Português

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Estrutura do conto "A Aia"

  
Situação inicial (1.º parágrafo):

Apresentação do rei e do reino.

Partida do... 


Análise da estrutura interna do conto → link.

Explicação do título "A Aia"

    O título do conto “A Aia” indica a personagem principal do texto. Por outro lado, o uso do determinante artigo definido «A» indicia...


Análise do título → explicação do título.

Resumo do conto "A Aia"


    Um rei jovem e valente tinha partido para batalhar em terras distantes em busca de conquistas e fama, deixando só e triste a rainha e um filho pequeno, ainda de berço. Numa das batalhas, o rei perdeu a vida e foi chorado pela esposa, sobretudo por deixar órfão o pequeno filho frágil e desamparado, herdeiro do trono.
    Sendo o herdeiro natural do trono, o bebé estava sujeito aos ataques dos inimigos do reino, nomeadamente do seu tio, irmão bastardo do falecido rei, que vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes.
    O pequeno príncipe era amamentado pela aia da rainha, mãe também de um bebé de berço, que alimentava e tratava as duas crianças com igual carinho, dado que um era seu filho e outro seria, futuramente, seu rei, demonstrando grande lealdade sem limites ao seu príncipe e verdadeiro amor maternal pela sua cria. A sua lealdade e dedicação eram tais que a aia também chorou copiosamente a perda do rei, no entanto acreditava na vida para além da morte, por isso julgava-o reinando num outro reino no Céu. Os meninos dormiam lado a lado no mesmo quarto, todavia, enquanto o filho da aia dormia num berço de verga, o príncipe dormia num berço de marfim.
    Como seria expectável, o tio bastardo desceu da serra com a sua horda e deu início a uma matança sem tréguas, não encontrando grande resistência. De facto, a defesa estava bastante fragilizada, pois a rainha não sabia como a promover, limitando-se a recear e a chorar a sua fraqueza de viúva sobre o berço do filho.
    Uma noite, quando estava prestes a adormecer, a aia ouviu um ruído de luta e pressentiu que o tio bastardo estava a invadir o palácio para matar o pequeno príncipe. Apercebendo-se do que se iria passar, sem hesitar, a serva trocou as crianças nos respetivos berços. Assim, salvaria a vida do futuro rei à custa do seu próprio filho. Nesse instante, um homem enorme entrou na câmara, arrancou a criança que dormia no berço de marfim e partiu, levando-a.
    A rainha, que entretanto chegara à câmara, ficou desesperada, enlouquecida, ao ver as roupas desmanchadas e o berço vazio. A aia mostrou-lhe, então, o berço de verga e o jovem príncipe que nele dormia. Entretanto, o capitão dos guardas veio dar notícia de que o tio bastardo tinha sido derrotado, mas infelizmente o príncipe também tinha perecido. A rainha mostrou, então, o futuro rei salvo e, depois de identificar a sua salvadora, abraçou-a e beijou-a, chamando-lhe irmã do seu coração.
    Todos a aclamaram e exigiram que fosse recompensada, por isso a rainha levou-a ao tesouro real, composto pelas mais variadas riquezas, para que a serva pudesse escolher a joia que mais lhe agradasse. A ama pegou num punham e, olhando o céu onde acreditava estar o seu filho, cravou-o no seu coração, afirmando que, agora que havia salvado o seu príncipe, tinha de ir amamentar o seu filho. Deste modo, pôs fim à sua dor de mãe, por fidelidade ao seu príncipe, e seria de novo feliz, no Além.


Ligações:

    . Título.

    . Estrutura da ação.

    . Delimitação da ação.

   

sábado, 21 de outubro de 2023

Apresentação do poema "O Sentimento dum Ocidental"

 
Objetivo da escrita do poema: homenagear e Camões a propósito da celebração do tricentenário do seu falecimento.
 
Contexto / Motivação para a escrita do poema: necessidade de denunciar a decadência histórica vivida por Portugal e pelos portugueses – “À exaltação formal a que oficialmente se aderiu [em resultado das celebrações em torno do tricentenário do falecimento de Camões], Cesário Verde contrapõe a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava.” (Lino Silva, in Encontro Leituras em Português).
 
