Português: 12.º Ano
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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Análise do poema "Quando, Lídia, vier o nosso outono", de Ricardo Reis


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
                      Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa –
O amarelo atual que as folhas vivem
                      E as torna diferentes
 
                Esta ode surgiu na revista Presença em 16 de março de 1930.

                Ao gosto horaciano, Ricardo Reis usa o plural «nosso» e o vocativo para se dirigir a uma interlocutora presente em vários dos seus poemas, a sua amada Lídia. O outono que se aproxima, com tudo o que transporta já de inverno, e esquecido já do verão, indicia o acentuar da decadência e a proximidade da morte, em decorrência da passagem inexorável do tempo.

                Deste modo, o amarelecer das folhas tem ainda o tom dourado da vida; já é já o estio, mas também não é ainda o inverno, a morte. Neste contexto, é preciso aproveitar cada momento (carpe diem), mesmo que seja o último. O outono simboliza a decadência, a velhice; o inverno, a morte, e a primavera, o recomeço ou a renovação. Como esta última já passou, logo não lhe pertence (“… é de outrem” – v. 4), e o inverno (a morte) se aproxima, o sujeito poético assume que é necessário que tanto ele como a sua amada reservem “um pensamento (…) para o que fica do que passa – o amarelo atual”. É visível aqui o autodomínio, a contenção, o contentamento com o prazer relativo tão característicos da poesia de Ricardo Reis.

                No fundo, a mensagem do poema pode resumir-se a uma única frase: é preciso usufruir de cada momento que passa, sem lamentar o passado e sem se inquietar com o futuro. A transmissão desta mensagem é feita através de uma linguagem sóbria e um discurso lógico, no qual o pensamento prevalece sobre a forma, e assenta na simbologia das estações do ano e no predomínio do verso decassílabo (apenas os quarto e oitavo versos são hexassílabos), bem como no encavalgamento e no uso cuidado da pontuação, nomeadamente da vírgula e do travessão.

domingo, 4 de junho de 2023

Análise do poema "Segredo", de Miguel Torga


                 Este poema, da autoria de Miguel Torga, é constituído por duas estrofes – uma quintilha e uma oitava –, de métrica irregular e com rima emparelhada, cruzada e interpolada, segundo o esquema ABAAB / CDDCEEDC.

                Começando a análise pelo título, o nome «segredo» remete para algo que não é divulgado, que é do conhecimento de apenas um ou poucos indivíduos. No caso do poema, o segredo em questão é aquilo que a personagem – presumivelmente uma criança – guarda só para si, que apenas ela conhece: a descoberta de um ninho com um ovo dentro, do qual nascerá um passarinho de quem pretende ser amigo.

                É exatamente isso que anuncia o primeiro verso: “Sei um ninho.” O menino «descobriu» um ninho, conhece (“Sei”) – atenta-se na diferença entre «sei um ninho» e «sei de um ninho» – a sua localização, e essa informação é exclusiva dele. Os versos seguintes expandem a informação relativa a esse segredo: o ninho contém um ovo, redondinho (o diminutivo sugere a sua beleza e a perfeição), que, por sua vez, encerra dentro de si um passarinho (de novo o recurso ao diminutivo afetivo).

                O que torna o ninho tão importante para o sujeito lírico é precisamente o facto de conter um ovo com uma ave no seu interior. É essa expectativa de uma nova vida que está prestes a nascer que o entusiasma e desperta em si sentimentos de carinho, de ternura, de afetividade, indiciados – repita-se – pelo uso do diminutivo («redondinho», «passarinho»).

                A segunda estrofe mostra-nos a determinação do «eu» em, «egoisticamente», guardar o segredo só para si, mesmo que alguém, aparentemente, insista com ele para o revelar: “Mas escusam de me atentar: / Nem o tiro, nem o ensino”. Assim sendo, vai resistir à pressão para desvendar aos outros o seu segredo e tirar o ninho, ou seja, resistindo à tentação de retirar o ninho do local onde se encontra e de revelar a sua localização. De seguida, esclarece os motivos que estão na base dessa sua decisão. De facto, afirma querer ser «um bom menino», isto é, deseja agir corretamente, não revelando o ninho e a sua localização, para o proteger, porque receia que os «outros» lhe façam mal, lhe mexam, o perturbem, e quer ser amigo do passarinho que vai nascer. É fácil imaginar que, se o «eu» revelasse o seu segredo, todos a quem o revelasse seriam picados pela curiosidade de acorrer ao local e «perturbar« o ninho e a avezinha quando esta nascesse. Por outro lado, o passarinho deixaria de ser o seu amigo em exclusivo.

