Português

sábado, 10 de setembro de 2022

Análise do poema "Uraguai", de Basílio da Gama


     Este poema, enquanto épico, é constituído por:
        👉 Invocação ("musa");
        👉 Proposição ("honremos o herói que o povo rude/Subjugou do Uraguai");
        👉 Dedicatória;
        👉 Invocação: pede proteção ao Marquês;
        👉 Início da narração de uma ação, onde vai falar do homem já referido por Cláudio e onde mostra a luta entre os portugueses e os espanhóis pela província cisplatina.
    Gama lança mão de elementos indígenas como:
        - Sepê - figura da mitologia indígena (canto III);
        - O herói é um índio do Paraguai, o que antecede o que vai acontecer no Romantismo com Alencar e G. Dias (ex.: "Juca Pirama"). Mas este é o único momento (canto III) em que B. Gama explora esta situação. Nos outros casos, fala do índio como um europeu, sem verdadeira noção dessa realidade.
        - Morte de Lindóia (canto IV): é o único episódio de amor (entre índios) do poema. Posteriormente, "Vila Rica" já apresenta episódios de amor entre branco e índia, passo em frente para o que vai acontecer no Romantismo.

HM Queen Elizabeth II (VI)


Mike Luckovich

 

Análise do poema "Vila Rica", de Cláudio Manuel da Costa


     Este poema foi escrito já no fim da sua vida e vem na linha de um outro poema épico, "Uraguai" (Basílio Gama), que trata da conquista dos sete povos das missões. É uma composição elaborada não em função do Brasil, mas de interesses pessoais.
    "Vila Rica" segue um pouco o estilo de "Uraguai", mas é diferente, porque é construído com mais sentimento e onde podemos ver o nativismo de Cláudio. Neste poema, podemos encontrar dois planos:
        👉 um com fundamento épico: história da fundação de Vila Rica;
        👉 outro com um fundamento lírico-amoroso: paixão de uma índia por um colonizador bandeirante.
    Ele não consegue equilibrar os dois planos e chegamos ao fim sem saber qual o mais importante, embora pareça ser o primeiro. Mas o poeta desequilibra o poema, a contar a história amorosa e ao introduzir lendas para marcar a brasilidade do poema. Isto acaba por o desorientar como poema épico.
    Enquanto pertencente ao género épico, tem uma Dedicatória, que é feita dentro e fora do poema, ao conde de Bobadela. É escrito em decassílabos e é constituído por dez cantos. Apresenta uma característica que denuncia a sua inspiração num poema épico francês, Henriade, de Voltaire: a rima emparelhada, que no português dá um péssimo efeito.
    Outra fonte inspiradora foi o já referido poema "Uraguai", de B. Gama, além de ter algo a ver com Iracema. É que é o primeiro poema a celebrar os amores de uma índia com um branco. São os três poemas épicos que, em fins do século XVIII, falam do índio. Ele já nos aparece em Gregório e Bento Teixeira, mas com referências depreciativas.
    O poema começa com a Dedicatória, que se estende por quatro versos, seguida da Proposição (oito versos) e a Invocação, também constituída por oito versos. É uma estrofação irregular. Primeiro, prepara o cenário para a narração e só depois começa a narrar. Traça em rápidas pinceladas a história da descoberta do Brasil, para depressa chegar à história da descoberta de Minas. A fundação de Vila Rica é uma consequência da deslocação da economia para o interior.
    O canto VIII diz respeito ao plano lírico-amoroso do poema, que conta a paixão de uma índia, Aurora (nome clássico), com um bandeirante. A mulher apaixona-se pelo bandeirante e dele recebe uma moeda de ouro  que, mais tarde, quando ambos são mais velhos e se reencontram permite a reconciliação.
    Mas no poema vamos ainda encontrar uma outra história amorosa: Eulina é uma espécie de ninfa que mostra ao bandeirante os tesouros escondidos no leito do rio, que é o Ribeirão do Carmo. O rio tem as águas vermelhas, porque têm o sangue do namorado de Eulina, que se mata por não poder casar com ela.
    Este episódio tem semelhanças com a "Ilha dos Amores" (influência camoniana): Eulina mostra essa riqueza ao bandeirante como recompensa pela sua coragem. Um aspeto que marca a diferença em relação a Camões é que as ninfas andavam enfeitadas não com flores, mas com pedras preciosas, elemento de exploração brasileira.
    Encontramos ainda outra lenda, inspirada pelo episódio do Adamastor, que é a do Gigante Itamonte, que aterrorizava os bandeirantes e lhes barrava o caminho. Mas depois, admirado pela sua coragem, acaba por lhes abrir o caminho e mostrar todas as suas riquezas,
    A composição termina, no canto X, com uma visão de glória e triunfo. Pertence ao primeiro plano já apontado. 
    Em suma, este poema aborda algumas lendas de matéria indígena de forma afetiva, não só pelo espaço que ocupam, mas também pela admiração demonstrada pelo narrador. Esta admiração não aparece no poema "Uraguai", construído por Basílio Gama como uma espécie de alibi para fugir à perseguição do Marquês, falando contra os jesuítas. São precisamente as guerras que os jesuítas travam no Sul que constituem o motivo do poema. Os índios são apenas motivos de decoração. Gama não lhes dá muita importância, embora os seus índios tenham um contorno menos idealizado do que os de Cláudio Manuel da Costa ou mesmo de José de Alencar.

