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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Fontes de Hamlet


             O teatro foi sempre uma arte colaborativa. Na época de Shakespeare, uma companhia de reportório não poderia esperar que um dramaturgo escrevesse no vácuo. A natureza da programação na qual uma nova peça poderia ser encomendada semanalmente, exigia a colaboração dos dramaturgos. Os ingleses do final do século XVI e início do XVII emprestavam livremente material uns aos outros e partilhavam críticas e edições. Hamlet, à semelhança das outras grandes obras atribuídas a Shakespeare, representa o seu trabalho, mas também mostra muitas contribuições de atores, diretores, etc., que sabiam que partes de uma peça deveriam deixar ou retirar.

            Como os gregos, o público isabelino e jacobino frequentava o teatro para ver peças que já tinham visto várias vezes ou que se baseavam em histórias tão familiares para ele quanto as histórias das suas próprias famílias. Assim, Shakespeare baseou o seu Hamlet numa popular saga escandinava que existia há mais de cem anos e que atores de toda a Europa haviam representado em anteriores manifestações à década de 1550.

            Em Newington Butts, um antigo vilarejo, The Lord Chamberlain’s Men (uma companhia teatral para a qual Shakespeare escreveu durante a maior parte da sua carreira) representou uma peça anterior cuja temática era a vingança, dirigida por Henslowe, em 9 de junho de 1594. Os estudiosos designam habitualmente este Hamlet e Ur-Hamlet e acreditam que o seu autor seja Thomas Kyd, um brilhante dramaturgo contemporâneo de Shakespeare. Não é conhecida qualquer cópia do Ur-Hamlet nem evidências concretas de que Kyd realmente escreveu a peça, contudo a história de Hamlet apresenta grandes semelhanças com a obra-prima de Kyd, The Spanish Tragedy, que múltiplos críticos acreditam ser uma versão aperfeiçoada do Ur-Hamlet.

            Crê-se, por outro lado, que tanto Kyd como Shakespeare terão lido Historia Danica, da autoria de Saxo Grammaticus por volta de 1200, uma antologia de lendas e mitos de origem nórdica, traduzida e popularizada em língua francesa por Belleforest em 1570. Thomas Pavier publicou uma tradução em inglês da versão de Belleforest da história de Hamlet em 1608, sob o título The Hystorie of Hamlet.

            No reconto de Belleforest da velha história, que tem lugar nos dias anteriores à chegada do Cristianismo à Dinamarca ou à Inglaterra, o público conhece o assassinato do rei Hamlet e o novo monarca afirma que o matou enquanto agia em defesa da rainha. Hamlet é um jovem que só pode fingir cuidar de si mesmo. Embora admire a verdade, não consegue ver além do seu espírito vingativo e exibe uma crueldade extrema. Nessa versão, Hamlet vai para a Grã-Bretanha, onde se casa e vive com a sua esposa, a filha do rei inglês, durante um ano. A notícia da morte de Hamlet chega ao rei da Dinamarca, que dá uma festa para comemorar, porém ele aparece quando a festividade começa, embebeda a corte e incendeia o palácio, matando imediatamente o rei.

            A peça em que Shakespeare baseou Hamlet era um conto sangrento pleno de som e de fúria com conotações cruas e selvagens. Embora o derramamento de sangue permaneça na peça do autor de Romeu e Julieta, a realidade é que ele refinou o texto, tornando-o poético e cheio de reflexões sobre o significado da vida, da morte, da eternidade, dos relacionamentos, da hipocrisia, da verdade, da existência de Deus e quase tudo o que diz respeito à humanidade. No entanto, o facto de a personagem do Hamlet de Shakespeare ser mais refinada cria um problema para quem fosse representar a peça.

            Shakespeare escreveu a peça de vingança “standard”, mas de uma forma totalmente nova. A tragédia de vingança era muito popular na época do dramaturgo e girava em torno de um herói que estava destinado a vingar um erro. Tal como os seus modelos da tragédia romana de Séneca, os heróis e vilões eram dramaticamente loucos, melancólicos e violentos. As peças eram gráficas e sangrentas. Shakespeare, sendo um pensador original, refinou a sua obra, criando novas tensões e redimensionando algumas das velhas questões.

            Se a obra fosse uma verdadeira peça de vingança, Hamlet teria agido mais cedo, ou seja, teria liquidado o rei no início, com o resto da peça elaborando sobre o que aconteceu após a morte de Cláudio. Ao não agir com mais celeridade, Hamlet leva-nos a refletir sobre a sua verdadeira motivação. Ele tem todas as oportunidades de matar o rei desprotegido, mas Cláudio vive. Os obstáculos que impedem o homicídio não são físicos, o que constitui um problema para os críticos e intérpretes. Eles dependem largamente da cultura de onde o intérprete provém; obstáculos que parecem óbvios para os leitores/públicos modernos nunca ocorreram aos do século XVI.

            O dramaturgo escreveu para um público que tanto assistia às suas peças como a lutas de ursos ou a execuções públicas. Não se tratava de um público intelectual; apenas desejava observar um protagonista a agonizar com palavras bonitas e insinuações sexuais sobre o dilema humano.