Data de publicação: 10 de junho de 1880.
 
Atitude do poeta: demarcação do ambiente festivo e do tom elogioso dominantes apresentação de uma visão de um Portugal decadente e em crise.
 
Em 1887, um ano após a morte do poeta, os seus poemas são publicados sob o título O Livro de Cesário Verde, por ação do seu amigo Silva Pinto, no entanto Cesário teria em mente o título Cânticos do Realismo, cuja primeira menção surgiu em 1873, que foi efetivamente adotado a partir de 2006 para designar a sua obra na edição de Teresa Sobral Cunha. Assim, adota-se como título para o livro do poeta Cânticos do Realismo e O Livro de Cesário Verde o seu subtítulo.
 
Os poemas que Cesário Verde foi publicado ao longo da sua curta vida foram sendo publicados em jornais e revistas de Lisboa e do Porto, mas não em livro. Foi apenas após a sua morte que, em 1887, Silva Pinto, amigo do poeta e crítico literário, reuniu em volume os poemas publicados de forma dispersa e os que estavam inéditos.
 
O meio literário português, nomeadamente a lisboeta, não compreende o alcance e a novidade da poesia de Cesário Verde, o que se traduz também no facto de vários jornais e revistas recusarem publicar poemas seus.
 
O poema “O Sentimento dum Ocidental” foi publicado pela primeira vez em 1880, no suplemento “Portugal a Camões” do jornal do Porto Jornal de Viagens, por ocasião das celebrações em torno de Camões, tendo sido recebido com enorme silêncio.
 
O último poema de Cesário Verde foi publicado em 1884 e intitula-se “Nós”, refletindo os sinais do agravamento do seu estado de saúde.
 
Inicia ainda a escrita do poema “Provincianas”, que deixa, porém, incompleto. O poema procurava evocar o poeta épico através da expressão das mudanças ocorridas na cidade de Lisboa, desde a época do vate português. Como já foi referido, Cesário demarcou-se do ambiente festivo e do tom elogioso dominantes e apresentou a visão de um Portugal em crise, que contrasta com a imagem gloriosa e grandiosa presente na epopeia camoniana.
 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Presente de Natal


Marian Kamensky

Fases poéticas de Cesário Verde


 
1.ª fase (1873 - 74): a "Crise Romanesca" ‑ o idealismo romântico temperado pelas tendências literárias e estéticas da época.

    Nesta fase, verifica-se a idealização romântica da mulher, que o poeta coloca num plano superior, como objeto de adoração, inacessível ao sujeito, que se limita a formular vagos desejos impossíveis (ex.: Responso). Estão presentes elementos como os cabelos louros, o luto, a tristeza, um grande sofrimento, o ambiente macabro do cemitério, o noturno, os castelos, os palácios e mosteiros silenciosos e abandonados, as «florestas tenebrosas», as «Velhas almas» errantes, o «locus horrendus» romântico em que se projeta um estado de alma, recordando alguns sonetos de Bocage.
    Noutros poemas (Esplêndida, Deslumbramentos), Cesário descreve a mulher fatal, artificial, citadina, que humilha, esmaga e fascina o sujeito poético, transportando consigo a artificialidade e a violência da vida da cidade, que pode levar à alienação e à perda da identidade do cidadão. A mulher é portadora da morte, não uma morte ambicionada, antes receada. A mulher é uma «vamp», produto do luxo, da moda, da despesa inútil e ostentatória. Ela é o agressor e dominador que é necessário vencer.


 
2.ª fase (1875 - 76): "Naturais" ‑ o antirromantismo e o naturalismo.

    Nesta fase, no poema Humilhações, surge o contraste entre o sujeito, «ignorado e só», e a mulher superior, distante e altiva que o atrai, sendo a distância entre homem e mulher sobretudo económica e social. Ela é uma burguesa rica que o atrai e fascina e ele é de baixa condição social; entre os dois instala-se, portanto, uma relação de opressão/humilhação, que impede qualquer hipótese de aproximação. Resta ao sujeito lírico a vingança, concretizada com o recurso ao retrato da velhinha «suja», «fanhosa, infecta, rota, má», que o poeta contrapõe como sucedâneo irreversível da mulher altiva e opressora.
    Cesário, por outro lado, em Contrariedades, critica a sociedade alienada e desumana através da denúncia de atitudes que ferem a sensibilidade do eu: o abandono a que são votados os doentes (ex.: a engomadeira tuberculosa) e os poetas (ex.: os jornais recusaram publicar os seus versos).