A poesia de Cláudio Manuel da Costa


     Cláudio Manuel da Costa conserva ainda alguns traços barrocos na sua poesia e, por isso, é um poeta de transição. Como bom árcade, tem nome de pastor: Glauceste Satúrnio. O nome arcádico de Gonzaga era Dirceu. Chegou a escrever "Versos a Marília".
    Cláudio Manuel, tendo estudado em Coimbra, mostra na sua poesia, tal como Gregório de Matos, uma ligação muito forte aos cânones europeus, mas também evidencia já uma afetividade para com a sua terra que não aparece em Gregório de Matos. Este fala de assuntos brasileiros, mas não mostra amor à terra, enquanto Cláudio Manuel vem na linha do ufanismo de Botelho de Oliveira e Itaparica.
    Mas, além de Cláudio Manuel, podemos falar noutros poetas, como Domingos Caldas Barbosa e Alvarenga Peixoto. Isto mostra que, enquanto no Barroco tivemos manifestações isoladas de poetas que sobressaíram (Botelho de Oliveira, Itaparica, Gregório de Matos), no Arcadismo temos já uma poesia que se comunica com outra, um sistema literário que se começa a organizar. Por exemplo, António Cândido começa a sua obra Formação da Literatura Brasileiro no campo do Arcadismo, porque é quando a literatura brasileira se organiza como sistema literário. No Barroco, embora tenham surgido as Academias, elas eram reuniões que se constituíam em ocasiões especiais.
    Cláudio Manuel é o homem típico da transição e mostra um desligamento afetivo entre o padrão europeu e o brasileiro. Nele encontramos a dualidade campo/cidade, um sentimento contido sob a forma ou amaneiramento da forma e traços bem barrocos, como a fugacidade do tempo e uma imaginação da pedra (ou seja, sucessão de várias imagens em torno da pedra - ideia que vem de Gregório). Nele vemos ainda uma grande vontade de falar do pátrio rio, que é o Ribeirão do Carmo, rio que banha Mariana, a sua cidade natal. Ele divide-se entre o Mondego e o Ribeirão do Carmo.

    No poema «Leia a posteridade, ó pátrio Rio...» - II, vê-se a atitude de cantar as coisas pátrias, o que não chega a ser ufanismo, mas marca de uma certa afetividade para com as coisas da pátria. Porém, logo na segunda quadra, ele refere elementos europeus, de Coimbra, para logo no primeiro terceto voltar ao pátrio rio, que é um rio aurífero, famoso na época da mineração pelas suas areias amareladas.
    Aqui se manifesta a sua grande dualidade: lembra padrões europeus, mas fala de elementos nacionais.

    Em «Enfim te hei de deixar, doce corrente» - LXXVI, jura fidelidade ao Mondego, aos padrões europeus. É uma fidelidade que não deixa de seguir, mas que divide com a fidelidade ao Ribeirão do Carmo, aos padrões nacionais. Não deixa de usar as estruturas apreendidas na Europa, mas vai impregná-las de um assunto nacional.
    Para os árcades, que falam de paisagens imaginadas, esta ideia encontrou eco em Minas Gerais, porque é uma região que poderia ter alguns pontos de contacto com a antiga Arcádia. Era uma paisagem bucólica (várzea e montanha) que a Baía não tinha. Talvez por isto o Arcadismo se desenvolva mais em Minas. Assim, a ideia de falar de paisagem, gado, não é estranha ao Arcadismo.

    Em «Torno a ver-vos, ó montes...» - LXII, é abordado um dos temas caros ao Arcadismo: a dualidade campo/cidade, com preferência pelo campo. Tudo o que é sofrimento passa a ser alegria ao contactar com o campo. O louvor deste espaço em detrimento da cidade é uma temática semelhante à do primeiro momento romântico, mas isto não quer dizer que Cláudio Manuel fosse um pré-romântico. Pelo contrário, o poeta é tipicamente árcade: prefere o campo e imagina-se pastor e em contacto com outros pastores: Almendro e Corino.