Fixação do texto de Hamlet


             Os estudiosos baseiam as edições modernas de Hamlet nas três versões da peça publicadas em 1623, duas das quais surgiram ainda em vida do autor e a terceira, sete anos após a sua morte.

            O First Quarto (assim chamado porque a peça foi impressa em papel que foi dobrado em quatro partes) é de difícil leitura. Ele contém mais 240 linhas do que a versão seguinte (o Primeiro Fólio), mas é importante, pois constitui a primeira publicação da atual versão da peça.

            Nalguns passos, a escrita de First Quarto é tão pouco polida e amadora que faz os especialistas acreditarem que esta edição é muito pobre e repleta de erros, concebida como um roteiro de representação corrigido e editado por um ator.

            A edição do Second Quarto de Hamlet, publicada em 1604, usou uma edição mais afinada como base: John Heminge e Henry Condell, membros da companhia de Shakespeare, compilaram o Primeiro Fólio combinando o texto do Second Quarto com notas atualizadas do gerente de palco.

            Assim, os estudiosos baseiam os textos modernos em grande parte – ainda que indiretamente – no texto de Second Quarto.

Primeira edição e representação de Hamlet


             A primeira referência clara àquilo que conhecemos como Hamlet, a célebre obra de Shakespeare, surge no “Stationers’Register” (um livro de registos da Stationers’Company de Londres, uma empresa que regulamentava as várias profissões associadas à indústria editorial, e que se tornou essencial para o estudo da literatura inglesa de final do século XVI e do século XVII), de 26 de julho de 1602, como uma peça chamada The Revenge of Hamlet Prince [of] Denmark. Nesse artigo, o autor afirma que a peça tinha sido recentemente encenada por Lord Chamberlain.

            Na sua lista de peças representadas em Londres, publicada em 1598, Francis Meres não faz qualquer referência a uma peça intitulada Hamlet, mas uma nota presente na edição de Gabriel Harvey da obra Chaucer – Chaucer foi considerado o “pai” da literatura inglesa – menciona o Hamlet. Vários estudiosos questionam a data em que essa noite foi escrita, porém a maioria concorda que Shakespeare publicou a peça depois de 1601 e antes de 1603. The First Folio, a primeira edição impressa das obras do escritor, publicada em 1623, classificou as peças como Comédias, Histórias e Tragédias.

            William Shakespeare escreveu as suas grandes tragédias – excluindo Romeu e Julieta, que não é, estritamente, uma verdadeira tragédia – entre 1601 e 1606 e, aparentemente, Hamlet foi escrita primeiro. Seguiu-se-lhe Otelo (1604), Rei Lear (1605/6) e Macbeth (1606).

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Análise da Cena 3 do Ato II de Frei Luís de Sousa

 
Nesta cena, Manuel de Sousa, logo na sua primeira fala, desafia o Destino: “Mas vamos: não dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há de ser destas paredes, é unção da casa: que isto é quasi um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Estas palavras despretensiosas e risonhas cortam o tom solene, quase de sermão, com que Manuel de Sousa, momentos antes, interpretara a “grande propensão (da filha) para achar maravilhas e mistérios nas coisas mais naturais e singelas”, e lhe dera uma interpretação teológica sobre os segredos inefáveis de Deus. Estas palavras possuem, contudo, um sentido oculto, talvez até de trágica ironia: com elas, mais uma vez Manuel de Sousa desafia o Destino. E este pega-lhe nas palavras tão imprudentemente proferidas: Manuel de Sousa terá de renunciar a tudo e vestir o hábito de S. Domingos.
 
Na primeira fala, Manuel de Sousa procura persuadir Maria de que não faz sentido acreditar em presságios, dizendo-lhe que a única coisa que não se pode explicar é a Fé; tudo o resto deve ser analisado à luz da razão.
 
Prossegue nesta cena o conflito de Manuel de Sousa com D. João. Ele louva as nobres qualidades de alma deste, a sua grandeza e valentia, a força de vontade, serena, mas indomável, que  nunca foi vista mudar, mas a realidade é que Manuel entrou naquela casa, está no ambiente em que D. João vivera com D. Madalena, aparentemente como senhor da casa, na ambígua situação de usurpador, de intruso.
 
De seguida, Manuel de Sousa realça a reação de D. Madalena (“estremece”) sempre que ouve falar no primeiro marido. Ele atribui esta atitude ao respeito que ela teria pela memória de D. João, não se apercebendo de que, na verdade, “estremece” por causa dos seus receios relativamente ao destino de D. João de Portugal.
 
Presságios

As palavras de Manuel de Sousa a propósito de parecer um frade constituem um novo indício de fatalidade: “Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Sem saber, Manuel de Sousa antecipa, simbolicamente, o desfecho da peça, altura em que D. Madalena e ele ingressarão em conventos da Ordem de S. Domingos.
 
A comparação irónica de Manuel de Sousa a um pregador – “(…) não dirão que sou da Ordem dos Pregadores?” – indicia a tomada do hábito.
 