 
 
3.ª fase (1877 - 86): a maturidade ‑ "O real e a análise"  -  o campo e a cidade.

    Em Num Bairro Moderno, Cristalizações e O Sentimento dum Ocidental, Cesário é o pintor de Lisboa, que nos descreve quadros e tipos citadinos, sem deixar de exprimir as atitudes subjetivas provocadas pela vida exterior.
    O poeta é um burguês que se move na cidade e tudo encontra «alegremente exato», até que a tomada de consciência da dureza da vida dos trabalhadores o surpreende e fere, facto que o leva a denunciar a injustiça de que são vítimas.
    Nesta fase, desenvolve Cesário a dicotomia campo/cidade, sucedendo frequentemente a invasão simbólica da cidade pelo campo (ex.: a vendedeira). A cidade é simbolizada, por exemplo, pela atriz, pelos significados de luxo, artificialismo, teatralidade, mundanismo.
    Em O Sentimento dum Ocidental, nota-se uma revolta do sujeito perante as desigualdades sociais da sua época e um desencanto para com a cidade (vista como prisão, de que o sujeito procura fugir), onde há dor em busca de «amplos horizontes» ‑ o campo, espaço de liberdade.
    No poema Nós, Cesário retoma o elogio da vida campestre; a cidade surge identificada como «lívido flagelo, a moléstia horrenda», e oposta à salubridade do campo, à salvação da família. É provável que esta repulsa pela cidade e o entusiasmo pelo campo resultem da doença que desde cedo apoquentou Cesário, e da esperança de encontrar alívio na vida rústica, natural.


 
  
    Já segundo Joel Serrão, a produção poética de Cesário distribui-se por quatro fases:

 
1.ª fase (1873-74) – A Crise Romanesca: o idealismo romântico temperado pela ironia: o campo como “metáfora antinómica” da cidade.

 
    É a fase de iniciação literária de Cesário, caracterizada pela influência de João Penha, sendo marcado por um idealismo romântico (temas do amor e da mulher) que é atenuado pela ironia dos versos finais, e pelo rigor formal do Parnasianismo. São exemplos desta fase os poemas “A Forca” (1873), “Num tripudio de corte rigoroso” (1873), “Ó áridas Messalinas” (1873), “Cinismos” (1874), “Responso” (1874), “Esplêndida” (1874), “Setentrional” (1874), “Arrojos” (1874), “Vaidosa” (1874).

 
 
2.ª fase (1875-76) – O Naturalismo e a influência de Baudelaire.

 
    Cesário é agora influenciado pelo poeta francês Baudelaire, mostrando-se interessado pelo quotidiano citadino (os contrastes desse quotidiano são o seu alvo preferencial), do qual nos oferece belos quadros, bem ao jeito impressionista, repletos de plasticidade.
    Vários são os poemas em que isto sucede: “Deslumbramentos” (1875), “Frígida” (1875),”A Débil” (1875), “Contrariedades” (1876), “Humilhações” (1876).

 
 
3.ª fase (1877-80) – A maturidade poética – “o real e a análise”: o aprofundamento da oposição cidade/campo, sendo este ainda um “contraste idealizado” daquela.

 
    Esta é, provavelmente, a fase mais importante da sua produção poética, contemplando um conjunto de poemas que constituem uma busca febril das cores, das luzes, das sombras, dos ruídos, dos odores, das dores e dos fantasmas que pulsam na cidade de Lisboa.
    Exemplificam esta fase poemas como “Num Bairro Moderno” (1877), “Cristalizações” (1878), “Em Petiz” (1878), “O Sentimento dum Ocidental” (1889).

 
 
4.ª fase (1881-86) – O pictórico e a visão impressionista da realidade. A amplificação do contraste cidade/campo, tornando-se este uma alternativa àquela.