    Em «Já me enfado de ouvir este alarido», faz a apologia do campo e da solidão e coloca-se como pastor: toma as suas vestes e utensílios. Abandona o que é sinónimo de cidade: ostentação, vaidade, roupas de altos prémios.
    O seu apreço pelo campo é bem evidente no último terceto: "Eu não chamo a isto já felicidade / Ao campo me recolho, e reconheço, / Que não há maior bem que a soledade."

    Por sua vez em «Torno a ver-vos, ó montes», Cláudio Manuel volta a contrapor a cidade (lugar de fingimento, louca fantasia) e campo (lugar dos vaqueiros, da simplicidade), mostrando preferência pelo último.

    Cláudio é um poeta onde podemos encontrar uma temática arcádica, mas também barroca. Vejamos os elementos do Barroco presentes no poema «Onde estou! Este sítio desconheço.»: mostra a fugacidade do tempo, temática que vem do Maneirismo e prossegue no Barroco. Ao mesmo tempo que aborda a fugacidade do tempo, também empresta ao poema um tom subjetivo. Ele não consegue manter-se neutro, como era proclamado pelo Arcadismo.

    Cláudio Manuel aborda ainda um outro tema muito caro ao Arcadismo: a dualidade rústico/civilizado. Este tema não aparece desligado da sua condição colonial. Quando fala em padrão europeu, refere-se à corte, à metrópole e, quando fala em afeto ao torrão natal, mostra a sua condição de colono. A isto se liga também a sua subjetividade.
    A sua poesia assenta, assim, em três temáticas principais:
        => oposição campo / cidade;
        => padrão europeu / afetividade ao torrão natal;
        => fugacidade do tempo com olhar subjetivo.
    Todavia, estes temas estão ligados e não aparecem estanques. A sua mistura de estilos vai evidenciar-se num poema que escreve tardiamente e que é uma composição épica: "Vila-Rica".

HM Queen Elizabeth II (V)


Terry Mosher Aislin

A fase arcádica de Gregório de Matos


    Se, por um lado, a poesia de Gregório de Matos se inseria nos cânones barrocos que tratavam assuntos não ligados à terra, por outro lado, a sua poesia chega a apresentar aspetos cronísticos. Esta é a vertente realista do Barroco. ou melhor, da sátira. A poesia satírica de Gregório está ligada à feição cronística.
    No entanto, vamos também encontrar essa vertente satírica de Gregório na fase seguinte, fase esta que convive com o Barroco, mas que o sucede. Ou seja, esta nova fase, embora surja quando o Barroco ainda manifesta um certo vigor, apresenta uma vitalidade diferente e própria. É o Arcadismo. O Barroco brasileiro estendeu-se por um longo período de tempo, daí ter convivido com o Arcadismo.
    Com este novo movimento, há uma mudança de eixo na poesia. Durante o período colonial, a cultura centra-se no Nordeste brasileiro (Baía e Recife); agora, com a descoberta do ouro, o eixo da produção poética, que vai estar em consonância com a economia, desloca-se para Minas Gerais. Há também uma produção que começa a surgir no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Isto acontece também por causa da produção aurífera, pois são os portos destas cidades que escoam o ouro para Portugal. O deslocamento do interesse cultural não é originado apenas pela fundação de novas cidades em Minas Gerais, mas também porque as pessoas ricas se centram aí e mandam os seus filhos estudar na Europa, sobretudo em Coimbra. Vamos, assim, encontrar aqui mais brasileiros que no tempo de Gregório de Matos. Entre eles, encontramos Cláudio Manuel da Costa, um brasileiro que foi importante num movimento que eclodiu em Minas.
    Com a deslocação do eixo da economia, Portugal começou a viver, não da produção do Nordeste, mas sim da aurífera. Os exploradores brasileiros tinham de pagar impostos aos portugueses. No fim do século XVIII, o ouro começa a escassear, mas os impostos continuam. Assim, os brasileiros que estudaram em Portugal e os portugueses ligados à exploração aurífera colocaram-se contra a derrama, um imposto. Entre os revoltosos contam-se Cláudio Manuel da Costa e Tomaz António Gonzaga (português que estava no Brasil). Além destes, houve uma outra figura que não era portuguesa nem tinha estudado em Coimbra: Joaquim José da Silva Xavier (conhecido por Tiradentes). Acresce ainda o português José Joaquim dos Reis. Estes e outros revoltaram-se contra a referida derrama. Surgiram, então, uns versos satíricos chamados "As cartas chilenas", que comparavam a exploração do Chile à situação mineira. O seu autor parece ter sido Tomás A. Gonzaga.
    Mas além destes versos, este grupo fez coisas concretas: pensavam que, no dia da derrama, não só não pagariam, como proclamariam a independência. Tinham inclusive uma bandeira com um lema latino:

