda divina, os Troianos parecem ganhar vantagem na contenda, sobretudo graças à ação conjunta de Heitor e Ares, demasiado fortes para os inimigos. Os heróis de ambos os lados vão vingando a morte dos seus homens. Alarmadas com o recuo dos Gregos, Hera e Atenas obtêm de Zeus a permissão para intervir no conflito em auxílio dos Aqueus. Assim, Hera confronta os Gregos com o facto de Aquiles nunca ter permitido que os inimigos saíssem para além dos seus portões, enquanto Atenas permite que Diomedes ataque outros deuses e o incentiva a acometer Ares, que é atingido pela carruagem e voa de regresso ao Olimpo, onde reclama de Zeus, que lhe responde que mereceu o seu ferimento. Atingido o seu propósito, Hera e Atenas retiram-se também do campo de batalha.

Análise do Canto IV da Ilíada

             Ao contrário das religiões contemporâneas, os deuses gregos incorporam em si as mesmas paixões e falhas dos seres humanos e interagem com estes frequentemente. A diferença entre uns e outros é que as entidades divinas são eternas, enquanto a humanidade é mortal. A imortalidade divina transforma os seus conflitos em algo trivial e até algo caricato, em contraste com o sofrimento, a dor e a morte que marcam a existência terrena. Como não existem consequências para si, os deuses encontram até prazer nos conflitos em que se envolvem, o que pode ajudar a explicar o facto de Hera e Atenas não aceitarem a trégua entre Troianos e Aqueus, que poderia significar o fim daquela guerra interminável e a instauração da paz, e tudo fazerem para a batalha prosseguir, para vingarem o seu orgulho ferido com a questão do pomo de ouro.

            Deste modo, a guerra é retomada, havendo referências à morte de personagens menores e a confrontos individuais entre figuras bem mais notáveis. As descrições dos ferimentos que os lutadores vão sofrendo são terríveis, baseadas numa fórmula característica. Esses ferimentos são provocados por espadas, lanças, flechas e pedras, que cortam, dilaceram, esmagam diferentes partes do corpo, com a exposição ocasional de um ou outro órgão interno. Tudo isto é apresentado pelo poeta com diferentes detalhes específicos, no sentido de criar uma panóplia diversificada de mortes no campo de batalha.

            Retirar a armadura ao inimigo derrotado ou apossar-se do seu cavalo constituem prémios valiosos cuja reivindicação aumenta a honra do vencedor e desonra o derrotado. Só que a ânsia de obter estas recompensas por vezes têm consequências fatais para quem as deseja alcançar, dado que o coloca numa situação de alguma vulnerabilidade. É exemplificativa disto a referência à primeira morte na obra: um soldado, após a morte do inimigo, procura imediatamente retirar a armadura do corpo do morto, «distrai-se» e acaba por ser assassinado.

            Por outro lado, nem o partido Aqueu nem o Troiano são apresentados no poema como melhores do que o outro. Tal é demonstrado pela imagem de dois soldados, um grego e outro troiano, jazendo mortos um ao lado do outro, enquanto companheiros seus prosseguem a luta e vão tombando à sua volta. Este facto não pode ser dissociado de outra questão, a da inexistência de vilões propriamente ditos no poema. De facto, se é verdade que o poeta narra os eventos na ótica grega, de modo algum vilaniza os Troianos, até porque, noutros momentos, os contendores foram aliados e combateram pelo mesmo objetivo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aliança que dois povos estabeleceram para combater as Amazonas. A violência, o sofrimento, a dor e a morte recaem sobre ambos os exércitos de forma semelhante; o alívio sentido no momento em que se acorda que o duelo entre Menelau e Páris porá fim ao conflito é o mesmo para uns e outros; os combatentes das duas fações desejam que o culpado pela eventual quebra da trégua seja massacrado e as suas mulheres estupradas; quando o cessar-fogo é efetivamente rompido, fica claro que nenhum dos partidos é o culpado, dado que o tiro de Pândaro sobre Menelau só é dado porque Atenas a tal conduz. Assim sendo, é perfeitamente lícita a conclusão de que os únicos que, verdadeiramente, retiram prazer da guerra e a quem prolongar são os deuses, que manipulam os seres humanos para atingir os seus propósitos.

Resumo do Canto IV da Ilíada

             No Olimpo, os deuses discutem sobre a guerra. Zeus argumenta que Menelau venceu o duelo com Páris, pelo que o conflito bélico deveria terminar, como acordado entre Gregos e Troianos, e Helena ser devolvida aos primeiros. A esta ideia opõe-se Hera, que não se satisfaz com a vitória grega, antes deseja a destruição completa de Troia. No final da discussão, Zeus cede e envia Atenas ao campo de batalha para levar os Troianos a quebrar a trégua.

