São cinco horas da manhã
Para Maria pilando
Debaixo do cajueiro
E o noivo de Maria
Colimando a machamba
E pensando no Transval
São cinco horas da manhã
Para uma velha negra
Abanando o fogareiro
E assando maçaroca
Milho bom! Eh! Milho bom!
Numa voz desnecessária.
São cinco horas da manhã
No bazar de piripiri
Manga, coco e mulata
E tetas nuas vertendo
Leite tão branco e puro
Como leite secretado
Por outras tetas mais pudicas
São cinco horas da manhã
Nas cartas por escrever
Dos chibalos sonolentos
E nas mãos que dão à terra
A semente sem passado
São cinco horas da manhã
No coração confiante
Das mulheres que pariram
E em versos de sangue e nervos
Que latejam o futuro
Num canto livre e bravio
Das aves da minha terra
São cinco horas da manhã.
Mesmo com nuvens, espessas
Toldando a luz do sol
São cinco horas da manhã.
E até no desespero
De não aceitar o dia
São cinco horas da manhã
Da manhã que irrompe
Com a alvorada ou não
Da noite de incubação.
São cinco horas da manhã
Do Rovuma à Ponta de Ouro
São, na coragem que temos
Para sabermos que são.
Este
poema, constituído por nove estrofes de versos brancos, é da autoria de Orlando
Mendes, poeta moçambicano nascido a 4 de agosto de 1916 e falecido a 13 de
janeiro de 1990. A temática central da sua poesia prende-se com a época
colonial, pelo que talvez seja possível associar o versilibrismo e a
irregularidade estrófica que caracterizam o texto a esse contexto, ou seja, tal
como Moçambique estava em processo de descolonização, em busca da liberdade
enquanto país, o texto também combate o espaço opressivo enquanto manifestação
da liberdade literária.
A
primeira estrofe, uma sextilha, à semelhança das três seguintes, abre com um
verso (anáfora) que localiza a «ação» no tempo: cinco horas da manhã, o tempo
do fim da escuridão, o limite da madrugada e o início da manhã, o crepúsculo. O
que sucede a essa hora? Uma mulher, chamada Maria, pila debaixo do cajueiro,
sozinha. A conjugação da forma verbal «são», no presente do modo indicativo, e
do gerúndio «pilando» sugerem que se trata de uma ação que está a decorrer
ainda no momento em que se lê. As formas verbais seguintes («colimando» e
«pensando») reforçam essa ideia. O verso 3 localiza-nos no espaço: Maria pila
debaixo de um cajueiro, uma planta abundante em Moçambique da qual se extrai a
castanha do caju. É provável que a figura de Maria simbolize um conjunto de
Marias que pilam incessantemente, sozinhas, ao amanhecer do dia, perseverantes,
com os olhos num futuro mais próspero e menos escuro ( o dia que está prestes a
nascer).
O
quarto verso apresenta-nos o noivo de Maria. Ao contrário dela, introduzida
trabalhando, ele está simplesmente a observar o terreno (“Colimando a machamba”)
à sua frente, “pensando no Transval”), o qual sugere o progresso trazido pelo
arado, pela máquina de terraplanagem e não mais o trabalho escravo e manual.
Note-se, a este propósito, que, em Moçambique, o trabalho doméstico era executado,
maioritariamente, pelos homens, enquanto o rural cabia às mulheres, daí que a
figura em destaque seja a feminina trabalhando e não a masculina. O Transval
era o nome da região da África do Sul, situada acima do rio Vaal, bem como de
uma província situada nessa região, que existia entre 1910 e 1994, cuja capital
era Pretória.
A
segunda estrofe introduz uma terceira figura: uma velha negra ocupada com
tarefas domésticas na cozinha. O primeiro verso, uma repetição da estrofe
anterior, enfatiza de novo a hora da escuridão, da imprecisão e da
instabilidade do tempo crepuscular. Além disso, à semelhança da primeira
estrofe também, a preposição «para» isola a personagem e a sua atividade. De
novo, igualmente, os gerúndios («abanando» e «assando») apresentam-nos uma
atividade que está a ocorrer no momento em que o leitor lê o poema e frisa a
luta diária e a repetição de pessoas predestinadas à escuridão das suas tarefas
e rotinas colonizadas.