    Este movimento chamou-se Conjuração Mineira / Inconfidência Mineira e foi abortado por Joaquim dos Reis, que descobriu que conseguiria mais favores da coroa se denunciasse os companheiros e assim o fez. Foram todos presos em pleno reinado de D. Maria I (1789): Cláudio Manuel da Costa foi preso e suicidou-se na prisão; Tomaz Gonzaga foi deportado para Moçambique; mas quem assumiu toda a culpa foi Tiradentes, que foi enforcado e esquartejado (1792) e os seus restos foram jogados na estrada desde o Rio de Janeiro até Minas Gerais, para servir de exemplo. Os poetas que aderiram ao movimento ficaram conhecidos como os Intelectuais da Conjuração.
    A sátira não era o forte destes poetas, com exceção de "As Cartas Chilenas", por causa da censura e porque a sátira não era o forte dos árcades. A poesia arcádica, em geral, não retrata uma realidade vivida, mas uma realidade imaginada. Daí que eles até adotassem nomes arcádicos.
    No Brasil, as Academias barrocas que proliferaram na Baía e no Rio de Janeiro acabaram por conviver com outras Academias de tipo árcade: as Arcádias. Nelas participaram autores como Cláudio Manuel da Costa e Tomaz Gonzaga.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

HM Queen Elizabeth II (II)


Marco de Angelis

 

HM Queen Elizabeth II (I)


Ben Jennings

 

Isabel II: the Queen is dead!


Denis Fildes, Her Majesty The Queen Elizabeth II (1962)

 1926 - 08.09.2022

A escola do século XIX em imagens - IX


Nicolay Bogdanov-Belsky, Cálculo mental na escola pública (1895)

    Esta interessante pintura russa retrata, de modo pouco habitual, a sala de aula: em vez de alunos alinhados nas suas carteiras, eles aglomeram-se, pensativos, em torno do quadro preto e da figura tutelar do professor. O que fazem? Tentam resolver, mentalmente, um problema matemático que o professor lhes colocou.

    Esclareça-se antes de mais que este docente não corresponde à figura convencional do mestre-escola em atividade nas escolas rurais oitocentistas. Trata-se de Sergey Rachinsky, um professor universitário de Botânica que a dada altura largou a vida académica em Moscovo para se tornar professor numa pequena cidade, onde não se limitava, como aqui se vê, a “dar a matéria”, mas se empenhava, através de desafios colocados aos seus alunos, em fazê-los pensar.

    Além desta mensagem clara que a pintura transmite – a escola pública deve desafiar os alunos, retirando-os da zona de conforto do facilitismo e da falta de exigência, exigindo-lhes esforço para aprender e colocando-lhes desafios que os façam desenvolver todo o seu potencial – há uma outra ideia pertinente que, quando a diminuição das qualificações exigidas para dar aulas está na ordem do dia, é importante salientar: o professor não precisa de saber apenas a matéria que ensina aos alunos. A sua preparação deve ser bem mais vasta e abrangente. A qualidade da formação científica e pedagógica dos professores é, mais do que avaliações do desempenho burocráticas e vexatórias, a melhor garantia que podemos ter em relação à qualidade da escola pública.

Fonte: Escola Portuguesa.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Biografia / Vida de Aquilino Ribeiro


             Aquilino Ribeiro nasceu em Sernancelhe, freguesia de Carregal de Tabosa, distrito de Viseu, na Beira Alta, a 13 de setembro de 1885 e faleceu em Lisboa, a 27 de maio de 1963, após uma doença rápida, tendo os seus restos mortais sido trasladados para o Panteão Nacional em setembro de 2007, 44 anos após a sua morte. Era filho de Mariana do Rosário Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro e teve uma infância, ao que se sabe, de uma criança bastante travessa, a tal ponto que ainda recentemente era possível encontrar nessa zona quem tivesse ouvido contar histórias picarescas de um menino destinado pela família à vida de sacerdócio.

