Português: Opinião
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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

América desarmada pelo gatilho fácil

Por Ferreira Fernandes

A MATANÇA na escola de Newtown já teve três respostas fulminantes. A primeira, mais um belo discurso de Barack Obama, como só ele, e até com sinceras lágrimas. A segunda, de Mike Huckabee, ex-candidato a candidato republicano à presidência e atual comentador da Fox, que explicou as causas do tiroteio assim: "Expulsámos Deus das nossas escolas, agora..." E a terceira, com a campanha de assinaturas para que - sentem-se, por favor - para que se acabe não com as armas, mas com a proibição das armas nas escolas. Lógica da Gun Owners of America, a associação de defensores de armas que começou já a recolher assinaturas: se os professores estivessem armados teriam impedido Adam Lanza de atirar. 
Resumindo as três respostas: a América está tramada e só lhe resta esperar pelo ataque seguinte. Se as próximas vítimas forem às centenas e num berçário - isto é, com um salto quantitativo significativo de horror - talvez, mas só talvez, haja uma mudança no maioritário pensar retorcido dos americanos sobre as armas. 
Newtown, 27 mil habitantes, tem uma loja de armas, fica num país com 9369 mortos por tiro, em 2010 (Canadá: 144) e é terra de Adam, 20 anos, que se passeava com duas pistolas, Sig Sauer e Glock, e um rifle de calibre 223 (para caça pesada), legalizadas pela sua mãe, que trabalhava na escola. 
Segundo o desejo da Gun Owners of America, os futuros Adam podem ir buscar as armas ao cacifo da mamã, na própria escola a chacinar. 
Diário de Notícias, 16 de dezembro de 2012

domingo, 9 de dezembro de 2012

Medina Carreira, ou 'Maus a investigar, bons a enlamear'

Por Ferreira Fernandes
     FRANCISCO Canas tinha um esquema de dinheiro para a Suíça, o que levou a Polícia Judiciária a investigar. Traduzido: a Judite pôs debaixo d'olho o Zé das Medalhas no caso Monte Branco. 
     À polícia dá-se a alcunha da bíblica Judite, o comerciante da Baixa lisboeta passa a ser Zé das Medalhas e a Helvécia esconde-se atrás da sua célebre montanha. E porquê esses biombos? Porque um bom caso policial precisa sempre de mistérios que apimentem a coisa. 
     Agora, sigamos um investigador português dando com o livro escondido do Zé das Medalhas, onde este apontava os seus clientes e verbas. Um livro destes seria lido por qualquer investigador como as mensagens da Rádio Londres eram ouvidas pelos nazis durante a II Guerra Mundial. Se a mensagem era "les sanglots longs des violons...", eles não diziam: "Olha, agora deu-lhes para a poesia de Verlaine!" Desconfiavam: "Aqui há gato...", mesmo não sabendo se persa ou siamês. 
     Da mesma forma, um investigador lendo o nome "Medina Carreira" no livro do Zé das Medalhas desconfiaria. Tentava traduzir aquele código. Um investigador, disse eu. Em geral. Mas se o investigador for português, aí já marra a direito: "Medina Carreira? Olha, o gajo que tem a mania de dar lições." E ia direito a buscas na casa e escritório do "indiciado". 
     Não deu em nada, claro, era mesmo código. Porém, se os investigadores portugueses marram mal, pegam de cernelha bem: os jornais ficaram logo a saber que houve buscas... 
Diário de Notícias, 9 de dezembro de 2012