O
quinto verso desta estrofe (“Milho bom! Eh! Milho bom!”) coloca-nos perante o
pensamento da figura da «velha negra» através do discurso indireto livre, que
traduz tanto a voz internalizada da personagem como a voz poética que «diz» o
verso. No entanto, no verso 6, o sujeito poético quebra a alegria do anterior,
afirmando que tudo foi dito “numa voz desnecessária”: por mais que a figura
feminina considere o milho bom, num ambiente crepuscular, negro e sem muita esperança,
a sua voz torna-se fraca e quase inaudível.
A
terceira estrofe, uma sétima, volta a repetir o primeiro verso das duas
antecedentes. Agora, a ação decorre num bazar, no qual se vendem produtos
(piripiri, manga, coco e mulata). Se os outros produtos não acarretam qualquer
estranheza, a venda da mulata remete para a prostituição, uma atividade intensa
durante o período do colonialismo, constituindo uma das poucas formas de
sobrevivência das mulheres mulatas em temos difíceis. Os quatro versos
seguintes, centrados ainda nessas mulheres, sugerem uma imagem diferente, uma
imagem maternal: “E tetas nuas vertendo / Leite tão branco e puro / Como o
leite secretado / Por outras tetas mais pudicas”. No entanto, a presença da
preposição «por» e do determinante indefinido «outras» [quando surge antecedido
do determinante artigo definido – o, a, os, as –, «outro» é um determinante
demonstrativo; quando tal não sucede, possui um valor indefinido, como sucede,
por exemplo, em «O Eusébio é de outra equipa.») indiciam que, por mais puras
que sejam as tetas nuas que vertem o branco e puro leite secretado, não são tão
boas quanto as que são mais pudicas, ou seja, reforça-se a ideia negativa em
torno das mulheres prostitutas, mostrando-se que o leite puro se torna impuro
quando se trata das mulatas do bazar.
A
quarta estrofe repete o início das anteriores e refere-se a cartas que estão
por escrever, provavelmente porque não foram escritas por causa da censura do
colonialismo. Por outro lado, a população estava presa ao trabalho forçado, mal
pago, quando era pago, ou seja, uma situação de trabalho escravo, definindo a
prática do chibalo, portanto. As imagens “chibalos sonolentos” e “cartas por escrever”
associam-se, dado que, numa terra sonolenta, presa à escuridão do crepúsculo, o
regime colonialista instaura um tempo de sonambulismo numa terra controlada
pelos colonizadores, sem ter como se expressar livremente. A própria forma
verbal no infinitivo («escrever» – v. 21) acentua a ideia da ação não concluída.
Além disso, o adjetivo «sonolentos» contribui para a construção de uma imagem
escura e desolada da terra representada pelo poema, visto que o vocábulo traz
consigo a ideia do sono e evoca a imagem da noite consigo. Os dois últimos
versos da estrofe fecham as imagens da escuridão e da falta de esperança, visto
que as mãos que trabalham e proporcionam à terra a sua força de trabalho, a
semeiam sem passado, sem apego e respeito pelas tradições, já que o colonizador
trouxe consigo a “catequização civilizada e superior” aos “brutos selvagens” do
continente. Assim sendo, a semente sem passado representa uma situação infértil
às gerações futuras, pois, se o passado não for refletido no presente, o futuro
semear não mais existirá efetivamente.