            A sua vida, tal como a de muitas das personagens a que deu vida, foi movimentada e aventurosa. Aos 10 anos, mudou-se com os pais para a aldeia de Soutosa, concelho de Moimenta da Beira, onde passou grande parte da infância. Estudou na escola de Soutosa e, seguidamente, no Liceu de Lamego, onde fez os estudos preparatórios, mais tarde em Viseu, em 1902, onde estudou Filosofia e Teologia. A pedido da sua mãe, entrou para o Seminário de Beja, onde fez apenas o primeiro e parte do segundo ano de Teologia, dado que não vocação religiosa. Em 1904, foi expulso do seminário, depois de ter dado uma réplica cortante a uma acusação do Padre Manuel Ançã, um dos dois irmãos que dirigiam a instituição na época.

            Em 1906, encontramo-lo em Lisboa, onde inicia a sua longa carreira de jornalista, com artigos de opinião (e princípio de um romance em folhetins – A Filha do Jardineiro) publicados em jornais como A Vanguarda, uma publicação republicana, o Jornal do Comércio, O Século (do qual foi, mais tarde, correspondente em Paris), A Pátria, Ilustração Portuguesa e o Diário de Lisboa. Dedicou-se também à tradução (traduziu, por exemplo, Il Santo, de Fogazzaro) e à redação, em colaboração com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro, uma ficção simultaneamente de propaganda republicana e de crítica corrosiva às figuras do regime monárquico, incluindo o próprio rei D. Carlos. Além disso, foi um dos fundadores da Seara, onde também colaborou, escreveu em revistas como Homens Livres e Lusitânia e, juntamente com outros intelectuais seus amigos, entre os quais Raul Proença, constituiu-se como um dos animadores da publicação do Guia de Portugal.

            Verdadeiro homem de ação, um tipo social muito exaltado no início do século XX, aderiu ao movimento republicano, pelo qual se bateu, quer através da escrita, quer através da participação em iniciativas que acabaram por o levar à prisão. De facto, em 1907, foi acusado de bombista por causa do rebentamento de uns caixotes de explosivos que guardara no seu quarto e que levaram à morte de dois correligionários seus e detido na esquadra do Caminho Novo por fazer parte do Partido Republicano, de onde se evadiu em circunstâncias recambolescas, como se pode ler num volume de memórias. Chegou mesmo a correr um boato segundo o qual Aquilino teria sido, em 1908, a «terceira carabina», aliás inútil, já que os dois regicidas tinham levado a cabo a sua função de forma exemplar. Fugiu, portanto, da prisão e, após alguns meses de clandestinidade em Lisboa, refugiou-se em Paris, tendo frequentado na Sorbonne o curso de Filosofia e Sociologia. Aí, foi ensinado por mestres como George Dumas, André Lalande, Levy Bruhl e Durckeim, e contactou com a intelectualidade portuguesa que, igualmente por razõees políticas, se exilara fora de Portugal. Além disso, conheceu Grete Teidemann, a sua primeira mulher, com quem foi residir e casou na Alemanha, tendo o seu primeiro filho nascido, porém, em Paris. Visitou brevemente Portugal em 1910, depois de proclamada a República, tendo regressado em definitivo no ano de 1914, depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial, deixando incompleto o curso de Filosofia, que abandonou já depois de se ter matriculado no quarto ano, como se pode comprovar pela consulta dos registos guardados no Centre d’Accueil et de Recherche des Archives Nationales de Paris.

            Em Portugal, nunca descurando o seu trabalho de escritor (escrita ficcional e cronística para a imprensa periódica, uma atividade que desenvolveu de forma regular ao longo de toda a vida), exerceu a carreira de professor no Liceu Camões durante três anos e foi, posteriormente, segundo bibliotecário – mais tarde conservador – na Biblioteca Nacional, para onde entrou a convite do amigo Raul Proença. Esta função, entre outras vantagens, deu-lhe a possibilidade de alimentar o seu amor pelos livros antigos e raros, um gosto que o levou a produzir trabalhos de investigação, publicados, por exemplo, nos Anais das Bibliotecas e Arquivos, e que se refletiu também na sua produção literária, de que é exemplo o seu primeiro romance, A Via Sinuosa. Além disso, como já foi referido anteriormente, fez parte de um grupo de intelectuais que desenvolveu uma significativa atividade cívica e cultural que teve a sua expressão mais visível na revista Seara Nova, uma publicação importantíssima quer na difusão dos ideais republicanos, quer na evolução da conturbada vida política da Primeira República.