 
    A vida citadina aborrece-o e provoca-lhe mal-estar e o campo (o gosto das “coisas primitivas, sinceras, e a (…) boa paz regular”) substitui a cidade. A sua condição de agricultor proporciona-lhe não só a descoberta de novos temas e motivos de uma visão impressionista da realidade, mas também a evasão possível da cidade turbulenta. Ao “desejo de sofrer” e ao clima sombrio de “O Sentimento dum Ocidental” sucedem a claridade fecunda, o vigor, e a pureza dos ares do campo, que parecem antecipar uma ânsia de preservar a débil saúde do poeta.
    Exemplos deste derradeiro período são os textos “De Tarde” (?), “De Verão” (?), “Nós” (1884), “Provincianas” (derradeiro poema, incompleto).

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Análise do poema "Magro, de olhos azuis, carão moreno"


 Tema: autorretrato do sujeito poético.

 
 
 Assunto: descrição física e psicológica que o sujeito lírico faz de si próprio.

 
 
 Estrutura interna

 

 1.ª parte (2 quadras + 1.º terceto) – Autorretrato:


        Continuação da análise aqui 👉 "Magro, de olhos azuis, carão moreno".

Pai Natal patriot


Jürgén Tomicék

Análise do poema "Camões, grande Camões", de Bocage


 
👉 Assunto: Camões é considerado por Bocage o modelo dos indivíduos predestinados à desgraça, vítimas do Destino adverso, além de poeta genial, cuja obra aspira a imitar.

 
 
👉 Tema: comparação de Bocage com Camões (vida e obra).

 
 
👉 Estrutura interna

 
n 1.ª parte (v. 1 – “Modelo meu tu és..”, v. 12) Semelhanças entre Bocage e Camões:

– ambos vítimas do destino / o mesmo fado: “quão semelhante / Acho teu fado ao meu”;



Continuação da análise aqui 👉 : "Camões, grande Camões".

Análise do poema "O cacto", de Manuel Bandeira


    Os três versos iniciais constituem uma longa comparação, assente na forma verbal «lembrava», no pretérito imperfeito do indicativo, entre os galhos contorcidos do cato e duas personagens sujeitas a uma violência extrema: a morte de um pai e dos seus filhos, triturados por serpentes, como castigo por ter profanado o templo de Apolo (episódio de Laocoonte, narrado no segundo canto da Eneida), e um avô a morre de fome com os netos na prisão da torre de Gualandi (referência ao episódio de Ugolino, narrado por Dante no canto 33 do Inferno, no nono círculo, na “Antenora”, lugar reservado aos traidores da pátria. O caso de Laocoonte foi abordado em escultura por um artista grego, o que justifica a comparação feita pelo «eu» poético. Deste modo, o cato deixa de ser uma mera planta, visto que lhe são associados os sentidos de dor, privação e injustiça.

    Laacoonte era um sacerdote de Apolo que se casou, contra a vontade do deus, e teve filhos, Antífantes e Timbreu. Quando estava a fazer um sacrifício em honra de Neptuno, Apolo enviou duas serpentes que o mataram, bem como a seus descendentes. Segundo os frígios, isto aconteceu porque Laacoonte tinha arremessado a sua lança contra o cavalo de Troia, em pleno conflito com os Gregos. Ugolino foi uma figura histórica real que viveu no século XIII, em Itália, e que se envolveu em disputas políticas entre as famílias dos Guelfos e Guibelinos. Durante esse conflito, foi traído e feito prisioneiro, juntamente com os seus filhos e netos, no interior de uma torre da cidade italiana de Pisa, em 1288, acusados de conspirar para derrubar o governo da localidade, acabando por morrer à fome. De acordo com a lenda, teria morrido após comer a carne dos seus descendentes já mortos. Esta história foi abordada no canto 33 do Inferno, de Dante.
     O quarto verso traz-nos uma nova comparação: “Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas…”. Deste modo, a planta adquire, juntamente com a imagem do sofrimento das personagens acima mencionadas, a imagem do sofrimento da região nordestina do Brasil com as suas matas de carnaúbas e as suas capoeiras ralas.
     O quinto verso apresenta, de forma direta, o que foi dito anteriormente de modo figurado: “Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excecionais.” O cato destaca-se, porque ganha novos significados e, com isso, vai-se agigantando, já que passa a conter os males que afligem os seres humanos.
     A imagem do cato abatido pelo tufão converte-se numa alegoria, ou seja, através de uma sequência de imagens que lhe foram atribuídas, adquiriu um significado novo, diferente da sua realidade vegetal: a planta passa a ser a imagem da humanidade supliciada pela dor, pela privação e pelas injustiças.