A referência à capela: “Ainda não viste daqui a igreja? É uma devota capela desta. E todo o tempo tão grave! Dá consolação vê-la.”. Será nela que Manuel e Madalena tomarão o hábito.
 
A resposta de Manuel à fala de Maria, que afirma ter pena de D. João ter morrido na batalha de Alcácer Quibir: o pai lembra-lhe que, se ele estivesse vivo, ela não existiria e a família seria destruída, o que deixa Maria angustiada: “Manuel – Mas se ele vivesse… não existias tu agora, não te tinha eu aqui nos meus braços. / Maria (escondendo a cabeça no seio do pai) – Ai, meu pai!”. Isto indicia o desfecho trágico: a alusão ao facto de a vida de D. João implicar a não existência de Maria. Se, no passado, o regresso do cavaleiro inviabilizaria o seu nascimento, no presente, acarretará a sua morte, ou seja, ela sofrerá a vergonha de ser filha ilegítima.
 
A comparação do palácio de D. João a um convento – “isto é quase um convento aqui” – e a fala “a morte – e a vida que vem depois dela tão diante dos olhos sempre “ - antecipam uma mudança na vida da família e antecipam o desfecho da obra: é ali que Manuel e Madalena vão professar e tomar o hábito.

Análise da Cena 2 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Assunto: Manuel de Sousa Coutinho revela a Maria a identidade do retratado (D. João de Portugal) e aconselha a filha a dedicar-se mais a atividades próprias da sua idade.
 
Esta cena é uma continuidade da anterior: Maria tinha questionado Telmo sobre o retrato de D. João; Telmo é evasivo e não a elucida; Manuel de Sousa entra em cena e é ele que lhe responde, sem subterfúgios.
 
De facto, Manuel de Sousa Coutinho entra em cena e revela a Maria a identidade do cavaleiro do retrato (“Aquele era D. João de Portugal, um honrado fidalgo e um valente cavaleiro.”), confirmando as dúvidas da filha: “Bem mo dizia o coração!” Esta exclamação confirma as premonições de Maria, visto que, sem ninguém lho afirmar, já sabia que o retrato era de D. João de Portugal.

O fidalgo refere-se a D. João de forma semelhante à que fizera na cena 8 do Ato I: elogia e admira as suas qualidades e não tem quaisquer ciúmes (afinal, morto ou não, tinha sido o primeiro marido de D. Madalena).

Este comportamento contrasta com o de D. Madalena, que receia o passado e sente uma culpa de que não consegue libertar-se. Pelo contrário, Manuel de Sousa não tem nada que o faço sentir-se culpado e para si o passado é apenas isso – o passado. Admira-o, respeita-o, mas não o receia.

 
Maria não reconhece o pai pela voz, apenas quando o vê, porque se encontrava obcecada pela imagem de D. João.
 
Manuel de Sousa veio a casa de dia, embora encoberto com uma capa e um chapéu. Anda escondido para escapar à perseguição dos governadores. A afronta dos incêndios leva a que tenha de ir a sua casa disfarçado e de forma oculta. Perante a preocupação e a inquietação da filha (“Mas de dia!... Não tendes receio, não há perigo já?”), Telmo tranquiliza-a, dizendo-lhe que o maior perigo de represálias por parte dos governadores castelhanos já tinha passado: “(…) sei pelo senhor Frei Jorge que está, se pode dizer, tudo concluído.”
 
Mais uma vez, Maria revela ser uma jovem marcada pela doença: as mãos quentes e a testa a escaldar (hipérbole) de febre são sintomas de tuberculose. Tal como sucede noutros passos da obra, o pai pede-lhe que não pense tanto, que se divirta. De facto, os progenitores consideravam que a reflexão em excesso e o estudo a debilitavam ainda mais. Na realidade, Maria dedicava-se imenso aos estudos, lia muito, questionava tudo, o que era invulgar para a sua idade. Por outro lado, era uma jovem doente e a falta de distrações, de brincadeiras adequadas à sua idade acentuam a sua debilidade. Além disso, os estudos eram ocupação de homens, não de mulheres, mesmo aristocratas, que apenas deviam saber o necessário para a sua condição na época: bordar, tocar harpa, organizar o trabalho dos serviçais.
 
Retrato de Maria
 
            Maria confirma nesta cena e na anterior que é uma criança curiosa, precoce e perspicaz, com uma intuição apurada: “(…) é que eu sabia de um saber cá de dentro; ninguém mo tinha dito, e eu queria ficar certa.” Note-se, por exemplo, que ela não sabia de quem era o retrato, mas parecia saber que pertencia a D. João de Portugal, o dono da casa, como se tivesse o dom da adivinhação, daí que o pai lhe chame «feiticeira» depois de a ouvir dizer que “sabia de um saber cá de dentro”.
 
Em determinado momento da cena, Manuel de Sousa deixa de tratar a filha por tu e dirige-se-lhe por você (“Ah! você sabia e estava fingindo?”). Esta mudança de tratamento constitui uma repreensão carinhosa, visto que Maria questionou Telmo insistentemente para saber quem era a figura retratada, colocando-a até numa posição desconfortável, mas, logo de seguida, confessou que já sabia de quem era o retrato.
 