Foi demitido do cargo de bibliotecário em 1927 novamente por razões políticas. Desta vez, participou na revolta frustrada contra a ditadura militar que, entretanto, fora instaurada no país após o golpe de 28 de maio de 1926. Fugiu para a Beira Alta e, em seguida, refugiou-se de novo em Paris – segundo exílio. Quando, clandestinamente, regressou a Portugal, escondeu-se em Soutosa. Entrementes faleceu a sua esposa. Em 1928, voltou a participar numa iniciativa antirregime (o chamado movimento do regimento de Pinhel), mas foi capturado e levado para a prisão do Fontelo, em Viseu, um edifício que ainda hoje pode ser visto na cidade. Na companhia de António Mota, conseguiu voltar a evadir-se serrando as grades do cárcere enquanto numa grafonola tocava um disco para abafar o som. Escondeu-se nas serranias beiroas e encetou uma difícil jornada que o levou de novo a Paris – terceiro exílio. Na capital francesa, casou em segundas núpcias [a primeira esposa havida falecido em 1927] com D. Jerónima Dantas Machado, filha do presidente da República Bernardino Machado, também homiziado aí depois de deposto por Sidónio Pais, e foi viver com ela para o Sul de França (Ustaritz e Baiona, onde, em 1930, lhe nasceu o primeiro filho do casal e o segundo de Aquilino). Enquanto isso, em Lisboa, em 1929, foi julgado e condenado à revelia. Viveu depois em Vigo e em Tui, cidades espanholas, até regressar clandestinamente a Abravezes, Viseu. Acabou por ser amnistiado em 1932, tendo ido residir para Cruz Quebrada.

            Acalmados os seus instintos revolucionários, embora tenha continuado a participar em ações críticas da ditadura salazarista, Aquilo Ribeiro pode, então, dedicar-se plenamente à escrita, prosseguindo a sua produção ficcional, o trabalho de tradução, o trabalho ensaístico (latu sensu) e a colaboração na imprensa, além das suas lendárias idas ao Chiado, ao final da tarde, para tertúlias à porta da Bertrand, a sua editora. Literariamente, nunca abdicou da originalidade nem alinhou com nenhum dos movimentos literários do seu tempo, desde o Modernismo (pela leitura de algumas cartas de Fernando Pessoa, ficamos a saber que Aquilino era apreciado pelo poeta) ao Presencismo, que o criticou fortemente, em especial José Régio (críticas essas publicadas em grande número na revista do movimento, a Presença), passando pelo Neorrealismo. Como foi indiciado atrás, não obstante a acalmia que a sua vida conheceu nesta época, o escritor jamais abdicou da sua consciência cívica e política, tendo continuado a criticar o regime, aderido ao MUD (Movimento de Unidade Democrática), publicado textos na imprensa diária de defesa da causa, apoiado a campanha presidencial de Norton de Matos, integrado, juntamente com outras figuras do saber, a Comissão Promotora do Voto e militado na candidatura do general Humberto Delgado à presidência da República, em 1958.

            Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de Sansão foi galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa, e, em 1935, foi eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornou sócio efetivo em 1957. Ao seu ativismo político soma-se a tenacidade com que, durante mais de duas décadas, lutou pela agregação forma e institucionalizada dos escritores até conseguir criar, apesar das forças políticas contrárias, a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1956, de que foi fundador, o primeiro presidente eleito e o sócio n.º 1. No ano seguinte, a Livraria Bertrand iniciou a edição das Obras Completas. Em 1959, foi publicado o romance Quando os Lobos Uivam, que, por causa do seu conteúdo incómodo para o poder político, que o considerou injurioso das instituições do poder, foi apreendido e o escritor processado, no entanto, em 1960, o processo foi amnistiado. Nesse mesmo ano, um grupo de intelectuais (entre os quais Francisco Vieira de Almeida, o proponente, José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira como subscritores) candidatou Aquilino Ribeiro ao Prémio Nobel da Literatura. Todos estes factos, juntamente com as homenagens que recebeu no Brasil quando lá se deslocou em 1952, o movimento de defesa que se gerou em seu torno a propósito da já citada publicação de Quando os Lobos Uivam (além da defesa formal, da responsabilidade do advogado Heliodoro Caldeira, o escritor recebe o apoio de cerca de três centenas de intelectuais portugueses, que elaboram um abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo e François Mauriac redigiu uma petição em seu amparo que foi assinada por figuras como Louis Aragon e André Maurois, além de ter sido publicado em vários jornais e revistas franceses) atestam o enorme prestígio que Aquilino Ribeiro possuía.