O engraçadismo e a enfermeira

Por Ferreira Fernandes
     DA AUSTRÁLIA, um duo de engraçadistas profissionais entrou no quarto do hospital londrino de Kate, a mulher do príncipe William. Gravando para uma rádio, a mulher do duo telefonou para a receção e apresentou-se como "a Rainha". A enfermeira Jacintha Saldanha, que recebeu a chamada, nem deu pela pronúncia grosseira, passou o telefonema para o quarto de Kate, onde outra enfermeira, também enganada, forneceu dados sobre a gravidez ducal ou lá o que é. 
     Os australianos gozaram que nem uns perdidos e a casa real protestou. Ontem, Jacintha Saldanha foi encontrada morta; por suicídio, julga a polícia. 
     O engraçadismo vai continuar, é um género cruel e popular, gosta-se sempre de ver gente ridicularizada; e é um género fácil, as vítimas são sempre os mais fracos, mesmo quando parece querer beliscar-se a Rainha quem sai esfolado são enfermeiras (veja-se, ainda, como os nossos "apanhados" televisivos são quase sempre imigrantes ou pobres, nunca poderosos). 
     A casa real britânica vai também continuar a filtrar as notícias pessoais que lhe interessam e a indignar-se com as outras. De novo, neste caso, só o mexilhão que não acolheu o vexame mansamente. 
     Jacintha Saldanha não suportou que se tivessem rido da forma como ela exerceu a sua profissão. É uma surpresa extraordinária, isso de haver gente com pundonor. Olha, pode ser a desculpa dos australianos: como é que engraçadistas iam adivinhar que ainda havia gente assim?

Diário de Notícias, 8 de dezembro de 2012

O ensino como negócio


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A Grécia, Vítor Gaspar e o Benfica

Por Ferreira Fernandes
     QUANDO a Grécia obteve melhores condições para a dívida, o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, disse que essa melhoria seria estendida a Portugal. Naturalmente os nossos ministros rejubilaram. Mas eis que o patrão destas coisas, o alemão Wolfgang Schäuble, veio dizer que não. Disse que "seria um sinal terrível" para Portugal querermos suavizar os empréstimos. Seria como ir à Feira da Ladra, perguntar pelo custo da moldura, ouvir "50 euros" e nem regatear. Contrapropor 30 euros seria um sinal terrível... 
     Não entendi. Já entendi melhor Vítor Gaspar ter aderido - depois do aviso de Schäuble - à tese do "sinal terrível." Isto é, entendi o feitio, ele é um tipo amável que não gosta de indispor alemães. 
     Mas continuei a não perceber a lógica da coisa. Até ontem à noite. 
     O Benfica foi jogar ao antro do Barcelona, o "més que un club", o que em catalão quer dizer: já nem sabemos enfiar 1-0 ou 2-1, connosco todos levam 4 ou 5. É, quem joga com o Barcelona apanha com taxas de juro a 4 ou 5 por cento. Ora o que começou por acontecer ontem foi que tivemos condições gregas, baixaram as taxas, suavizaram os prazos, não puseram a jogar Xavi, Iniesta e Messi. E o que aconteceu? Sinais terríveis: festival de golos perdidos de Lima e Ola John. E o Benfica foi eliminado. 
     Percebi: os portugueses não podem ter condições facilitadas. Abusam e perdem tudo. Por isso o meu sonho desde ontem é o Benfica despedir o Jesus e contratar o Gaspar. 
Diário de Notícias, 6 de dezembro de 2012

domingo, 2 de dezembro de 2012

Os maias, 'Os Maias' e o fim do mundo

Por Ferreira Fernandes
     DIZ-SE dos tolos que, quando se aponta a Lua, eles olham para o dedo. Os maias tinham a reação inversa. Ótimos astrónomos, enquanto apontavam para o alinhamento dos planetas não viram chegar os espanhóis que deram cabo deles. De que lhes serviu serem uma civilização superior? Pois esses notórios incapazes de preverem o desastre próprio ganharam agora fama por anunciarem o fim dos outros: um antigo calendário maia marcou o fim do mundo para o próximo 21 de dezembro. Tolice acreditada por meio mundo - a Internet pôs-se nervosa, anunciaram-se suicídios - a ponto de, ontem, um cientista da NASA ter de desmentir. O choque de planetas, a tempestade solar e outros apocalipses antes do Natal, tudo aldrabices. 
     Acredito, e aconselho a leitura não do fatídico calendário dos maias, mas de Os Maias. No fim do romance de Eça, os amigos Carlos da Maia e João da Ega dedicam-se a conversa dramática: "Não a vale a pena viver...", diz um. O outro concorda. E ambos chegam à conclusão de a única certeza ser o pó que nos espera. Porquê correr, pois, por alguma coisa?... Aí, Carlos olha para o relógio e vê que estavam atrasados para o jantar no Hotel Bragança. E deitam-se os dois a correr atrás da carruagem que os levará ao "paio com ervilhas"... 
     Assim acaba Os Maias, e é uma mensagem que merece mais Internet do que a outra, dos maias. 
     Leitor, quando lhe apontarem o fim do Mundo, a 21, olhe para o bacalhau e a couve tronchuda, dias depois. 
Diário de Notícias, 1 de dezembro de 2012

