Português: Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral


             O sujeito poético aborda o tema da ausência das mulheres na História oficial e imaginária de Portugal e da Inglaterra, como fica bem evidente nos versos seguintes: “Não há rainhas, não. / Quando se fala em mitos, é sempre Artur / ou D. Sebastião”. Esta referência consecutiva aos reis Artur e Sebastião não é casual, dado que o mito construído em torno do soberano português se assemelha imenso ao do monarca de Camelot, na figura do rei que iria regressar para resgatar a pátria.

            Ao longo do poema, o «eu» enumera reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana (fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –, seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima – a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem, serviria para construir as naus das Descobertas.

            Por outro lado, o sujeito poético parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História, Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda, enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de Avis e da perda da independência nacional.

            A ausência da mulher assume particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).

            As rainhas deveriam ser, entre as mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos, daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de receber”.

            Voltando ao poema, a única figura feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante, neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que, através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido. Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas, graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de mandar, foi mais que homem”.

            É frequente, quando as mulheres que lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher (apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará, eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido, durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46). Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.

            Perante isto, o sujeito poético parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo), constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio (Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito recentemente.

            Note-se, porém, que num outro poema, intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada no auge da sua beleza.

 

Bibliografia:

• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.

• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens: tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.

WILLMER, Rhea, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português.
 

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