            No momento em que se preparava, nomeadamente através da Sociedade Portuguesa de Escritores, uma homenagem pública nacional, promovida por várias cidades e tendo por base a celebração do cinquentenário da publicação da obra Jardim das Tormentas, o escritor adoeceu repentinamente, vindo a falecer no Hospital da CUF a 27 de maior de 1963.

 

Bibliografia

AA. VV., Retratos para Aquilino, Câmara Municipal de Paredes de Coura, 2000.

ALMEIDA, Henrique, Aquilino Ribeiro e a Crítica, Porto, Edições Asa, 1993.

CENTRO DE ESTUDOS AQUILINO RIBEIRO (ed.), Cadernos Aquilinianos.

INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO (coord. Eugénio Rosa), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses.

MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor. Porto. Divulgação, 1964.

MARTINS, Serafina, Aquilino Ribeiro, Instituto Camões.

MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor. Porto. Divulgação, 1964.

 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cona: etimologia


     A palavra cona designa, enquanto calão, o órgão sexual feminino, constituindo, por isso, um sinónimo de vagina.

    O termo provém do latim cunnus, que significava «vulva», mas também foi usado como representação metonímica de mulher pelo poeta Horácio.

    Cunnus deu origem ao português «cona», bem como ao castelhano «coño» (que pertence ao género feminino), ao italiano «conno», ao francês «con» e ao catalão «cony».

    Relativamente à origem indo-europeia, existem diferentes hipóteses, não se tendo chegado até agora a nenhuma conclusão definitiva.

domingo, 4 de setembro de 2022

Análise do poema "Profissão de fé", de Olavo Bilac


     Este poema é, no fundo, a «ars poetica» do Parnasianismo, cuja ideia básica de burilar a forma se encontra presente logo na epígrafe. É uma poesia racional, porque não é uma poesia inspirada, uma poesia que brota da alma. Fala-se em racionalização e trabalho intelectual.

    As imagens que aparecem estão ligadas ao divino pagão ou ao campo semântico do trabalhar o mármore ou o ouro. Predominam as imagens do campo semântico do artesanato, da arte escultória. As próprias divindades estão presentes, não como entidades, mas como esculturas. Chega a estabelecer-se uma oposição entre o trabalho épico e o trabalho do ourives, que ele inveja.

    Com efeito, Olavo Bilac era um poeta parnasiano, tão dotado que foi apelidado pelos seus contemporâneos e pelos críticos de «O príncipe dos poetas brasileiros». O título do poema relaciona-se com o facto de o texto apresentar o crédito estético do poeta. A expressão «profissão de fé» é de origem religiosa e é usada sempre que a Igreja católica recebe um novo membro no seu seio, constituindo ainda hoje um dos passos da chamada catequese, em cuja cerimónia o padre questiona esse novo membro se aceita Jesus Cristo como seu único senhor e salvador. Quando aceita, a pessoa faz, assim, a sua profissão de fé pública.

    Qual é a relação deste culto religioso com a escrita, com a poesia? Um poeta, quando apresenta o seu crédito estético, comunica ao seu leitor tudo aquilo em que acredita como essencial à sua atividade poética. No caso concreto do poema de Olavo Bilac, a profissão de fé estabelece um paralelismo entre o ateliê de um escultor, a oficina de um ourives e o escritório de um poeta, estabelecendo, assim, uma analogia entre três profissões. Porém, antes de levar o leitor a visitar a sua oficina de escritor, ocupa-se com a descrição da oficina das outras duas atividades. 

    Por outro lado, um dos temas abordados ao longo da composição poética é a língua portuguesa, que o poeta trata como uma deusa. Assim, ao referir-se-lhe, trata-a como alguém que a celebra diante de um altar, o que significa que o poema contém vários referências religiosas, exemplificadas pelas ideias de altar, de fé, de crença, de divindade, de celebração, etc. Neste sentido, o título é outro elemento de religiosidade.

    Enquanto parnasiano, Olavo Bilac introduz no poema elementos clássicos, entre os quais se destaca a mitologia, como atrás foi referido, ou determinado vocabulário, ou a inversão da ordem natural das palavras na frase (hipérbato ou anástrofe: «que outro a pedra corte», em vez de «que outro corte a pedra»).

    Mas qual é a ideia central do tal credo estético do poeta? Simplesmente, a escrita é trabalho, é esforço. Sem isto, não há escrita que tenha qualidade. Para demonstrar a sua «tese», o poeta vai comparar as ferramentas do escultor (o martelo, o camartelo, uma ferramenta mais pesada, pois destina-se a cortar o mármore) e do ourives (o cinzel, uma ferramenta mais delicada, vista que se destina a trabalhar pedras preciosas) à pena do escritor. Assim, ele recusa o material pesado, a construção grandiosa, monumental do ponto de vista física, preferindo aproximar a técnica do escritor aos elementos estéticos do ourives. É por isso que ele compara, de um lado, a oficina do escultor e, do outro, a oficina do ourives. Deste modo, procura mostrar que o material e as ferramentas são diferentes consoante a profissão que se exerce e o trabalho que tem de se executar.