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Branca de Neve procura emprego

Por Alberto Gonçalves
     É PROVÁVEL que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre os dispensaram.
     Até agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente rumo ao index dos eurodeputados.
     O index será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn, criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma, corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
     Por sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os "estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a "auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações, escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que confunde a fantasia com o quotidiano.
     Não tenho opinião sobre os modelos imaginários que devem orientar as criancinhas. Em compensação, parecem-me evidentes os modelos palpáveis de que as criancinhas devem ser protegidas a todo o custo - a menos, claro, que os pais lhes desejem um emprego em Bruxelas, a incomodar o próximo para entreter o ócio e realizar uma vocação. 
DN, 25 de novembro de 2012

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Os "rankings" das escolas vistos por Maria Filomena Mónica


Os "rankings" das escolas

Por Maria Filomena Mónica                       

OS JORNAIS publicaram recentemente as listas derankings, ou seja, a ordenação das escolas segundo as notas obtidas pelos estudantes. À cabeça, surgem as privadas, o que nos pode levar a pensar que os seus docentes são melhores do que os das públicas. Erro: o êxito académico não depende apenas do que se passa dentro das instituições, mas de uma multiplicidade de factores, de que a origem social, associada à localização, é um dos mais importantes. Basta lembrar que, por hora, os filhos dos ricos são expostos a mais 1.500 palavras do que os dos pobres, o que leva a que, aos 4 anos, exista já uma diferença, a favor dos primeiros, de cerca de 32 milhões de palavras.
Uma vez que as públicas têm de cobrir o território nacional, as do interior exibem elevadas taxas de insucesso. A secundária de Portalegre não conseguiu uma única média positiva; na da Guarda, três das cinco melhores escolas não conseguiram atingir os 10 valores; na freguesia de Rabo de Peixe, na ilha de S. Miguel, verificaram-se, no exame do 9.º ano, as piores classificações do país. O Presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares lembrava que, em vez de se concentrarem no lugar nos rankings, os docentes se deviam preocupar antes com «a mais valia» que as escolas traziam aos alunos, após o que, com razão, salientava que nada é uma fatalidade, ou seja, que mesmo os alunos desfavorecidos podiam alcançar bons resultados. Era esse o caso das Escola Básicas de Rio Caldo (Braga), Dr. Manuel Magro Machado (Portalegre) e Couço (Santarém) que, nos exames de Matemática e de Português do 9ª ano tinham subido mais de mil lugares.
Felizmente, as leis sociológicas não são férreas. Não foi em Lisboa que as melhores notas foram obtidas. No universo das públicas, destacaram-se a B+S de Vila Cova (Barcelos), com a média mais alta do país em Matemática A (142,55) e a Secundária da Gadanha da Nazaré, com a mais elevada nota em Geometria Descritiva (178,25). Curiosamente, provando que as pessoas são mais importantes do que os edifícios, o Liceu Passos Manuel cujo restauro, no âmbito da Parque Escolar, exigiu ao Estado 26 milhões de euros, ficou em 481.º lugar, com uma média de 7,8 valores, o que o coloca entre os dez piores. É sabido que o grupo social que mais importância dá à educação é a classe média. Não me espanta assim que a melhor escola secundária de Lisboa tenha sido a José Gomes Ferreira, em Benfica, cujos pais têm uma participação nas reuniões na ordem dos 70 a 80 %.
Portugal teve de fazer um grande esforço depois de 1974. Nem tudo correu bem, mas o país conseguiu escolarizar a maior parte dos jovens, facto que levou a que as escolas sejam hoje muito diferentes das que existiam na minha adolescência, quando, ao terminar a primária, apenas 2 em cada 10 alunos continuava a estudar. Para muitos, a escola contemporânea representa um mundo radicalmente novo. É por isso que o difícil não é ensinar filhos de privilegiados mas sim jovens que, em casa, nunca viram os pais abrir um livro. 
«Expresso» de 27 Out 12

