Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos)
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais: à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga, in Câmara Ardente
Sempre vi neste poema uma espécie de guia para a minha salvação pessoal; tal como diz o sujeito poético no primeiro verso, antes de chegar ao lugar que nos destinamos, é preciso aprontar «o barco da ilusão», expressão metafórica que designa o sonho ao mesmo tempo que valoriza o alcance do mesmo através da ação, do movimento voluntário em direção à concretização do que nos propomos obter na vida. Portanto, não é sentados confortavelmente que lá vamos chegar: há que “aparelhar” o nosso “barco”, há que carregá-lo com os nossos sonhos e, muito importante, há que “reforçar” a «fé de marinheiro»; se é preciso que “reforcemos” a fé em conseguir aquilo que acreditamos que nos vai dar sentido à vida, é porque uma ação com esse objetivo precisa de fé “extra” em nós mesmos e nas nossas capacidades; a fé em nós mesmos é difícil de conseguir quando tudo à nossa volta nada em desânimo e, também, quando já não é a primeira vez que tentamos levar uma viagem a bom porto e fomos obrigados a voltar para trás, nos vimos de novo no cais de onde partimos animados do desejo de fugir à «paz tolhida», ao tédio, ao já sobejamente conhecido, que perdeu a capacidade de nos fazer sentir vivos.
É imprescindível o tal reforço da “fé” também porque os nossos sonhos se situam «longe», sabemos que são difíceis ou até impossíveis de transformar em realidade e, como se isto não bastasse, «e traiçoeiro o mar». Somos nós os nossos traidores sempre que desistimos face às dificuldades que entrevemos sentados no cais a mirar esse horizonte longínquo que preferíamos que fosse já ali, ao virar da esquina; e mesmo quando todos e tudo nos parecem trair-nos, continuamos a ser nós os nossos traidores pelo facto de não nos sabermos ouvir e persistir em valorizar as opiniões alheias, as ideias correntes sobre o significado da felicidade ou do que é uma vida com sentido. E então, vivemo-nos a nós por intermédio dos outros. Esta será, penso eu, a nossa grande fraqueza e a razão principal que nos mantém cativos no velho cais à espera de tempos melhores que sabemos que não virão porque nada vem se não o formos buscar.
Entre parêntesis, o sujeito poético escreveu a razão pela qual nos devemos dar a tanto trabalho e enfrentar a pior dificuldade de todas, mesmo antes de fazer face ao mar encapelado: nós próprios; por isso, altera o pronome pessoal «eu» para «nós», sugerindo que o «eu» se dilui entre a massa humana da qual faz parte e que partilha com ela idênticos dramas, busca idênticas soluções para apaziguar a consciência da efemeridade a que todos estamos condenados porque «Só nos é concedida/ esta vida que temos» e encontrar, nesse curto tempo de vida, na maior parte do qual nos limitamos a tatear, insatisfeitos, em busca de algo de que precisamos e que, precisamente porque só temos uma vida para experimentar a aventura de estar vivo, nos faz viver sem rumo definido e, sobertudo, nos obriga a fazer escolhas sem saber se essas terão sido as mais convenientes.
Como só temos direito a uma vida, a nossa opção principal devia consistir em dedicar o tempo que nos foi concedido a ressuscitar um prazer de viver que niguém, exceto nós próprios, sabe o que é, ainda que possa ser mais pressentido do que sabido, como é «o velho paraíso/ que perdemos»; só se perde o que em tempos se possuiu e cada um de nós sofre devido a isso que já sentiu e deixou de sentir, talvez porque se foi deixando ficar para trás na alienação dos dias, acabando por se esquecer do seu projeto pessoal, à força de querer, consciente ou inconscientemente, viver segundo ideias e valores que não são os seus. A perda do que temos de mais genuíno paga-se caro e por isso é preciso “reforçar” «a fé de marinheiro» antes de “A Viagem”.
A determinação do sujeito poético é contagiante: «Prestes, larguei a vela/ e disse adeus aos cais: à paz tolhida.» É preciso resistir à tentação de olhar para trás e seguir, mesmo sabendo que nos espera «a revolta imensidão» do mar da vida desconhecida que vamos ter que enfrentar e, mesmo sabendo que perigos vários nos podem surpreender, tudo é melhor que apodrecer sentado no cais. É certo que não somos mais que «uma errante e alada sepultura» porque é essa a nossa condição e a ela não podemos fugir: somos mortais e a cada dia que passa mais nos aproximamos da morte; andamos sem rumo definido porque vivemos pela primeira vez e não conhecemos aonde nos levam os caminhos que escolhemos. Porém, cada um de nós tem um projeto para cumprir e esse pode tornar-se o nosso guia de orientação, se tivermos ânimo para levar a bom porto a nossa viagem.
Finalmente, há que ter lucidez e saber que nada, mas mesmo nada estará algum dia assegurado para nós, por muito que o desejemos; mas a escolha é nossa, esta, pelo menos, ninguém no-la tira: podemos escolher viver eternamente na cepa-torta, entediados de morrer até morrer ou podemos aceitar a aventura, sabendo que «em qualquer aventura,/ o que importa é partir, não é chegar.» Ora, ninguém se sente realmente vivo sem sonhos para concretizar e, pensando bem, quem os quer concretizar? Depois de realizados, os sonhos morrem de morte natural, portanto, sonhemos e partamos em busca disso que nos faz sentir vivos, tenhamos a coragem de deixar o cais sem a certeza de encontrar um porto de abrigo; todos os portos de abrigo são provisórios, mas nós somos gente do mar, eternos marinheiros.
A análise - brilhante! - não é nossa, mas antes foi retirada deste blogue [atena2010], infelizmente entretanto descontinuado.
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