Retrato de Manuel de Sousa
 
            Manuel mostra ser bom pai, atento (“esta testa”, “Escalda!”), preocupado com a filha e o resto da família. Por outro lado, demonstra ser franco e honesto, pois não esconde a identidade do retratado no quadro, falando dele abertamente. Além disso, é uma pessoa culta, como o reconhece Maria (“Manuel – Poetas e trovadores padecem todos da cabeça…” / “Maria – E então pata que fazeis vós como eles? Eu bem sei que fazeis.”), e revela uma profunda fé (“Valha-te Deus, Maria!”).

Características trágicas da cena

Agón: o conflito de D. João com Maria, que se manifesta nesta cena (tal como na anterior) nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que esta perscruta as palavras e as meias palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato.

Resumo da ação de Hamlet


             O enredo da peça tem início logo após a morte do rei da Dinamarca.
            Numa noite escura de inverno, um fantasma deambula pelas muralhas do castelo de Elsinore, na Dinamarca. Descoberto primeiro por um par de vigias e depois por Horácio, o fantasma parece-se bastante com o recentemente falecido rei Hamlet, cujo irmão, Cláudio, herdou o trono e se casou com a cunhada – a viúva do monarca e mãe do príncipe Hamlet –, a rainha Gertrude.
            Horácio conta ao amigo Hamlet o avistamento do espectro e ambos decidem ir ao seu encontro. O jovem príncipe fala com o fantasma e este diz-lhe que é, efetivamente, o espírito do seu pai e que não consegue descansar em paz, porque foi assassinado por Cláudio, que o envenenou enquanto dormitava. Posteriormente, ordena-lhe que vingue a sua morte, mas poupe a mãe. Ele está condenado durante algum tempo ao Purgatório e a errar pela terra à noite. Com a chegada do amanhecer, desaparece.
            Hamlet questiona-se se o fantasma é real: e se se tratar de um agente do demónio enviado para o tentar? Ele tinha acabado de regressar da Alemanha, onde estudava, após tomar conhecimento da morte do pai. Enlutado, fica desesperado com o segundo casamento apressado da mãe, não compreendendo como superou a dor da perda e da viuvez e se casou com o irmão.
            O príncipe Hamlet procura cumprir a promessa e vingar a morte do pai, mas, por ser contemplativo e pensativo por natureza, hesita e entra num estado de profunda melancolia e até de aparente loucura. Cláudio e Gertrude preocupam-se com o comportamento errático do príncipe e procuram descobrir a causa do mesmo. Assim, encarregam dois amigos de Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern, de o vigiar. Entretanto, Laertes, filho de Polónio, conselheiro do rei, busca a bênção do monarca para regressar a França. Cláudio aprova e, de seguida, castiga Hamlet pela forma imprópria como chora a morte do pai, após o que ele e Gertrude negam o seu desejo de retornar à Alemanha, insistindo que permaneça em Elsinore.
            Enquanto se prepara para partir para França, Laertes confronta a sua irmã, Ofélia, sobre o seu relacionamento com Hamlet e adverte-a que não leve a sério a afeição do jovem príncipe. Polónio ouve a conversa e, quando Laertes sai, ordena à filha que evite Hamlet. A ordem deixa a jovem com o coração partido, mas declara obediência ao pai.
            Passado algum tempo, Ofélia conta a Polónio que teve um encontro perturbador com Hamlet, que lhe pareceu confuso. O pai sugere que o príncipe pode estar louco de amor pela sua filha e conta o sucedido ao rei e à rainha, que estão reunidos com Rosencrantz e Guildenstern e com Voltemand e Cornélio, estes últimos os embaixadores que Cláudio enviou à Noruega para dialogar com Fortinbras, o príncipe norueguês, e o convencer a desistir dos planos para atacar a Dinamarca (a tarefa parece ter sido bem sucedida, pois a “Velha Noruega” ordenou que Fortinbras abandonasse  intenção de invadir a Dinamarca; ele obedece e vira a sua atenção para a Polónia).
            Um grupo de atores ambulantes chega a Elsinore, e a sua chegada desperta em Hamlet um plano para testar a culpabilidade do tio. O grupo interpreta uma peça chamada O Assassinato de Gonzago. O jovem príncipe procura os atores e pede-lhes que representem uma versão da peça, à qual ele acrescentou uma cena muito parecida com aquilo que imagina que tenha sido o homicídio do seu pai às mãos de Cláudio. Hamlet chama à peça reformulada A Ratoeira. Se o tio for culpado, certamente reagirá e, assim, denunciar-se-á.
            Entrementes, Cláudio e Polónio escondem-se e espiam um encontro entre Hamlet e Ofélia. Quando esta lhe devolve os presentes que ele lhe oferecera, o príncipe reage de forma descontrolada, muito triste e dececionado. Ofélia fica devastada com esta reação, enquanto Cláudio realiza que Hamlet constitui uma ameaça para si, pelo que decide enviá-lo para Inglaterra, para se livrar da sua presença ameaçadora. Polónio concorda, mas sugere que, antes, façam com que Gertrude fale com o filho após a peça, que será representada naquela noite, enquanto eles os dois escutarão a conversa em segredo.