                Os dois últimos versos remetem para a liberdade: a avezinha voará pelos céus, espaço amplo, infindável e sem portões, limites, barreiras, e aí poderá fazer o pino, exatamente porque será livre para fazer o que quiser, incluindo virar-se de pernas para o ar.

                Este poema relaciona-se com outro texto da autoria de Miguel Torga, concretamente o conto “Jesus”: o assunto é o mesmo, isto é, a revelação de uma descoberta por parte de um menino – um ninho – e a sua atitude de respeito para com o ovo que contém e a avezinha que irá nascer.

                O conto narra a história de um menino que subiu a um enorme cedro e descobriu nela um ninho que tinha um ovo. De seguida, deu um beijo no ovo, que, de imediato, estalou e do seu interior saiu um passarinho. Este texto viu a luz do dia em 1940. Quinze anos depois, em 1955, nasceu Clara Crabbé Rocha, filha de Miguel Torga, que escreveu o poema “Segredo”, lembrando-se do conto: o primeiro verso (“Sei um ninho.”) é uma repetição exata da frase que o menino do conto solta durante a ceia com os pais.

                Ora, o ninho do poema, numa leitura biográfica, é o lar do escritor, e o ovo com o seu passarinho é a nova vida que nele existe: a filha. O ovo é redondinho, como a barriga de uma mulher em adiantado estado de gravidez. E, nos primeiros anos de vida, os pais são os melhores amigos dos seus filhos, aqueles a quem estes confidenciam os seus segredos e sonhos. Este pai, por sua vez, deseja a criar a sua filha em liberdade, fornecendo-lhe asas que lhe permitam voar e fazer o pino no ar.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre


             Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.

            O título do texto relaciona-o com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas composições.

            Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão combate o medo.

            A primeira estrofe dá-nos conta de uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina, governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.

            Por que motivo terá o «eu» selecionado estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala. Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.

            Deste modo, podemos deduzir que os ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo, etc.

            A segunda estrofe mostra a atividade e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato. Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e a situação vivida.

            A última estrofe reflete o poder transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é, todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país (Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.

            Deste modo, podemos concluir que este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.

            A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.

«”Albertina” ou “O inseto-insulto” ou “O quotidiano recebido como mosca”», de Alexandre O'Neill


             Este poema é constituído por oito estrofes: uma oitava, três tercetos, duas quadras e dois monósticos, com rima emparelhada e cruzada e métrica irregular.

            O seu tema é a arte poética, dando-nos conta de um sujeito poético que é poeta e discorre sobre o processo de criação poética, a inspiração para escrever. Se observarmos o título, bastante extenso para o que é usual em textos poéticos, observamos que se relaciona inequivocamente com o tema da composição: a criação poética e a inspiração.

            O sujeito poético abre o poema apresentando-nos o poeta – de forma humorística – sozinho (atente-se na reiteração da ideia) e à espera. De quê? O «eu» espera por “um minuto que seja de beleza” (v. 7), isto é, aguarda inspiração (para escrever). Essa espera está associada a uma certa expectativa, como é visível pela sua postura: “em abstração” (atente-se na alusão ao nariz e ao ato de dele tirar algo), com os cotovelos apoiados no tampo da mesa, com a cabeça voltada para baixo. A metáfora do verso 6 (“Onde o poeta é todo cotovelos”) intensifica a expectativa em que o «eu» poético está imerso e a demora em encontrar inspiração, um motivo para escrever, demora essa destacada pela referência ao nome “minutos” (repetido duas vezes). O último verso da primeira estrofe, uma metáfora (“o poeta é aos novelos”), iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», que exprime uma ideia de contraste com o que foi afirmado anteriormente, anuncia a insegurança e a indefinição que o caracterizam. Essa noção é desenvolvida na segunda estrofe, novamente anunciada pela mesma conjunção: o sujeito lírico sente-se inseguro e incapaz de dominar a «musa» (v. 10) que tantas vezes o inspirou de forma avassaladora: “aquela / Que tantas vezes arrastou pelos cabelos…” (metáfora). Recordemos que a musa era a divindade que, de acordo com a mitologia, presidia às artes e às letras, sendo a responsável pela inspiração dos poetas.