Da solidão tecnológica

Hoje já clicou com o seu vizinho?
Por Ferreira Fernandes
     NA ÚLTIMA 'Sábado', o jornalista Luís Silvestre conversa com a cientista britânica Susan Greenfield, especialista dessa transformação tremenda que está a acontecer no nosso cérebro com os computadores e outros saberes de ponta dos dedos.
     Já uma vez, na pré-história, os dedos - o facto de o polegar ser oponível aos outros - nos aumentaram o cérebro. 
     Pois há dias vi um movimento em sentido contrário. Um desenho, naturalmente feito por computadores, do homem do futuro: vamos ser mais feios, cabecinha mais de ervilha, porque não precisamos de tanto espaço para a memória. 
     Como eu percebo essa previsão. No liceu eu era campeão das capitais, até sabia de nomes hoje desaparecidos de cidades, como Santa Maria Bathurst (fui ver: hoje, Banjul, capital da Gâmbia), mas custava-me horas a decorar. Agora, com dois dedilhares, sei quantas pizarias há em Mendoza, Argentina, e em que rua ficam. E logo esqueço, estreitando, se não a minha cabeça, a dos meus descendentes. 
     Voltando à entrevista da cientista, encontro um alerta para uma perda, não essa hipotética do tamanho da cabeça, mas não menos preocupante: a da empatia. Susan Greenfield diz: "As relações entre as pessoas precisam de muito treino, cara a cara, e há uma nova geração que só comunica por computador." Tele, isto, tele, aquilo, vamos cada vez mais longe, quando o que mais falta nos faz é falar com o vizinho. 
     Foi bom ouvir uma cientista falar da necessidade do "cara a cara". 
DN, 29 de outubro de 2012

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Da ânsia de culpados ou da loucura justiciosa italiana

Povo adora culpar e leva com deuses
Por Ferreira Fernandes
     SEIS cientistas italianos da Comissão de Grandes Riscos e o respetivo coordenador governamental foram condenados por não terem previsto o terramoto em Áquila, a 6 de abril de 2009 (300 mortos). 
     Tinha havido uma sucessão de avisos sísmicos desde dezembro de 2008, mas a comissão concluíra não haver perigo maior. Os cientistas eram reputados e um deles, o professor Enzo Boshi, era o presidente do Instituto de Geofísica e Vulcanologia. Todos condenados a seis anos de prisão. 
     Apaziguado pela sentença, o familiar de uma das vítimas disse: "Esperamos que agora os nossos filhos tenham as vidas mais seguras." Provavelmente ele está convencido de que, daqui para diante, o tribunal emitirá atempadamente um edital sobre o próximo terramoto. Terá de ser tribunal, terá de ser juiz, pois são as únicas entidades humanas imunes ao erro. 
     Como se sabe, se amanhã houver provas de que aquele sismo de Áquila era absolutamente impossível de prever - e, logo, a sentença ter sido errada -, o juiz que esta semana condenou não responderá pelo erro. Ele está protegido pela lei. Já o sismólogo Boshi, como o médico Fulano que não curou o cancro ou o piloto Sicrano que não aguentou a turbulência na aterragem estão sujeitos ao atira a pedra na Geni, maldita Geni. 
     A ânsia de encontrar culpado sempre foi própria do povo. Agora arranjou um aliado de peso e, ou muito me engano, vai ser corneado na parceria: o próximo deus vai vestir toga. 

Diário de Notícias, 24 de outubro de 2012

domingo, 21 de outubro de 2012

A vida humana começou no Alentejo?