            Nessa noite, a companhia de teatro apresenta-se na corte de Cláudio. Quando o momento do assassinato é representado, o monarca fica em pânico, levanta-se e sai da sala. Hamlet e Horácio concordam que esta reação prova a sua culpa. Após o término da peça, Cláudio encontra-se com Rosencrantz e Guildenstern e encarrega-os de levarem o príncipe para Inglaterra. Quando eles saem à procura de Hamlet, Cláudio fica só e confessa o crime num solilóquio. Tenta rezar, mas constata que é incapaz de se arrepender, visto que não está disposto a abdicar das relíquias obtidas com o homicídio: o trono e a esposa. Hamlet passa nesse exato momento e vê Cláudio de joelhos. Pensa em matá-lo ali mesmo, todavia decide não o fazer, já que acredita que assiná-lo enquanto ora enviaria a alma do tio para o céu. Hamlet considera que isso não seria uma vingança adequada e decide esperar. Por seu turno, Cláudio, alheio a esta cena, com medo da loucura do sobrinho e temendo pela sua segurança, ordena que seja enviado para Inglaterra imediatamente.
            Hamlet, de seguida, vai ao encontro da mãe nos seus aposentos, enquanto Polónio se esconde atrás de uma tapeçaria. O jovem confronta Gertrude sobre a sua participação na morte do rei Hamlet. No decurso da conversa, Polónio faz barulho e revela a sua presença, mas não a identidade, pois continua escondido. Acreditando que é Cláudio quem está lá escondido, o príncipe saca da sua espada e apunhala o tecido, matando Polónio. Depois sai, arrastando o corpo do morto consigo. Este episódio trágico convence Gertrude de que o seu filho é realmente louco.
            Por causa deste crime, Hamlet é imediatamente enviado para Inglaterra com Rosencrantz e Guildenstern. No entanto, o plano  de Cláudio para o sobrinho é mais sinistro, pois, além do banimento, envia ordens seladas, através dos dois colegas de estudo de Hamlet na Alemanha, ao rei inglês, para que este mate o príncipe. No entanto, este descobre a trama e organiza o enforcamento de Rosencrantz e Guildenstern.
            Ofélia, após a morte do pai e confrontada com o comportamento de Hamlet, enlouquece de dor e afoga-se no rio enquanto entoa tristes canções de amor, lamentando o destino de um amante rejeitado. O filho de Polónio, Laertes, que está em França, regressa à Dinamarca para vingar a morte do pai. Cláudio convence-o de que Hamlet é o culpado do falecimento do pai e da irmã. Entretanto, um mensageiro traz cartas do príncipe para Horácio e para Cláudio, informando-os de que está de regresso à Dinamarca, depois de piratas terem atacado o navio onde seguia a caminho de Inglaterra.
            Cláudio giza um plano para garantir a morte do sobrinho, usando o desejo de vingança de Laertes: um duelo de esgrima entre os dois. Contudo, o filho de Polónio usará uma espada com a lâmina envenenada. Além disso, como plano de backup, Cláudio envenenará um cálice de vinho que dará ao sobrinho para beber, caso este atinja primeiro Laertes. É neste momento que Gertrude traz a notícia da morte de Ofélia.
            Hamlet chega a Elsinore no momento em que o funeral da jovem se está a realizar. Inundado pela dor, ataca Laertes e declara que, na verdade, sempre amou Ofélia. Os dois são separados por outras pessoas que participam no funeral. De regresso ao castelo, diz a Horácio que acredita que se deve estar sempre preparado para morrer, já que a morte pode chegar a qualquer momento. Um cortesão tolo chamado Osric, enviado por Cláudio, diz a Hamlet que o rei apostou nele, príncipe, para vencer um duelo de esgrima contra Laertes. O jovem aceita o desafio.
            A refrega começa. Hamlet golpeia Laertes duas vezes, mas recusa-se a beber da taça oferecida pelo rei. Em vez disso, Gertrude toma um gole do vinho envenenado (sem saber) pela saúde do filho. Laertes reage e fere Hamlet, mas este não morrer do veneno imediatamente. Antes disso, na continuação da luta, Laertes deixa cair a sua espada envenenada, o príncipe pega nela e atinge de novo o adversário, que, assim, é mortalmente ferido pela própria arma. Antes de morrer, Laertes diz a Hamlet que ambos morrerão em breve, pois foram cortados pela lâmina envenenada. O momento é interrompido por Horácio, que chama a atenção para o desmaio da rainha, que morre logo de seguida. Então, Laertes revela a todos os presentes a trama urdida por Cláudio e que este é o responsável pela morte da rainha. Antes de morrer, ele e Hamlet perdoam-se mutuamente.
            Enfurecido, o jovem príncipe apunhala Cláudio com a espada envenenada e força-o a beber o resto do vinho também envenenado. Cláudio morre, e Hamlet tem o mesmo destino logo depois, mas antes pede a Horácio que espalhe a sua história pelo mundo. Neste momento, Fortinbras, que atacou a Polónia com o seu exército no início da peça, entra com embaixadores da Inglaterra, que informam que Rosencrantz e Guildenstern estão mortos. Fortinbras fica chocado com a visão de toda a família real morta no chão e toma o poder do reino. Horácio, atendendo ao último pedido de Hamlet, conta-lhe a sua trágica história. A peça termina com o primeiro ato de Fortinbras como rei da Dinamarca: ordena a realização de um funeral com todas as honras militares para Hamlet.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Análise da Cena 1 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Assunto: informações sobre o que se passou depois do incêndio do palácio de Manuel de Sousa (estendem-se até à cena 3).
 