            Assim, disfarçada de soldado troiano, a deusa convence o arqueiro Pândaro a disparar sobre Menelau. Ele dispara, mas Atenas, que não deseja que o ex-esposo de Helena seja morto, unicamente quer que os Aqueus tenham um pretexto para regressar ao combate, desvia a flecha, que apenas fere levemente Menelau.

            Deste modo, o objetivo do Olimpo é alcançado: a trégua foi quebrada. Agamémnon reúne o seu exército e estimula e desafia o orgulho dos principais guerreiros, narrando os grandes feitos dos seus pais. A batalha recomeça e a carnificina também, destacando-se as ações de Ulisses e Ájax, que liquidam várias figuras menores do lado troiano. Como sempre, os deuses não ficam à margem e intervêm no desenrolar dos acontecimentos, com destaque para Atenas, que ajuda os Gregos, e Apolo, que está ao lado dos Troianos. E assim os humanos atuam como meros joguetes manipulados pelos deuses.

Análise do Canto III da Ilíada

             Nos dois primeiros cantos, o poeta apresenta os comandantes das forças aqueias; neste, introduz as principais figuras do campo troiano, nomeadamente Príamo, Heitor, Páris e Helena. A ex-rainha de Esparta é descrita como simpática: ela lamenta profundamente o custo do episódio por si protagonizado e chega a desejar ter morrido antes de fugir com Páris, o que mostra a sua vergonha e a consciência da sua responsabilidade na morte de tantas pessoas. O seu remorso e arrependimento, a consciência de que agiu mal e é a causa de tanto sofrimento são bem evidentes quando observa as fileiras do exército aqueu. A cena torna-se pungente quando questiona se os seus irmãos (Castor e Pólux), que não consegue vislumbrar no seio dos Aqueus, se terão recusado a integrar a expedição grega e a lutar por uma irmã tão odiosa, desconhecendo que, na realidade, estão mortos, pelo que a sua ausência não se deve à raiva ou à vergonha pela irmã, mas antes por fazerem parte da vasta lista de vítimas do conflito que ela originou. Quando Afrodite a junta no quarto a Páris, Helena resiste e parece não nutrir grande afeição por ele, chegando inclusive a criticá-lo pela sua cobardia. No entanto, enquanto deusa, Afrodite tem o poder de forçar a ex-esposa de Menelau a amar Páris, o que gera, junto do ouvinte/leitor, uma situação contraditória que exemplifica a complexidade humana: Helena ama e despreza Páris em simultâneo.

            Ao contrário dela, Páris não parece sentir grande pudor ou sentido de responsabilidade pelo seu papel no espoletar da guerra, no que contrasta com Heitor. Ao avistar Menelau, Páris foge, o que lhe vale a crítica do irmão, muito mais consciente do ideal de honra, crítica essa motivada pela desgraça e sofrimento que trouxe, tanto a si mesmo como a todo o exército troiano. E chega mesmo a desejar que Páris tivesse morrido antes de consumar o rapto da bela Helena e, com isso, desgraçar o seu povo. É esta crítica de Heitor que faz com que Páris aceite duelar com Menelau, embora contrariado; porém, a luta rapidamente se torna embaraçosa para o lado troiano, e ele tem de ser salvo da morte por Afrodite, a deusa grega do amor (também designada, no Canto V, como «deusa cobarde»), e não por um deus ligado à guerra. O príncipe troiano culpa até os deuses pelo desfecho da contenda (algo que o poeta jamais sugere e que é desmentido, por outro lado, pelo esforço desenvolvido por Menelau durante o duelo, clarificador da ausência de ajuda a seu favor), mas não mostra qualquer incómodo ou contrariedade quando a deusa o leva para o seu quarto. E é este passo da Ilíada que mais contribui para o esboço de um retrato profundamente disfórico de Páris: enquanto está recolhido nos seus aposentos, fazendo amor com Helena, o exército troiano é forçado a continuar a lutar em nome da mulher que ele roubou aos aqueus. Esta conduta revela toda a cobardia de Páris e colide com o código de honra do herói, o que desagrada ao seu próprio exército, que o odeia «como a morte».

            Por seu turno, Príamo emerge como a personagem mais humana. Dada a sua idade avançada, já não pode participar na guerra como combatente, pelo que a sua intervenção não é movida por qualquer desejo de honra ou glória. Os anciãos de Troia querem devolver Helena aos Gregos, porém o velho monarca opõe-se-lhe. Ele não a culpa pelo sucedido e trata-a com humanidade e compaixão, não obstante toda a desgraça que fez recair sobre a cidade.

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