            A terceira estrofe coloca-nos perante uma nova figura: a mosca Albertina. Quem ou o que é ela? A mosca Albertina é um “inseto-insulto” (v. 13), isto é, algo que o atormenta, que compromete a já fraca inspiração do poeta. Antes, este tinha-a domesticada, ou seja, a inspiração surgia-lhe habitual e facilmente, porém, no presente, surge por sua iniciativa, “como um inseto-insulto, / Mas fingindo que o poeta a esperava…” (vv. 13-14). Recordemos que o nome Albertina, feminino de Alberto, deriva do vocábulo germânico “Adalbert”, resultado da junção de “adal” (nobre” e “berth” (ilustre, brilhante),que significava, portanto, “nobre ilustre, brilhante”.

            Por outro lado, Albertina possui uma dupla faceta: é inseto – mosca – e (quase) mulher. Na qualidade de mosca, ela incomoda o poeta, como os insetos incomodam os humanos, perturba-o, compromete a sua inspiração. “Albertina quer o poeta para si, / Quer sem versos o poeta.” (vv. 16-17). Enquanto mulher, ela sedu-lo, o que quer dizer que, em simultâneo, Albertina o afronta e seduz. E, apesar do apelo do sujeito poético para que ela o deixe em paz e, assim, permita que ele se inspire e escreva, mesmo que de forma imperfeita (“Que eu falhe neste papel” – v. 20), no “papel tão branco e insolente” – personificação, onde o poeta sabe que existe um verso belo que está, porém e de momento, ausente, pois falta-lhe a inspiração. O papel está “tão branco” (atente-se na intensificação sugerida pelo advérbio «tão»), porque a criatividade e a inspiração não surgem, logo o «eu» não cria, não escreve, e é “insolente” (personificação), ou seja, o papel é atrevido e desafia-o a escrever.

            O apelo intensifica-se no monóstico correspondente ao verso 22: “ – Albertina! eu quero um verso que não há!...”. No entanto, o inseto fica-lhe indiferente e, em vez de o inspirar, “Conjugal, provocante, moreno e azulado”, levanta voo, esvoaça por ali e aterra insultuosamente na folha de papel em branco. Atente-se na expressividade da quádrupla adjetivação do verso 23, que acentua a atitude provocatória de Albertina e sugere a existência de uma relação entre ambos marcada pela conjugalidade.

            Como consequência dessa atitude, que o leva a abstrair-se ainda mais da criação poética, o poeta “sai de chofre” (v. 27), isto é, repentinamente, e sente-se “desalmado”, ou seja, desinspirado, “por uns tempos” (v. 27).

            À semelhança do que sucede com vários outros poetas contemporâneos, Alexandre O’Neill reflete, neste poema, sobre a arte poética, só que neste caso estamos na presença de uma arte poética invulgar, dado que o ato de criação poética é aparentemente banalizado e vulgarizado, através do recurso a um tom humorístico que percorre todo o poema, da atitude do poeta e da forma como encara a inspiração.

            Deste modo, Alexandre O’Neill desconstrói humoristicamente, a imagem do poeta inspirado, desprovido das suas faculdades de criação poética e nega, em simultâneo, a ideia do poeta como um ser eleito, inspirado por natureza e produtor infindável e incansável de poesia.

            O processo é descrito num poema que podemos dividir em três momentos. O primeiro situa-se entre os versos 1 e 11, no qual o «eu» lírico retrata o poeta que reflete sobre o que escrever, esperando a inspiração, que tarda. O segundo abrange os versos 12 a 26 e neles é apresentada e caracterizada a mosca Albertina, que perturba o poeta, que a tenta repelir, em vão. O terceiro momento diz respeito ao último verso e retrata a “desistência” temporária do poeta, que abandona o espaço em que se encontra, desmotivado.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa


            Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.

            Na primeira estrofe, o sujeito poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo em que vive, que o oprime.

            Diariamente reduzida a uma coisa, um objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”) – a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito, aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição, nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma realidade que não o deixa respirar.

            A cidade, percecionada, pois, como extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e “sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.

            No final do dia, espera-o um quarto, uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia de quem pensa de modo diferente.

            Habituado a ser dirigido pelo “chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.

            No início da segunda estrofe, autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.