 
Assuntos abordados no diálogo das personagens

tempo decorrido desde a mudança para o palácio de D. João: aproximadamente uma semana;

assuntos:

- a reação de D. Madalena ao incêndio, à destruição do retrato do marido e à mudança de palácio: estado doentio de angústia e sociedade (“Há oito dias que aqui estamos nesta casa, e é a primeira noite que dorme com sossego.”);

- a alteração da perspetiva de Telmo sobre Manuel de Sousa, considerando-o agora “um português às direitas”;

- a delicadeza da situação política provocada pelo incêndio (“Meu nobre pai! (…) Passar os dias retirado nessa quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo!”);

- a contemplação e o significado dos retratos;

- os pressentimentos (relativamente à identidade da figura representada no terceiro retrato) e o sebastianismo de Maria (e de Telmo);

- a forma enigmática como a cena termina revela que Maria pressente a verdade, ou parte dela, relativamente à história de D. João de Portugal (“Mas o outro, o outro… quem é este outro, Telmo? […] e aquela mão que descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro amor nesta vida…”.


 
Estrutura interna

1.ª parte – Reações das personagens ao incêndio e à mudança de palácio.
 
Maria de Noronha:

- determinada / autoritária: “E não teimes, Telmo, que fiz tenção, e acabou-se!”;

- possuidora de grande sensibilidade e imaginação, citando a propósito a Menina e Moça;

- filha desvelada, pois revela grande preocupação em não acordar a mãe e procura animá-la, não a afligir, fingindo que não acredita em agouros (no entanto, nunca teve tanta fé em «agouros» e «sinas»);

- admiradora entusiasta de feitos grandiosos e espetaculares (ex.: a forma fascinada como recorda o incêndio);

- muito convicta numa desgraça iminente;

- ama e admira imenso o pai (por exemplo, considera que o incêndio foi um gesto patriótico, por isso o admira tanto);

- curiosa, intuitiva e crente em profecias e agouros: Maria sabia já que o retrato era de D. João, o primeiro marido de sua mãe, dada a reação desta aquando da primeira entrada na sala onde se encontrava pendurado;

- sebastianista e obcecada com o passado, características evidenciadas na contemplação dos retratos, sobretudo o de D. João:

. culto de D. Sebastião e crença nas lendas messiânicas sobre o seu retorno, apoiada pela presença do retrato real, de que Maria realça pormenores significativos;

. culto de Camões, poeta-profeta “que lia nos mistérios de Deus” e que “está no céu. Que o céu fez-se para os bons e para os infelizes”;

- pressente a existência de uma relação entre a figura de D. João e a sua mãe e o seu pai;

-reação aos retratos:

. fascínio pelo retrato de D. Sebastião, por causa da sua crença no regresso do rei e dos valores que ele representa;

. fascínio pelo retrato de Camões, cuja figura simboliza para ela o aventureiro, amigo de Telmo, autor de Os Lusíadas, dedicados a D. Sebastião, a quem profetizou o cometimento de grandes feitos;

. curiosidade pelo retrato de D. João de Portugal, suscitada pelo comportamento da mãe na noite em que entraram no palácio e nos dias seguintes.

 
D. Madalena:

- aterrorizada, inquieta, doente, cheia de pesadelos com o incêndio, sobretudo porque não foi possível salvar o retrato do marido, em cuja destruição vê “um prognóstico fatal de outra perda maior (…) de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar” de Manuel, isto é, de que uma tragédia se abaterá sobre a família;

- por este motivo, aumentou a sua inquietação, de tal forma que não conseguiu dormir nos primeiros oito dias de residência no antigo palácio de D. João;

- liga o incêndio à perda do seu marido, de que a destruição do retrato é prognóstico fatal;

- “perdida de susto”, grita quando, na primeira noite de permanência no palácio de D. João, avista o retrato deste, fugindo depois e arrastando Maria;

- mais calma após uma conversa com Frei Jorge.
 

Nesta cena, há uma inversão de papéis entre mãe e filha relativamente aos presságios de desgraça. De facto, no Ato I, D. Madalena, apesar de viver aterrorizada pelos seus medos e pelos agouros de Telmo, procurava passar a ideia de que não acreditava em presságios, para tranquilizar a filha. No entanto, no início deste ato, os papéis invertem-se: o terror e o pânico de D. Madalena quando entra no palácio de D. João impedem-na de manter a aparência de tranquilidade que assumira perante a filha. Agora, é esta quem assume o papel de adulta, fingindo não acreditar em crenças e agouros para tranquilizar a mãe.