    Além do trabalho em pormenor, que irá levar Gonçalves Crespo a chamar ao seu livro Miniaturas, Bilac quer ainda pedras raras e pequenas, como o cristal ou o ónix. É um escultório minucioso, daí que compare a pena do escritor ao cinzel do escultor. Ele imagina que a escrita é uma forma para vestir a ideia. É a velha oposição forma/conteúdo, com predomínio da primeira. É, de facto, um grande trabalho artesanal tentar colocar as ideias dentro dos limites do soneto. São várias as palavras ligadas ao campo da escultura: «pedra», «mármore», «cinzel», «ónix», «cristal», «prata», «lima, torce, aprimora, alteia», «ouro», «rubi». É esse fino trato, a elegância da delicadeza estética que o «eu» poético pretende aproximar à poesia. Mais: ele deseja sustentar-se no zelo, no tecnicismo, na minúcia do ourives para criar poesia.

    O «eu» poético começa o poema rejeitando a eloquência da arte clássica, os temas, os materiais, nomeadamente da grega. Que outro opte por isso e trabalhe dessa forma, com esse material, adote esse tipo de estética. Ele não. De seguida, afirma sentir inveja do ourives quando escreve, isto é, a sua técnica, que deseja para si e para a sua escrita, e declara que o imita. Abandona o mundo do Classicismo e abraça o que é característico da ourivesaria. É neste ponto que entra a comparação entre a pena, o seu instrumento de trabalho, e o cinzel do ourives: enquanto escritor, ele irá usá-la como o este último usa o cinzel. E desenvolve-a da seguinte forma: a pena corre, desenha, enfeita a imagem (metáfora), veste a ideia (outra metáfora), escreve com tinta azul ("Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem / Azul-celeste"), torce (como o ourives torce o metal, isto é, dá a forma à joia, como a pena dá a forma às letras). Ao terminar ("e enfim"), no «verso de ouro» (o último verso de um soneto clássico), engasta, ou seja, dá o acabamento, cuidando da rima como se se tratasse de um rubi (nova comparação). Isto também significa que a escrita exige a escolha da palavra precisa, a preocupação com a construção das frases/dos versos, com o seu polimento, para que o poema se torne um objeto preciso, semelhante a uma joia rara.

    Por outro lado, a preocupação primeira do poeta (parnasiano neste caso) prende-se com a produção de um poesia formalmente perfeita, isto é, dotada de uma linguagem elaborada, rima apropriada, sintaxe tradicional. Assim sendo, a sua preocupação central parece recair no estilo e não na profundidade das ideias e nas emoções e sentimentos. Ora, neste ponto, Bilac está a seguir um dos princípios do Parnasianismo: o da arte pela arte, ou seja, o culto da forma.

    O seu objetivo, a sua finalidade é que a poesia saia da sua oficina, onde a trabalha, sem um defeito, ou seja, perfeita, graças ao seu trabalho aturado, perseverante e minucioso ("E que o lavor do verso", o que requer tempo ("E horas sem conto passo, mudo"). O sujeito lírico dedica ao seu ofício o tempo que for necessário, por isso é que afirma que «não conta» as horas que gasta, totalmente concentrado no que está a fazer ("A trabalhar, longe de tudo / O pensamento"). Porque é que isto acontece? De acordo com o poema, a escrita, dentre todos os ofícios, é o que exige mais perícia e dedicação ("Porque o escrever - tanta perícia, / Tanta requer, / Que ofício tal... nem há notícia / De outro qualquer").

    Na estrofe 13, o «eu» associa a escrita e a poesia a uma divindade ("Por te servir, Deusa serena") e, nas seguintes, denuncia aqueles que escrevem e poetizam mal ("Blasfemo em grita surda e horrendo T Ímpeto, o bando / Venha dos bárbaros crescendo, / Vociferando...") e roga à Deusa, à Musa, que ignore esse «bando» ("Deixa-o"). Todo aquele que não se dedica ao cultivo da língua de forma aprimorada é apelidado de «infiel». Pode morrer tudo o que rodeia e é importante para o sujeito lírico, mas, desde que fique com a sua língua, sente-se feliz, mesmo que fique só e desamparado.

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