Análise do poema "Cinco horas da manhã", de Orlando Mendes



São cinco horas da manhã

Para Maria pilando

Debaixo do cajueiro

E o noivo de Maria

Colimando a machamba

E pensando no Transval

 

São cinco horas da manhã

Para uma velha negra

Abanando o fogareiro

E assando maçaroca

Milho bom! Eh! Milho bom!

Numa voz desnecessária.

 

São cinco horas da manhã

No bazar de piripiri

Manga, coco e mulata

E tetas nuas vertendo

Leite tão branco e puro

Como leite secretado

Por outras tetas mais pudicas

 

São cinco horas da manhã

Nas cartas por escrever

Dos chibalos sonolentos

E nas mãos que dão à terra

A semente sem passado

 

São cinco horas da manhã

No coração confiante

Das mulheres que pariram

E em versos de sangue e nervos

Que latejam o futuro

 

Num canto livre e bravio

Das aves da minha terra

São cinco horas da manhã.

 

Mesmo com nuvens, espessas

Toldando a luz do sol

São cinco horas da  manhã.

 

E até no desespero

De não aceitar o dia

São cinco horas da manhã

Da manhã que irrompe

Com a alvorada ou não

Da noite de incubação.

 

São cinco horas da manhã

Do Rovuma à Ponta de Ouro

São, na coragem que temos

Para sabermos que são.