 
Telmo Pais:

- aterrorizado com as palavras e agouros de Maria;

- o incêndio alterou a sua posição em relação a Manuel de Sousa: antes, admitia as suas qualidades, mas não o admirava; agora, admira-o, dado que este seu último ato se ficou a dever:
. ao seu patriotismo;
. à lealdade;
. à honradez;
antes, Telmo reconhecia algumas qualidades em Manuel de Sousa, mas não o considerava seu amo, porque, na sua opinião, ele usurpava o lugar que pertencia a D. João. Por isso, Telmo atormentava continuamente D. Madalena com os seus agouros e presságios, que apontavam para o regresso do seu primeiro marido, que voltaria para castigar uma família que considerava ilegítima. Todavia, neste momento, Telmo está aterrorizado com a hipótese de que algo aconteça que ponha em causa a existência da família. Com efeito, o incêndio fá-lo mudar a sua opinião relativamente a Manuel de Sousa: o escudeiro apercebe-se de que o segundo marido de D. Madalena tem “alma de português velho”, ou seja, de que, à semelhança do que acontecia com os portugueses das gerações anteriores, é um homem patriota, honrado e corajoso, que abdica dos seus bens para mostrar a sua revolta contra um governo que considera ilegítimo, por estar ao serviço de Castela. Deste modo, Telmo mostra-se profundamente arrependido por não ter dado anteriormente o devido valor a Manuel de Sousa;

- lastima não o ter estimado “sempre no que ele valia”;

- evita revelar a Maria a quem pertence o retrato de D. João, daí as suas hesitações e omissões (esta postura justifica-se, porque, na cena 2 do Ato I, prometeu a D. Madalena não alimentar as crenças de Maria e evitar que descobrisse informações sobre o passado);

- fica também fascinado diante do retrato de D. João I.

 
2.ª parte – Contemplação dos retratos, símbolos do sebastianismo e da obsessão pelo passado das duas personagens em cena.
 
Retrato de D. Manuel (recordação de antes do incêndio no outro palácio): “… ele estava tão gentil-homem, vestido de cavaleiro de Malta com a sua cruz branca no peito…” (“Como ele era bonito, meu pai! Como lhe ficava bem o preto… e aquela cruz tão alva em cima!”, I, 4 preto e cruz são sinais de luto e morte, respetivamente) significado: intuição do malogro do casamento dos pais.
 
Retrato de D. Sebastião significado: a grandeza de Portugal e a recusa de um presente de submissão; a intuição de que D. Sebastião poderá regressar [aqui o rei é uma personagem dupla (D. Sebastião – D. João), ou seja, a esperança da restauração da grandeza perdida de Portugal; o sebastianismo de Maria traduz a crença intuitiva no regresso do primeiro marido de D. Madalena, sua mãe]. Essa crença adensa a atmosfera trágica, dado que, se o rei não morreu, D. João poderá ter conhecido o mesmo destino.
 
Retrato de D. João: “Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de melancolia tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas…” significado: intuição de que ninguém amara D. João, nem mesmo a esposa, sua mãe. Maria mostra grande curiosidade e pressente que se trata de alguém muito importante na vida da sua mãe.
 
Retrato (romântico e lendário) de Camões: o herói aventureiro, representante do ideal de poeta e guerreiro; génio incompreendido e desprezado pelos «grandes» do seu tempo, cantor da epopeia do povo português e da glória de D. Sebastião, a quem incita ao combate contra os inimigos da Fé, amigo e companheiro de Telmo, “nessa terra de prodígios e bizarrias”. Esta imagem coaduna-se com a do poeta romântico, que era apresentado como um indivíduo em permanente conflito com uma sociedade que não o valorizava.
Telmo afirma tê-lo conhecido pessoalmente e critica os nobres que, tendo sido contados n’Os Lusíadas, não souberam agradecer-lhe e reconhecer a obra, pois morreu na miséria.
Por outro lado, o retrato de Camões evidencia a ligação de D. João e de D. Sebastião a uma época passada de glória, que foi cantada pelo poeta na sua epopeia e que contrasta com o presente, em que Portugal perdeu a sua independência e se encontra sob domínio castelhano.
 
Didascália final da cena: anuncia a chegada/entrada em cena de Manuel de Sousa, que surge “embuçado com o chapéu”, isto é, disfarçado. Manuel de Sousa, após o incêndio do próprio palácio, escondera-se e assim estivera nos últimos oito dias, até que a fúria dos governadores se acalmasse. A afronta que o incêndio constituíra faz com que tenha de regressar a casa disfarçada e de forma oculta.

A partir de uma fala de Telmo (“Já o estava, se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso.”), ficamos a saber que Manuel, se tivesse mentido, dizendo que o incêndio se ateara acidentalmente, poderia ser ilibado mais rapidamente, porém essa atitude levaria a que o seu ato patriótico perdesse grandeza (“… era desculpar com a vilania de uma mentira o generoso crime por que o perseguem”).

 
 
Elementos trágicos
 
A presença do fatum.
 