            Isto significa que existe um desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário. De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta de empregado”.

            Apesar de tudo, é no local de trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora), atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do “Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal encarcerado, tal como ele.

            A realidade é que, da janela do escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o quintal e distrai o dono com o seu canto.

            Domesticado como um animal numa jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso. O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver” por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do papel.

            A divisão interior que o conflito entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si mesmo.

            Cansado de não viver, mas da vida desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por razões diferentes.

            Na solidão do quarto, o funcionário “soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.

            Em suma, na segunda estrofe, o «eu» poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de “poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma lírica não participa.

            Apesar da sua condição de funcionário que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”, “namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto, beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu» faltam.

            No entanto, o sonho de libertação é impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o «eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”, sem as quais a vida se resume a nada.

            Em suma, neste poema de António Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético, tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade individual.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre


            Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.

            O título do texto relaciona-o com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas composições.

            Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão combate o medo.

            A primeira estrofe dá-nos conta de uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina, governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.

            Por que motivo terá o «eu» selecionado estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala. Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.

            Deste modo, podemos deduzir que os ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo, etc.

            A segunda estrofe mostra a atividade e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato. Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e a situação vivida.

            A última estrofe reflete o poder transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é, todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país (Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.

            Deste modo, podemos concluir que este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.

            A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

Análise do poema "O amor é o amor", de Alexandre O'Neill


             Este poema aborda a temática o amor, como o título indicia, em métrica irregular (que vai do verso dissílabo até ao decassílabo) e rima emparelhada e cruzada, com um verso branco ou solto (o oitavo).

            O amor é apresentado como algo intrínseco à natureza humana, algo absoluto e imaginativo, que oscila entre o mundo real e o onírico: “O amor é o amor – e depois?” – v. 1). Atente-sena repetição e interrogação presentes no verso 1, que mostram que o amor é algo natural na existência humana. Por seu turno, a repetição, no verso 3, da expressão «a imaginar» reforça a noção de que o amor é movido pela vertente emocional do ser humano.

            O «eu» poético está apaixonado e deseja o contacto físico com a pessoa amada (“O meu peito contra o teu peito, / Cortando o mar, cortando o ar”) por e com alguém que o faz sentir completo (“somos um? somos dois?”). Observe-se a expressividade da construção paralelística do verso 5, que realça o facto de o amor, para o sujeito poético, não possuir barreiras e ter uma força invencível, que é capaz de superar qualquer obstáculo, desafiando a própria natureza (representada, no verso, pelos elementos «mar» e «ar»).

            Por outro lado, o sujeito poético exalta o poder que o amor tem sobre si, distinguindo que, apesar de, fisicamente, haver dois corpos (“Na nossa carne estamos”), os seus espíritos unem-se num só (“somos um? somos dois?”). Para que este sentimento seja realizado, os amantes têm de ser livres e são-no(“Num leito / Há todo o espaço para amar.”). Atente-se na enumeração do verso 9, que realça a liberdade que existe entre o «eu» e o «tu» do poema.

            A fusão metafísica de ambos os espíritos apaixonados, depois da união física dos corpos, é perspetivada como o auge do relacionamento amoroso entre amos (“E trocamos – somos um? somos dois? / espírito e calor!” – vv. 10-11).

            Obedecendo a uma estrutura circular, o poema encerra com a repetição do verso que o inicia.
 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Análise do poema "Nihil Sibi", de Miguel Torga

             O título do poema é constituído por uma expressão latina que significa «nada para si», ou seja, indicia que o poeta é alguém cuja obra e produção se destina ao «outro».

            Este texto, constituído por uma singela quadra, abre com uma metáfora: “O Poeta é uma fonte:”, isto é, o poeta é uma fonte de poesia, faz nascer poesia. Por outro lado, o seu canto é um ato de abnegação e de altruísmo, como indicia o segundo verso: “Nada reserva para a sua sede;”. O seu papel é «dar-se», fazer nascer poesia e originar, de forma espontânea, o canto. Já o último verso apresenta-nos o poeta como alguém que está sempre vigilante (“E não dorme”), que tem uma postura interventiva e atenta ao que o rodeia e é infatigável (“nem para”). A sua atividade – a criação poética – é permanente e imutável.

            Em suma, o assunto do poema, em termos de figurações do poeta, aponta para o seu papel abnegado (enquanto criador de poesia).