Do Planeta Vermelho ao Alentejo Vermelho
Por Ferreira Fernandes
     QUE VASCO da Gama, aquele que ajudou a pôr o mundo redondo, era alentejano, de Sines, já é dado como certo. Que Cristóvão Colombo, que ajudou a completar o mundo, era também alentejano, de Cuba, é menos certo, embora haja maduros com essa ideia. Mas essas teorias alentejano-cêntricas estão em vias de se tornar modestas comparadas com a atual parada: agora, é a NASA que suspeita que foi em Cabeço de Vide, também vila alentejana, que começou a vida na Terra. 
     Descobriu-se uma bactéria nas águas termais de Cabeço de Vide que é, por assim dizer, comadre de outra descoberta em Marte. Anda um cientista da NASA pela vila alentejana, tal como andaCuriosity, o robô da NASA, pela cratera Gale, ambos à cata de provas que possam geminar as duas regiões. 
     O Planeta Vermelho e o Alentejo Vermelho já tinham, aliás, pontos comuns. E tudo ter começado no Alentejo também explica o maravilhoso ritmo com que por lá tudo acontece - ninguém tem pressa quando já cá anda há mais tempo que os outros. 
     Quem percebeu bem a filosofia da terra foi a reportagem da SIC que garantiu que nas ruas de Castelo de Vide a coisa (o começo da vida da Terra ser uma especialidade local) "não é novidade". Ouviu-se dois velhotes, sentados num banco, e ambos confirmaram. O de boné disse: "Não sou daqui mas o pessoal que é daqui... hmm, foi aqui que começou." 
     Quer dizer, não só a vida na Terra começou em Cabeço de Vide como, quando chegou, já os alentejanos lá estavam.
Diário de Notícias, 21 de outubro de 2012

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A rainha Christine vai nua

Por Ferreira Fernandes
     GASTAVA-SE demais. O FMI deu a solução: gastar menos. E explicou-a: gastando menos, a economia caía (até eu percebi: menos investimento, logo menos obras, menos emprego...), mas era poupança que levava a o relançamento (também compreendi: se o Estado emagrece, então precisa de menos impostos, e a economia, como Fénix renascida, logo dançaria com ramos de margaridas). 
     A explicação não foi tão poética, mas foi assim que a ouvimos. O problema é que a Christine Lagarde não é dada a rimas, ela é mais números. Tivesse ela aproveitado a nossa ânsia de música, ainda continuávamos alegremente iludidos. Mas a francesa de perfil seco sacou da calculadora: "Por cada euro de austeridade, a economia cairia 0,50 euros", decretou. 
     O resto da humanidade olhou para a fórmula como um boi para um palácio, fingiu que percebeu e sorriu porque a Lagarde também sorria quando enunciou a fórmula. Um euro de poupado e só meio euro de queda, parecia boa e prometedora aquela relação...
     Ora, agora, ficámos a saber que por cada euro de austeridade, afinal, a economia cai entre 0,9 e 1,7 euros. Mesmo tansos como nós sabem calcular o tamanho do engano: o FMI errou do dobro ao triplo! 
     Mais uma vez ficou demonstrada a vantagem da poesia. Tivesse o FMI ido por ela, ainda hoje podia continuar a iludir-nos, dizendo que o engano era pouco, em vez de ramos de margaridas eram de crisântemos... Mas como insistiu nos números, tramou-se. 
     São uns sábios da treta. 

DN de 12 de outubro de 2012

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Derrotem-no que ele gosta

Por Ferreira Fernandes
     O MINISTRO Gaspar tinha um problema: o défice. Então, apresentou a solução 1: cortes de subsídios dos funcionários. Mas o decreto foi ao Tribunal Constitucional e chumbou: à medida faltava equidade, só batia em parte dos portugueses e poupava outros. Quem gostou do chumbo foi o próprio ministro, porque entretanto tinha-se agravado o tal défice e dava-lhe jeito aumentar, somando os privados aos funcionários, o universo a quem bater. 
     Gaspar inventou, então, a solução 2: mudanças na TSU. Porque digo que ele gostou da oportunidade de passar da solução 1 para a solução 2? Ora, porque todos os ministros das Finanças adoram aumentos de receita. Aconteceu, porém, que a nova solução também não vingou. O povo saiu à rua e a TSU foi corrida. 
     Quem gostou do novo desaire, quem foi? Já adivinharam, o ministro das Finanças. Ele esfregou as mãos com a derrota da solução 2 porque, entretanto e mais uma vez, já precisava de ir mais longe e passar à solução 3. Foi o que conhecemos ontem: o aumento brutal do IRS. Ou, como diria o ministro Gaspar, um upgrade, mais um aumento da receita. 
     E eu já tremo por alguém (rua, tribunais, o que seja) tentar chumbar a 3 e obrigue o ministro ao prazer da solução 4. 
     Portugueses, fiquem quietos: estamos a criar um monstro, um sadomasoquista, que adora ser derrotado na sua medida anterior só pelo prazer que lhe dá em bater-nos ainda mais com a medida seguinte. Por favor, não lhe alimentem o vício. 
Diário de Notícias de 4 de outubro de 2012