Na quinta
estrofe, o número cinco representa o tempo de uma nova esperança, sugerindo uma
imagem e claridade que se opõe à escuridão. Por outro lado, esta estrofe
situa-se no centro do poema: antes dela há quatro e depois outras tantas. Deste
modo, a mudança de estado evocada pela poesia encontra-se exatamente no meio do
poema. Além disso, nesta estrofe ainda é marcada pela imagem do ato de parir,
do sangue, de nervos inclinados ao futuro latejante, ou seja, o surgimento de
um novo tempo. No segundo verso, o adjetivo «confiante» acopla-se ao nome
«coração», o que aponta para o pulsar de algo novo e esperançoso. Ora, esse
estímulo é parido pelas mulheres que dão luz às novas esperanças do país: os
seus filhos. O verbo «parir» transporta consigo uma ideia de luz, agregada às
de pulsação, batimento cardíaco, vida, que se ligam também a «coração», que
representa, em suma, o surgimento de um novo momento.
A
metáfora “versos de sangue” (v. 28) quer dizer que a poesia fala dela mesma, ou
seja, recorrendo à metapoesia, podemos dizer que tanto as mulheres «pariram»
novos filhos para uma nova nação, sem o jugo colonial, quanto a literatura,
que, através de uma luta incessante de resistência literária à imposição de
formas poéticas e comportamentos provenientes de Portugal, «rasgam», «parem» os
seus próprios padrões, e, como se fossem sangue, derramam e contaminam a sua
esperança num futuro mais confiante dentro do panorama literário moçambicano.
Por sua vez, a forma verbal «latejam» sugere a ideia de pulsação, palpitação de
um país e de uma literatura prestes a parir.
A sexta
estrofe introduz outra novidade: o verso que se vinha repetindo ao longo do
poema no início, como se fosse um refrão, passa para o fim, dado que agora o
foco deixa de estar no tempo crepuscular e passa para a claridade, “no canto
livre”. A ideia de liberdade é suscitada logo no primeiro verso a partir da
expressão “canto livre e bravio”. Deste modo, estamos na presença de uma liberdade
cantada e já não domesticada, uma liberdade feroz e indomável, ideia sugerida pelo
adjetivo «bravio». Essa noção é acentuada pela imagem das aves, não umas quaisquer,
mas as da terra do «eu» poético.
A
sétima estrofe é introduzida pela conjunção «mesmo», traduzindo uma ideia de
que, ainda que o renascer de uma nação e de uma literatura seja um processo
difícil, são cinco horas da manhã, isto é, situa-se na transição para um tempo
que está por vir. O que transmite essa ideia de dificuldade? Desde logo, a
expressão «nuvens espessas», que cria a sensação de uma nuvem pesada,
carregada, prestes a chover, a derramar-se sobre a terra. A forma verbal no
gerúndio («toldando») reforça a imagem anterior de um clima instável, pesado.
Por seu turno, a imagem seguinte opõe-se à claridade trazida pela luz do sol
que, entre as nuvens espessas, fica no limite do nascer do dia e do fim da
madrugada.
A
oitava estrofe, uma sextilha, sugere a dificuldade da transição e aceitação do
dia para uma manhã que irão romper ou não da noite em incubação. A forma verbal
«irrompe» revela a violência e o ímpeto da manhã que está por vir, no entanto a
alvorada, a primeira manhã, pode surgir ou não da noite de incubação.
Na
última estrofe, o refrão regressa ao primeiro verso, destacando duas cidades: Rovuma
e Ponta de Ouro. Estas localidades situam-se nas áreas litorais do país, locais
onde a colonização se instalou inicialmente. A forma verbal «São», no presente
do indicativo, repete-se três vezes nesta estrofe, anunciando uma certa
instabilidade e uma certa falta de ação, dado que a situação de Moçambique, não
obstante a independência e a mobilização em favor da nação prestes a nascer –
em estado de efervescência –, ainda se encontrava num estado de transição, logo
de incerteza, o que justifica a dicotomia claro-escuro que se verifica ao longo
do poema.
Bibliografia:
- MADRUGA, Elisalva. Os percursos
da literatura moçambicana: da dor à alegria. Instituto de Antropologia da
Universidade de Coimbra.
- MOISÉS, Massaud. Guia Prático de
Análise Literária. 3.ª edição. São Paulo.
-CRUZ, Clauber Ribeiro. “Cinco Horas
da Manhã: a poesia moçambicana e o colonialismo português”.
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