 
    Este poema, constituído por nove estrofes de versos brancos, é da autoria de Orlando Mendes, poeta moçambicano nascido a 4 de agosto de 1916 e falecido a 13 de janeiro de 1990. A temática central da sua poesia prende-se com a época colonial, pelo que talvez seja possível associar o versilibrismo e a irregularidade estrófica que caracterizam o texto a esse contexto, ou seja, tal como Moçambique estava em processo de descolonização, em busca da liberdade enquanto país, o texto também combate o espaço opressivo enquanto manifestação da liberdade literária.
    A primeira estrofe, uma sextilha, à semelhança das três seguintes, abre com um verso (anáfora) que localiza a «ação» no tempo: cinco horas da manhã, o tempo do fim da escuridão, o limite da madrugada e o início da manhã, o crepúsculo. O que sucede a essa hora? Uma mulher, chamada Maria, pila debaixo do cajueiro, sozinha. A conjugação da forma verbal «são», no presente do modo indicativo, e do gerúndio «pilando» sugerem que se trata de uma ação que está a decorrer ainda no momento em que se lê. As formas verbais seguintes («colimando» e «pensando») reforçam essa ideia. O verso 3 localiza-nos no espaço: Maria pila debaixo de um cajueiro, uma planta abundante em Moçambique da qual se extrai a castanha do caju. É provável que a figura de Maria simbolize um conjunto de Marias que pilam incessantemente, sozinhas, ao amanhecer do dia, perseverantes, com os olhos num futuro mais próspero e menos escuro ( o dia que está prestes a nascer).
    O quarto verso apresenta-nos o noivo de Maria. Ao contrário dela, introduzida trabalhando, ele está simplesmente a observar o terreno (“Colimando a machamba”) à sua frente, “pensando no Transval”), o qual sugere o progresso trazido pelo arado, pela máquina de terraplanagem e não mais o trabalho escravo e manual. Note-se, a este propósito, que, em Moçambique, o trabalho doméstico era executado, maioritariamente, pelos homens, enquanto o rural cabia às mulheres, daí que a figura em destaque seja a feminina trabalhando e não a masculina. O Transval era o nome da região da África do Sul, situada acima do rio Vaal, bem como de uma província situada nessa região, que existia entre 1910 e 1994, cuja capital era Pretória.
    A segunda estrofe introduz uma terceira figura: uma velha negra ocupada com tarefas domésticas na cozinha. O primeiro verso, uma repetição da estrofe anterior, enfatiza de novo a hora da escuridão, da imprecisão e da instabilidade do tempo crepuscular. Além disso, à semelhança da primeira estrofe também, a preposição «para» isola a personagem e a sua atividade. De novo, igualmente, os gerúndios («abanando» e «assando») apresentam-nos uma atividade que está a ocorrer no momento em que o leitor lê o poema e frisa a luta diária e a repetição de pessoas predestinadas à escuridão das suas tarefas e rotinas colonizadas.
    O quinto verso desta estrofe (“Milho bom! Eh! Milho bom!”) coloca-nos perante o pensamento da figura da «velha negra» através do discurso indireto livre, que traduz tanto a voz internalizada da personagem como a voz poética que «diz» o verso. No entanto, no verso 6, o sujeito poético quebra a alegria do anterior, afirmando que tudo foi dito “numa voz desnecessária”: por mais que a figura feminina considere o milho bom, num ambiente crepuscular, negro e sem muita esperança, a sua voz torna-se fraca e quase inaudível.
    A terceira estrofe, uma sétima, volta a repetir o primeiro verso das duas antecedentes. Agora, a ação decorre num bazar, no qual se vendem produtos (piripiri, manga, coco e mulata). Se os outros produtos não acarretam qualquer estranheza, a venda da mulata remete para a prostituição, uma atividade intensa durante o período do colonialismo, constituindo uma das poucas formas de sobrevivência das mulheres mulatas em temos difíceis. Os quatro versos seguintes, centrados ainda nessas mulheres, sugerem uma imagem diferente, uma imagem maternal: “E tetas nuas vertendo / Leite tão branco e puro / Como o leite secretado / Por outras tetas mais pudicas”. No entanto, a presença da preposição «por» e do determinante indefinido «outras» [quando surge antecedido do determinante artigo definido – o, a, os, as –, «outro» é um determinante demonstrativo; quando tal não sucede, possui um valor indefinido, como sucede, por exemplo, em «O Eusébio é de outra equipa.») indiciam que, por mais puras que sejam as tetas nuas que vertem o branco e puro leite secretado, não são tão boas quanto as que são mais pudicas, ou seja, reforça-se a ideia negativa em torno das mulheres prostitutas, mostrando-se que o leite puro se torna impuro quando se trata das mulatas do bazar.