domingo, 23 de setembro de 2012

Da ignorância política e jornalística

Diz lá qualquer coisa que serve
Por Ferreira Fernandes
     POR ESTES dias demo-nos conta do nascimento de uma (enfim, duas) palavra oficial, rapidamente caída no goto de políticos, jornalistas e comentadores, tão nebulosa como devem ser as palavras oficiais mas, esta, com uma cândida confissão. Era tão sem nada para dizer que nem era uma, mas duas: ora modelação,ora modulação, e dizia-se uma delas ao calha. 
     Uma ou outra foi dita por Passos Coelho quando, os acontecimentos obrigando-o a arrepiar caminho, ele afirmou que poderia mudar a sua proposta da TSU. Mas disse ele "modelação"? Isto é, tornear, ajustar... Ou ele disse "modulação"? Isto é, passar o canto ou a harmonia para um tom diferente... 
     A primeira hipótese é verosímil, própria do jogo de cintura de qualquer político; mas a segunda também é, vinda de Passos Coelho, que não destoa ao cantar "chamava-se Nini/vestia de organdi". 
     O uso da palavra inócua não teria interesse, não fosse sindicalistas e políticos, na esteira do primeiro-ministro, passarem a citá-la como crucial. Tão decisiva que uns diziam "modelação" e outros "modulação"... E os jornalistas faziam-lhes eco, ora modelando, ora modulando. 
     Paulo Pinto, professor da Universidade Católica, propôs no blogueJugular uma palavra nova: "mudlar", a síncope do "e" ou do "u" poupando-nos esta vergonha. Esta. Para as outras, nascidas do mesmo vício, fica a mezinha tradicional. De cada vez que falarmos, pôr esta dúvida: de que estamos a falar quando estamos a falar?
«DN» de 23 set 12

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Dois pesos e duas medidas


Jesus ter mulher dá bandeira queimada?

Por Ferreira Fernandes 
     SOU A FAVOR de certos atentados, como os que, por legítima defensa, poderiam (e deveriam) ser feitos contra o homem que fez o tal filme anti-Islão. De que atentados falo? De um encharcado nas trombas do realizador, cristão copta egípcio que, no bem-bom da Califórnia, acirrou cáfilas de exaltados que se aproveitam do menor pretexto para atacar os cristãos coptas egípcios que, esses, vivem no Egito sem proteção da polícia americana. Encharcado pespegado, não vejo mais que violência possa ser justificada neste caso. Até o canalha desse realizador copta tem direito de fazer uma xaropada sobre a pretensa vida sexual do Maomé. Que isso pode ofender muçulmanos? Pode. Mas parte do mundo aprendeu que podem coexistir o direito a sentir-se ofendido e o direito de dizer (filmar, pintar...) mesmo com o risco de poder ofender outros. Não é má ideia. Não fosse assim, ontem, a minha porteira não se teria sentido só perplexa quando ouviu no telejornal que um milenário papiro copta (estes parecem danados para a ofensa, mas foi só coincidência) revelava que "Jesus tinha mulher." Ela ouviu aquilo, ofendeu-se (acreditou toda a vida na pureza sexual de Jesus) mas limitou-se a abanar a cabeça. Não foi para a rua queimar bandeiras e invadir a primeira embaixada. Se a minha porteira conseguiu fazer uma figura decente, julgo que os clérigos muçulmanos que se engasgam com o tal filme também podiam conter-se. E se não puderem, tratem-se. 
DN de 20 Set 12

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Como me curei de uma deficiência