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Análise de "Poema em Linha Reta"

            “Poema em linha reta” é um texto da autoria de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, um engenheiro de influência britânica, cuja obra enquanto poeta evolui do Decadentismo até à abulia e tédio, passando pelo Futurismo sensacionista.
            Neste poema, o sujeito poético começa por fazer uma afirmação confessional impactante: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Este dístico coloca-nos desde logo perante o tema que vai ser desenvolvido nos versos seguintes: a crítica às relações sociais e à falsidade e hipocrisia que as caracteriza. O «eu» observa que todas as pessoas suas conhecidas procuram passar uma imagem de perfeição, de triunfo e sucesso permanente, recusando qualquer hipótese de fracasso, derrota ou humilhação. De facto, essa gente nunca levou porrada, isto é, nunca foi “agredido” pelos outros ou pela vida, e não perde, é campeã em tudo; transmite uma imagem de triunfo e de sucesso. Note-se que o «eu» não afirma ter amigos, apenas conhecidos, o que justifica ao longo do texto pela dificuldade em se relacionar com as pessoas, porque são falsas e hipócritas. Ele socorre-se de adjetivação pejorativa para se autocaracterizar como um ser imperfeito, desde logo porque não se adequa às regras de etiqueta e às normas sociais e, por isso, é desprezado pelos outros. Ele assume-se como ridículo e cómico aos olhos dos demais, como um parasita, arrogante e mesquinho cobarde.
            Depois de denunciar, ironicamente, esta falsa imagem de perfeição dos outros, o sujeito poético, através de um registo coloquial, já anunciado no dístico inicial (“porrada”), enumera os seus defeitos e falhas e discorre sobre a sua condição de inferioridade social, ao assumir uma «persona» que não corresponde ao que a sociedade esperava. Assim, assume-se como alguém reles, porco, vil, parasita e sujo, o que significa que não procura dar de si uma imagem de homem perfeito, sério, bom; pelo contrário, chega ao ponto de assumir que não cumpre sequer as regras básicas de higiene que são esperadas: “porco”, “sujo”, sem “paciência para tomar banho”.
            E prossegue, afirmando-se como “ridículo”, “absurdo”, “grotesco” e “mesquinho” e que “tem enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta”, ou seja, que se sente humilhado por não saber como agir em público; é um socialmente inapto, questionando regras de etiqueta. A metáfora do verso 8 (“Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”) destaca o facto de o sujeito poético mostrar inaptidão no cumprimento das regras de etiqueta, o que o torna ridículo aos olhos da sociedade. Ele não é capaz de se relacionar com os outros e é maltratado por eles, não sendo capaz de os enfrentar, o que revela cobardia da sua parte (“tenho sido enxovalhado e calado”). Quando tenta responder, sente-se mais ridículo ainda: “Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda”. Por outro lado, o seu comportamento social inadequado é percecionado pelas criadas de hotel e pelos moços de fretes, que o desprezam quando deveriam trata-lo com algum respeito e deferência. A referência às criadas de hotel e aos moços de fretes acentua a dimensão irrisória do «eu» aos olhos da sociedade. Porquê? Estes indivíduos situam-se no nível mais baixo da hierarquia social, contudo eles mesmos consideram o sujeito poético um indivíduo ridículo.
            A sua vergonha acentua-se ao confessar a sua desonestidade, referindo-se às suas “vergonhas financeiras”, motivadas por pedir emprestado e não pagar, numa confissão de admissão de insucesso e ruína financeira. A seguir assume, de novo, a sua cobardia, a sua incapacidade de se defender e de lutar pela própria honra, preferindo “fugir” e desviar-se dos golpes/ataques alheios: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado”. Tudo isto o leva a confessar o seu comportamento estúpido e ridículo no contexto de uma sociedade pautada pelo sucesso, pelo cavalheirismo e pela cortesia, o isolamento e a solidão (por não estar à altura das expectativas e das normas sociais e reconhecer as suas falhas e insuficiências), o sentir-se excluído e à parte dos demais: “Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. Ele constata que não tem par no mundo, pois, quando revela todos os seus defeitos e imperfeições, diferencia-se do resto da sociedade, que apenas aparenta virtudes e sucessos, daí o seu isolamento e solidão, num mundo onde predomina o fingimento, até porque é o único a reconhecer referidos defeitos e imperfeições.
            Esta estrofe coloca-nos perante alguém inadequado à convivência social, incompreendido até pelo seu fracasso. Recorrendo à enumeração e, sobretudo, à ironia, o «eu» destaca o contraste entre os indivíduos que sentem a necessidade de existir uma aparência de grandeza e sucesso pessoal e o sujeito lírico e os seus fracassos, insucessos e defeitos.
            Fazendo uso de um esquema elaborado pela editora Santillana, podemos sintetizar o conflito entre o «eu» poético e as demais pessoas da seguinte forma:


            Estilisticamente, além da enumeração e da ironia, há a realçar o recurso à anáfora, que enfatiza a postura do «eu», e a repetição da expressão “tantas vezes”, que acentua o contraste entre o sujeito poético e os outros. De facto, ao contrário dos seus conhecidos (não amigos), o «eu» reconhece que frequentemente assume comportamentos que o tornam ridículo e até desprezível. Além disso, a presença dos advérbios de modo (“irrespondivelmente”, “indesculpavelmente”) salientam a recusa do sujeito lírico em procurar razões que justifiquem as suas atitudes indignas: ao contrário dos outros, não busca encontrar pretextos que justifiquem ou tornem o seu comportamento aceitável, optando antes por se assumir plenamente como é.
            A partir da estrofe seguinte, o sujeito poético deixa de lado a ironia e expõe o seu conflito de identidade e denuncia a falta de sinceridade e a hipocrisia reinantes: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”. Deste modo, o «eu» volta a destacar o facto de os «outros» procurarem transmitir uma imagem de triunfo e sucesso. Esta postura dos demais acentua a sua dificuldade em comunicar com eles, em virtude de fingirem ser perfeitos e só transmitirem o que lhes é conveniente.
            Perante este panorama, exprime o desejo de encontrar alguém, uma «voz humana», que se expresse como ele faz, revelando todos os seus defeitos e falhas. Mesmo quando assumem um ou outro fracasso, jamais o fazem com as suas grandes falhas, “são todos o Ideal”. Desta forna, o «eu» denuncia a sociedade por cultivar as aparências, por não admitir ou tolerar o fracasso, razão pela qual as pessoas sentem a necessidade de adotar uma postura infalível, bem marcada pelo recurso ao nome «príncipe», que traduz a tal postura inquestionável de alguém que ocupa a posição mais destacada entre os seus pares. O «eu» aproveita para ir mais além e proceder à distinção entre o erro humano – o pecado – e a miséria humana que transparece de uma vida caracterizada pelo ridículo de um fracasso recorrente que acarreta o desprezo da sociedade. Em suma, o «eu» manifesta o desejo de que os outros se libertem dessa necessidade de passar uma imagem ideal e perfeita e mostrem a sua dimensão humana. Para o sujeito, a perfeição dos outros associa-se não tanto a um caráter irrepreensível a nível ético, mas a uma imagem de virilidade que exclui todos os comportamentos considerados desonrosos, como, por exemplo, a cobardia. É por isso que os pecados e as atitudes violentas são inaceitáveis.
            A falsidade e a hipocrisia daqueles que, mesmo quando cometem erros ou sofrem adversidades, mantêm a dignidade, as aparências não comprometendo jamais a sua imagem pública. O sujeito poético recusa assumir o comportamento social adequado, que se espera de si, pois não acredita nele, e, assim, denuncia a hipocrisia que está na base deste comportamento e que tem como consequência a sua exclusão de uma sociedade que prima pelo sucesso aparente. Por outro lado, o poema permite-nos entrever alguns dos costumes sociais da época em que foi escrito (primeiras décadas do século XX), nomeadamente certas normas e etiquetas em consonância com o desenvolvimento da indústria e a ascensão do capitalismo, que trouxeram consigo alguns valores menos humanos e mais orientados para o luxo e o consumismo.
            A sociedade atual, em pleno 2022, mantém estes traços denunciados por Campos no poema. Por exemplo, a vaidade, a falsidade ou a hipocrisia são traços que encontramos todos os dias nas mais diferentes situações. De igual modo, a solidão, o isolamento ou o ostracismo a que é votado quem não pensa ou não se comporta como “é suposto” são bem comuns, com fenómenos como o «bullying» a atingir níveis inusitados, muito também graças à explosão das chamadas redes sociais. A vaidade, o culto da personalidade, o egocentrismo, a multiplicação de heróis são recorrentes: toda a gente quer aparecer, ser «famosa», mesmo que recorrendo a métodos ou adotando comportamentos questionáveis, como, por exemplo, a exposição exaustiva da vida privada; atores, modelos, cantores, em suma, artistas em geral apresentam-se muitas vezes como seres superiores aos comuns mortais em termos financeiros, de poder ou força, de tal forma que parecem pairar como os deuses do Olimpo.
            O poema prossegue com uma interrogação do sujeito lírico: “Onde há gente neste mundo?” Esta interrogação retórica encerra a denúncia da profunda solidão que persegue o indivíduo no contexto da vida moderna, já então marcada pelos avanços sociais e tecnológicos. Porém, a realidade é que não é apenas o «eu» que é humano; os outros também têm comportamentos menos dignos (“Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”), só que não são sinceros nem honestos em relação aos seus fracassos, falhanços e vulnerabilidades: “Poderão as mulheres não os terem amado, / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!” O importante é sempre o culto das aparências, de uma imagem de sucesso, e não parecer ridículo.
            Já o «eu» assume ser ridículo, mas, ao contrário dos outros, não foi traído, e só é ridículo exatamente porque não esconde, antes confessa os seus fracassos e reconhece as suas debilidades. Esta postura diferente tem como consequência a impossibilidade de comunicar com os demais indivíduos, que designa como seres «superiores» devido à imagem irreal e falsa: “Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?”
            Socorrendo-nos novamente do trabalho da editora Santillana, podemos sintetizar a questão da crítica social da seguinte forma:


            Através deste poema, Álvaro de Campos critica o vazio, a falsidade e a hipocrisia de uma sociedade que vive de aparências, bem como a ausência de espírito crítico das pessoas em geral, a quase obsessão de certas pessoas de granjear o respeito dos outros e o receio ou a incapacidade de assumir as suas falhas e os seus defeitos. Por outro lado, há uma clara tentativa de suscitar nos outros o culto da sinceridade, da honestidade, da transparência e combater as ilusões de grandeza, destinadas a alimentar o seu ego. É claro que a intenção de Álvaro de Campos passa por denunciar a hipocrisia da sociedade do seu tempo, nomeadamente das pessoas que escondem os seus defeitos e falhas, mostrando-se como seres imaculados, de sucesso e perfeitas.
 
            O título do poema é irónico e antecipa a feição crítica do texto, que visa os indivíduos que vivem sempre em “linha reta”, isto é, que vivem como se a vida não tivesse qualquer tipo de fracassos ou humilhações e fosse marcada por vitórias constantes. A existência não é uma “linha reta”, antes é torta, feita de altos e baixos, de erros e acertos, de imperfeições e contradições. Ao longo do texto, o «eu» procura desconstruir a imagem de triunfo constante, mostrando que, na realidade, não passa de uma imagem falsa e hipócrita.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Análise do poema "Viagem", de Miguel Torga

 A Viagem

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar…

(Só nos é concedida

Esta vida que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos)


Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais: à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura…

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga, in Câmara Ardente


Sempre vi neste poema uma espécie de guia para a minha salvação pessoal; tal como diz o sujeito poético no primeiro verso, antes de chegar ao lugar que nos destinamos, é preciso aprontar «o barco da ilusão», expressão metafórica que designa o sonho ao mesmo tempo que valoriza o alcance do mesmo através da ação, do movimento voluntário em direção à concretização do que nos propomos obter na vida. Portanto, não é sentados confortavelmente que lá vamos chegar: há que “aparelhar” o nosso “barco”, há que carregá-lo com os nossos sonhos e, muito importante, há que “reforçar” a «fé de marinheiro»; se é preciso que “reforcemos” a fé em conseguir aquilo que acreditamos que nos vai dar sentido à vida, é porque uma ação com esse objetivo precisa de fé “extra” em nós mesmos e nas nossas capacidades; a fé em nós mesmos é difícil de conseguir quando tudo à nossa volta nada em desânimo e, também, quando já não é a primeira vez que tentamos levar uma viagem a bom porto e fomos obrigados a voltar para trás, nos vimos de novo no cais de onde partimos animados do desejo de fugir à «paz tolhida», ao tédio, ao já sobejamente conhecido, que perdeu a capacidade de nos fazer sentir vivos.