    A quarta estrofe repete o início das anteriores e refere-se a cartas que estão por escrever, provavelmente porque não foram escritas por causa da censura do colonialismo. Por outro lado, a população estava presa ao trabalho forçado, mal pago, quando era pago, ou seja, uma situação de trabalho escravo, definindo a prática do chibalo, portanto. As imagens “chibalos sonolentos” e “cartas por escrever” associam-se, dado que, numa terra sonolenta, presa à escuridão do crepúsculo, o regime colonialista instaura um tempo de sonambulismo numa terra controlada pelos colonizadores, sem ter como se expressar livremente. A própria forma verbal no infinitivo («escrever» – v. 21) acentua a ideia da ação não concluída. Além disso, o adjetivo «sonolentos» contribui para a construção de uma imagem escura e desolada da terra representada pelo poema, visto que o vocábulo traz consigo a ideia do sono e evoca a imagem da noite consigo. Os dois últimos versos da estrofe fecham as imagens da escuridão e da falta de esperança, visto que as mãos que trabalham e proporcionam à terra a sua força de trabalho, a semeiam sem passado, sem apego e respeito pelas tradições, já que o colonizador trouxe consigo a “catequização civilizada e superior” aos “brutos selvagens” do continente. Assim sendo, a semente sem passado representa uma situação infértil às gerações futuras, pois, se o passado não for refletido no presente, o futuro semear não mais existirá efetivamente.
    Na quinta estrofe, o número cinco representa o tempo de uma nova esperança, sugerindo uma imagem e claridade que se opõe à escuridão. Por outro lado, esta estrofe situa-se no centro do poema: antes dela há quatro e depois outras tantas. Deste modo, a mudança de estado evocada pela poesia encontra-se exatamente no meio do poema. Além disso, nesta estrofe ainda é marcada pela imagem do ato de parir, do sangue, de nervos inclinados ao futuro latejante, ou seja, o surgimento de um novo tempo. No segundo verso, o adjetivo «confiante» acopla-se ao nome «coração», o que aponta para o pulsar de algo novo e esperançoso. Ora, esse estímulo é parido pelas mulheres que dão luz às novas esperanças do país: os seus filhos. O verbo «parir» transporta consigo uma ideia de luz, agregada às de pulsação, batimento cardíaco, vida, que se ligam também a «coração», que representa, em suma, o surgimento de um novo momento.
    A metáfora “versos de sangue” (v. 28) quer dizer que a poesia fala dela mesma, ou seja, recorrendo à metapoesia, podemos dizer que tanto as mulheres «pariram» novos filhos para uma nova nação, sem o jugo colonial, quanto a literatura, que, através de uma luta incessante de resistência literária à imposição de formas poéticas e comportamentos provenientes de Portugal, «rasgam», «parem» os seus próprios padrões, e, como se fossem sangue, derramam e contaminam a sua esperança num futuro mais confiante dentro do panorama literário moçambicano. Por sua vez, a forma verbal «latejam» sugere a ideia de pulsação, palpitação de um país e de uma literatura prestes a parir.
    A sexta estrofe introduz outra novidade: o verso que se vinha repetindo ao longo do poema no início, como se fosse um refrão, passa para o fim, dado que agora o foco deixa de estar no tempo crepuscular e passa para a claridade, “no canto livre”. A ideia de liberdade é suscitada logo no primeiro verso a partir da expressão “canto livre e bravio”. Deste modo, estamos na presença de uma liberdade cantada e já não domesticada, uma liberdade feroz e indomável, ideia sugerida pelo adjetivo «bravio». Essa noção é acentuada pela imagem das aves, não umas quaisquer, mas as da terra do «eu» poético.
    A sétima estrofe é introduzida pela conjunção «mesmo», traduzindo uma ideia de que, ainda que o renascer de uma nação e de uma literatura seja um processo difícil, são cinco horas da manhã, isto é, situa-se na transição para um tempo que está por vir. O que transmite essa ideia de dificuldade? Desde logo, a expressão «nuvens espessas», que cria a sensação de uma nuvem pesada, carregada, prestes a chover, a derramar-se sobre a terra. A forma verbal no gerúndio («toldando») reforça a imagem anterior de um clima instável, pesado. Por seu turno, a imagem seguinte opõe-se à claridade trazida pela luz do sol que, entre as nuvens espessas, fica no limite do nascer do dia e do fim da madrugada.
    A oitava estrofe, uma sextilha, sugere a dificuldade da transição e aceitação do dia para uma manhã que irão romper ou não da noite em incubação. A forma verbal «irrompe» revela a violência e o ímpeto da manhã que está por vir, no entanto a alvorada, a primeira manhã, pode surgir ou não da noite de incubação.
    Na última estrofe, o refrão regressa ao primeiro verso, destacando duas cidades: Rovuma e Ponta de Ouro. Estas localidades situam-se nas áreas litorais do país, locais onde a colonização se instalou inicialmente. A forma verbal «São», no presente do indicativo, repete-se três vezes nesta estrofe, anunciando uma certa instabilidade e uma certa falta de ação, dado que a situação de Moçambique, não obstante a independência e a mobilização em favor da nação prestes a nascer – em estado de efervescência –, ainda se encontrava num estado de transição, logo de incerteza, o que justifica a dicotomia claro-escuro que se verifica ao longo do poema.


Bibliografia:
- MADRUGA, Elisalva. Os percursos da literatura moçambicana: da dor à alegria. Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra.
- MOISÉS, Massaud. Guia Prático de Análise Literária. 3.ª edição. São Paulo.
-CRUZ, Clauber Ribeiro. “Cinco Horas da Manhã: a poesia moçambicana e o colonialismo português”.
 
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