     «Entre nós, os Jogos Paralímpicos de Londres acontecem sob o mando do pudor, até poucas fotografias se veem. Ora, se um recorde desportivo é sempre admirável, que imagem mais forte pode haver que esse conseguimento alcançado por alguém que tem tudo para não conseguir?
     Em 2004, nos JO de Atenas, durante uma corrida de apresentação de paralímpicos, um atleta virou a sua cadeira de rodas em frente da bancada de jornalistas. A cadeira por terra e as pernas deficientes viradas ao céu pareceram-nos demasiado patéticas, desviámos o olhar e nem coragem tivemos de nos encarar uns aos outros. Mas alguém endireitou a cadeira e o atleta continuou a corrida com naturalidade.
     Agora, a cobertura entusiástica dos bons jornais ingleses nos Jogos Paralímpicos de Londres tem-me curado da piedade despropositada. Também Oscar Pistorius, o sul-africano das pernas em lâmina, me ajudou. Há um mês, ele foi o primeiro atleta deficiente a correr nuns Jogos Olímpicos e até chegou às finais de 4x400m. No domingo, nos Jogos Paralímpicos, ele foi vencido nos 200m classe T44 (amputados das pernas, com próteses) pelo brasileiro Alan Fonteles. Só a derrota de Pistorius é uma lição de normalidade: aquele que é uma vedeta entre olímpicos, perde com paralímpico... Depois, houve a reação do sul-africano: acusou, sem razão, o brasileiro de ter corrido com próteses ilegais...
     Pronto, é oficial: os deficientes são normais. Até têm o mau perder dos outros.»

Ferreira Fernandes, in DN (04/09/2012)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

IndiferentOs e ignorantOs

     «Recém-regressada ao solo pátrio e sem ter visto as solenes comemorações do Dia de Portugal, constato na passada quinta-feira à noite, na SIC-Notícias, ter sido definitivamente abolida a invariância de género na Língua Portuguesa.
     Com a perplexidade da incauta viajante acabada de aterrar nesta terra minha que tanto venho estranhando, interrogo-me: será este um 3.º protocolo modificativo ao dito "acordo" dito "ortográfico"? Tudo é possível, bastando uns dias de ausência e de distracção quanto às surpresas com que nos brindam os nossos altos dirigentOs...
     No noticiário das dez, lá estava o presidentO do Futebol Clube do Porto dizendo-se honrado por ter sido recebido pela presidentA da Assembleia da República. Correndo o risco de ser insolentA, confesso que levei tais declarações à conta de o senhor Pinto da Costa não ter sido provavelmente um aplicado estudantO, pese embora a notável carreira ascendentA de dirigentO desportivo...
     Porém, já de madrugada, no programa "Fora d'Horas" da mesma SIC-Notícias, tudo se confirmou. Depois de Martim Cabral se ter dito apátrida de coração, admitindo não encontrar localização para a sua alma internacional no mapa mundi, apregoa-se feiministO e apoia a correspondentA da SIC no Rio de Janeiro, Ivani Flora, na utilização da palavra "presidenta". Diz mesmo, com desdém sobranceiro, ser essa uma questão de mera extensão do "acordo ortográfico", e uma polémica estéril de idêntica irrelevância. Questões mais relevantAs parecem ser as da espuma dos dias com que os jornalistOs se entretêm e nos entretêm, de facto...
     Henrique Cymerman, correspondentO da SIC em Tel Aviv, secunda ambos mas apela à compreensão perante a oposição resistentA a tais alterações. Observa que a língua é lenta a evoluir - coitada! -, não consegue acompanhar o ritmo dos tempos... José Milhazes, correspondentO da SIC em Moscovo que até dá aulas de Português a russos, ri-se e acena a sua concordância.
     Apenas Fernando de Sousa, correspondentO em Bruxelas, parece abster-se. A convidada em estúdio (ex-assessora do ex-MNE Luís Amado) ainda esboça e reitera umas reticências, mas é incapaz de fundamentá-las, como se a existência de "presidentAs" não implicasse necessariamente a existência de "presidentOs"... (Estes, como a presidenta Dilma Rousseff ou o presidentO Cavaco Silva, portadores de reconhecida iliteracia funcional...) Mas a ignorância crassa dos jornalistOs, cujo ofício requer o uso da Língua Portuguesa como ferramenta de trabalho quotidiana, essa demonstra bem o País que temos, o do "acordês" televisivo e o da TLEBS na escolas, um País sem direito ao trabalho e à saúde, sem direito à informação e à escolarização de qualidade aceitável, sem direito à língua e à cultura, esta cada vez mais "apagada e vil tristeza", este imerecimento ignorantO do passado, e esta ausência de futuro tão placidamente aceitA.