É imprescindível o tal reforço da “fé” também porque os nossos sonhos se situam «longe», sabemos que são difíceis ou até impossíveis de transformar em realidade e, como se isto não bastasse, «e traiçoeiro o mar». Somos nós os nossos traidores sempre que desistimos face às dificuldades que entrevemos sentados no cais a mirar esse horizonte longínquo que preferíamos que fosse já ali, ao virar da esquina; e mesmo quando todos e tudo nos parecem trair-nos, continuamos a ser nós os nossos traidores pelo facto de não nos sabermos ouvir e persistir em valorizar as opiniões alheias, as ideias correntes sobre o significado da felicidade ou do que é uma vida com sentido. E então, vivemo-nos a nós por intermédio dos outros. Esta será, penso eu, a nossa grande fraqueza e a razão principal que nos mantém cativos no velho cais à espera de tempos melhores que sabemos que não virão porque nada vem se não o formos buscar.

Entre parêntesis, o sujeito poético escreveu a razão pela qual nos devemos dar a tanto trabalho e enfrentar a pior dificuldade de todas, mesmo antes de fazer face ao mar encapelado: nós próprios; por isso, altera o pronome pessoal «eu» para «nós», sugerindo que o «eu» se dilui entre a massa humana da qual faz parte e que partilha com ela idênticos dramas, busca idênticas soluções para apaziguar a consciência da efemeridade a que todos estamos condenados porque «Só nos é concedida/ esta vida que temos» e encontrar, nesse curto tempo de vida, na maior parte do qual nos limitamos a tatear, insatisfeitos, em busca de algo de que precisamos e que, precisamente porque só temos uma vida para experimentar a aventura de estar vivo, nos faz viver sem rumo definido e, sobertudo, nos obriga a fazer escolhas sem saber se essas terão sido as mais convenientes.

Como só temos direito a uma vida, a nossa opção principal devia consistir em dedicar o tempo que nos foi concedido a ressuscitar um prazer de viver que niguém, exceto nós próprios, sabe o que é, ainda que possa ser mais pressentido do que sabido, como é «o velho paraíso/ que perdemos»; só se perde o que em tempos se possuiu e cada um de nós sofre devido a isso que já sentiu e deixou de sentir, talvez porque se foi deixando ficar para trás na alienação dos dias, acabando por se esquecer do seu projeto pessoal, à força de querer, consciente ou inconscientemente, viver segundo ideias e valores que não são os seus. A perda do que temos de mais genuíno paga-se caro e por isso é preciso “reforçar” «a fé de marinheiro» antes de “A Viagem”.

A determinação do sujeito poético é contagiante: «Prestes, larguei a vela/ e disse adeus aos cais: à paz tolhida.» É preciso resistir à tentação de olhar para trás e seguir, mesmo sabendo que nos espera «a revolta imensidão» do mar da vida desconhecida que vamos ter que enfrentar e, mesmo sabendo que perigos vários nos podem surpreender, tudo é melhor que apodrecer sentado no cais. É certo que não somos mais que «uma errante e alada sepultura» porque é essa a nossa condição e a ela não podemos fugir: somos mortais e a cada dia que passa mais nos aproximamos da morte; andamos sem rumo definido porque vivemos pela primeira vez e não conhecemos aonde nos levam os caminhos que escolhemos. Porém, cada um de nós tem um projeto para cumprir e esse pode tornar-se o nosso guia de orientação, se tivermos ânimo para levar a bom porto a nossa viagem.

Finalmente, há que ter lucidez e saber que nada, mas mesmo nada estará algum dia assegurado para nós, por muito que o desejemos; mas a escolha é nossa, esta, pelo menos, ninguém no-la tira: podemos escolher viver eternamente na cepa-torta, entediados de morrer até morrer ou podemos aceitar a aventura, sabendo que «em qualquer aventura,/ o que importa é partir, não é chegar.» Ora, ninguém se sente realmente vivo sem sonhos para concretizar e, pensando bem, quem os quer concretizar? Depois de realizados, os sonhos morrem de morte natural, portanto, sonhemos e partamos em busca disso que nos faz sentir vivos, tenhamos a coragem de deixar o cais sem a certeza de encontrar um porto de abrigo; todos os portos de abrigo são provisórios, mas nós somos gente do mar, eternos marinheiros.


A análise - brilhante! - não é nossa, mas antes foi retirada deste blogue [atena2010], infelizmente entretanto descontinuado.

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