Português: Análise do Canto VI da Ilíada

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Análise do Canto VI da Ilíada

             Este canto é marcado por duas cenas ilustrativas da brutalidade e da humanidade características da guerra. A brutalidade é exemplificada pela cena do prisioneiro troiano: Menelau está inclinado a mostrar misericórdia por ele, porém Agamémnon diz-lhe que nenhum inimigo deverá ser poupado, nem mesmo uma criança ainda na barriga da mãe. Já o encontro de Diomedes e Glauco exemplificam o outro lado da guerra, onde impera a amizade, considerada então sagrada, nomeadamente para com os hóspedes, e que passava de geração em geração. Em sentido contrário, a ação de Páris ao fugir com Helena desrespeita o princípio que deve caracterizar a relação entre um hóspede e o seu anfitrião. A cena de Diomedes e Glauco representa a vitória da amizade sobre a honra e a glória conquistadas na guerra, o que constitui um sinal de esperança para a humanidade.

            Esta cena contém também um simbolismo profundo no contexto da Ilíada. De facto, Glauco compara a vida dos seres humanos a gerações de folhas que morrem e renascem na primavera. Esta comparação simboliza o ciclo da vida: Glauco e Diomedes são as folhas velhas que morrerão, que serão levadas pelo vento e esquecidas.

            A ação de Heitor remete para a importância de viver uma vida nobre e honrada e caracterizada pela conquista da glória individual, não obstante o preço que seja necessário pagar. Andrómaca receia que o marido morra na batalha e pede-lhe que não volte. Apesar de ele estar consciente das terríveis consequências que a sua eventual derrota acarretará para a sua família, a sua pátria e especialmente a esposa, e de que a vida humana é muito frágil, pois é controlada pelos deuses, e não se pode prever como ou quando desembocará na morte, o seu sentido de honra e o desejo de glória não lhe permitirão seguir outro caminho. Uma vida sem honra não é digna de ser vivida.

            Este episódio tem outra função: humanizar a figura de Heitor. Tal é conseguido em vários momentos: as palavras que dirige a Andrómaca; a interação carinhosa com o filho; a cena em que a mãe amamenta o filho, que evidencia o modo como a guerra separa as famílias e priva os inocentes dos seus pais; o episódio em que Heitor assusta o filho com a crista do capacete ao retirá-lo, que mostra como o grande guerreiro troiano, que acaba de afirmar a sua aspiração à glória imortal e a sua vontade férrea de lutar contra o inimigo, também possui um lado carinhoso e ternurento. Além disso, a cena alivia a tensão dramática, pois afasta o olhar do leitor do horror da guerra, mas, em simultâneo, enfatiza a tragicidade da mesma: a inocência de uma criança de tenra idade versus o horror do combate.

            Os últimos cantos têm em comum o confronto entre deuses e humanos. Se estes se envolvem na sua guerra terrível, os primeiros perdem-se nos seus próprios conflitos, muitas vezes, arcados pela futilidade e mesquinhez. Curioso, porém, é o facto de as disputas entre as divindades olímpicas acarretarem mais violência entre os homens. Por outro lado, as lealdades e as motivações dos deuses mostram-se mais superficiais do que as dos humanos. Por exemplo, não cumprem os pactos que estabelecem com grande facilidade, como acontece com Ares, o deus da guerra, que se tinha comprometido a auxiliar os Gregos, mas acaba por se passar para o lado troiano. Quando a guerra não lhes corre de feição, reclamam do árbitro, ou seja, de Zeus. Em suma, a imagem que ressalta dos conflitos no Olimpo é a de uma família disfuncional.

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