Madalena Homem Cardoso, in Público

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Redacção - Declaração de Amor à Língua Portuguesa


     «Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
     Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.

     Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: no ano passado, quando se dizia "ele está em casa", "em casa" era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. "O Quim está na retrete": "na retrete" é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos "ela é bonita". Bonita é uma característica dela, mas "na retrete" é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
     No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar, etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um "complemento oblíquo". Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo "complemento oblíquo", já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados. Almoçar, por exemplo, é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser "Algumas árvores secaram", "algumas" é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
     No ano passado, se disséssemos "O Zé não foi ao Porto", era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
     NO ano passado, se disséssemos "A rapariga entrou em casa. Abriu a janela.", o sujeito de "abriu a janela" era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
     A professora também anda aflita. Pelos vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12.º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiada parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivação deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deíctico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com seis letras e a acabar em "ampa", isso mesmo, claro).
     Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
     E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que, se escrevermos ação e redação, nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
     E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
     João Abelhudo, 8.º ano, turma C (c de c...r...o, setôra, sem ofensa para si, que até +e simpática).

Teolinda Gersão

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Como se no primeiro ano de Matemática aprendessem a tabuada

Texto de Paula Barata Dias, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na sequência de outro da autoria do professor João Veloso, roubado ao blogue dererummundi.blogspot.pt.

     «O texto de João Veloso é exato e terrível. Exato, porque faz o diagnóstico de um sistema educativo que, desde há muito, maltrata as humanidades, entre elas as línguas clássicas, as "absolutamente marcadas pelo labéu da inutilidade" (para que servem? para que serve a música? para que serve a poesia?...). Terrível, porque sicut uoces praecantes in deserto, são cada vez menos os que alertam para os efetivos prejuízos da construção de um currículo de ensino não superior no qual as humanidades figuram com um enquadramento disforme, seccionado, com o maior desrespeito pelas línguas enquanto saber exato, varrendo-se, das ofertas escolares, o latim, o grego, mas também o alemão, o francês...

     Sou professora de línguas clássicas no ensino superior, mas, por contingências da vida universitária, tenho lecionado outras disciplinas, tendo-me passado pelas mãos algumas centenas de alunos. E, assim, posso testemunhar algo que certamente outros professores já viram: o aluno universitário médio com défices severos não só de formação, mas também de estruturas mentais que lhe permitam aprender: exprime-se em períodos de 3 ou 4 palavras (mais do que isso é uma tese, ou então, interrompido por cadeias de monossílabos); o vocabulário é restrito, a ponto de inibir a compreensão oral de uma exposição do docente; raramente é capaz de ler bibliografia em língua estrangeira (qualquer que ela seja!); parece que a memória se encontra em completo repouso. Já encontrei alunos não treinados para a leitura silenciosa, ou que a acompanham com um mover abichanado dos lábios...

     Após anos, planos e euros gastos com Planos Nacionais de Leitura; reformas curriculares; reformas de programas escolares; aplicação da TLEBS; e.escolas, chegámos a um estado bizarro: somos o único país de língua românica que coloca o latim como opção, a competir com a disciplina de Literatura Portuguesa (que escolha é esta?: então o aluno de humanidades é obrigado a escolher entre o latim e a literatura do país de que é cidadão?).

     O quadro é penoso: somos o único país de língua ocidental (não estamos a cingir-nos apenas aos países românicos) em que o ensino de latim e grego em meio universitário, nas duas únicas licenciaturas de Estudos Clássicos a funcionar no país, admite níveis de iniciação para saberes nos quais, ao fim de três anos, saem licenciados. Seria como se, numa licenciatura de Matemática, os jovens entrassem no primeiro ano para aprender a tabuada.»

Prof. Paula Barata Dias
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