Pathos de D. Madalena:

- crença em agouros/presságios:

. de D. Madalena: “… não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai”;

. de Maria:

- a referência à Menina e Moça, uma novela sentimental trágica;

- “Creio, oh, se creio! Que são avisos que Deus nos manda para nos preparar. E há… oh! há grande desgraça a cair sobre meu pai… decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo.”;

- “Mas tenho cá uma coisa que me diz que aquela tristeza de minha mãe, aquele susto, aquele terror em que está, e que ela disfarça com tanto trabalho na presença de meu pai (também a mim mo queria incobrir, mas agora já não pode, coitada!), aquilo é pressentimento de desgraça grande…”;

- reafirma, clara e enfaticamente, a sua crença de que D. Sebastião (e, por extensão, D. João) não morreu.

 
Hybris de Manuel de Sousa:

- recusa o perdão dos governadores;

- sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele “homizio”, como diz Maria, naquela “quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo”.

            Observemos agora a hybris de Manuel de Sousa em confronto com as outras personagens:

1.º) dá resolução favorável ao conflito com Telmo: “Oh, minha querida filha, aquilo é que é um homem! A minha vida, que ele queira, é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não conheci, que o não estimei sempre no que ele valia”. A «generosidade» de Manuel de Sousa venceu os ressentimentos, a má vontade, os «ciúmes» de Telmo: antes dos acontecimentos que encerram o Ato I, Telmo apreciava Manuel de Sousa, tinha-o “em boa conta”. Porém, após ter assistido a esse gesto patriótico, a sua consideração por ele disparou, de tal modo que se declara disposto a dar a vida por ele;

2.º) o espetáculo do incêndio encheu Maria de «maravilha»: “… um espetáculo como nunca vi outro de igual majestade…”, embora dê razão à interpretação da mãe, de que a “perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai”. E acentua, dolorosamente, que “… há grande desgraça a cair sobre meu pai… decerto! E sobre minha mãe, que é o mesmo”.

 
Agón:

- de D. Madalena com D. João de Portugal na estranha reação que teve ao chegar à nova (e antiga) morada, quando encarou o retrato de D. João;

- de Telmo:

. com Maria nas evasivas, nas meias-verdades, nas reticências, na relutância em revelar a identidade da personagem no retrato;

. com Manuel de Sousa: o conflito entre ambas as personagens já fora resolvido (I, 7, 8 e 12), facto que esta cena confirma através da admiração que Telmo passou a nutrir por ele após o incêndio do próprio palácio;

- de Maria:

. com Telmo, a propósito da identidade da personagem do retrato:

1. por um lado, há as meias verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o nome do cavaleiro retrato;

2. por outro lado, os indícios observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe, no dia da mudança para este palácio; e a intuição do segredo e a persistência em a manterem na ignorância daquele “mistério”: “Não sei para que são estes mistérios; cuidam que eu hei de ser sempre criança”;

3. Maria insiste: “Mas o outro, o outro…quem é este outro, Telmo? Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de melancolia tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas… e aquela mão que descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro amor nesta vida.”
TELMO (deixando-se surpreender) – “Pois tinha, oh! se tinha!” (Maria olha para Telmo, como quem compreendeu, depois torna a fixar a vista no retrato).
     Que é que Maria intuitivamente compreendeu?
     Maria compreendeu nesse momento que (1) o único ser que amou o primeiro marido de sua mãe foi Telmo,(2) a mãe nunca lhe tivera amor, (3) a origem de todos os sofrimentos da mãe provinham dos remorsos da sua consciência atormentada. Assim, quando alguém (Manuel de Sousa) identifica a figura do retrato (II, 2), Maria não fica surpreendida: “Bem mo dizia o coração!”;

. com D. João:

- fica a saber, pela atitude da mãe, que a figura representada no retrato e de quem ignora a identidade, é esse alguém causador de todos os sofrimentos;

- daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo;

- até à revelação da identidade do retratado;

- contudo, ela já o sabia “de um saber cá de dentro” (II, 2).

 
Adensamento do clima trágico: D. Madalena aproxima-se do primeiro marido, não já apenas por via psicológica – como sucedeu no Ato I –, mas em presença física, por vida real: é obrigada a entrar e viver no palácio de D. João (a causa dessa aproximação é, obviamente, o incêndio).
 
 
Linguagem
 
Interjeições – exprimem diversos sentimentos:
- “Coitada!”: traduz a compaixão de Maria pela mãe;
- “Oh!”: traduz o entusiasmo de Maria quando se refere ao espetáculo do incêndio, e terror quando, por duas vezes, admite a iminência duma “desgraça” que atingirá o pai e a mãe.
 
Frases exclamativas e interrogativas e as reticências favorecem o ritmo entrecortado próprio de um discurso emotivo.
 
Repetição anafórica do demonstrativo, a enumeração e a gradação ascendente (“Aquele palácio a arder, aquele povo a gritar, o rebate dos sinos, aquela cena toda…”) e outras repetições de palavras traduzem a hesitação da fala.
 
Alternância de frases longas (referentes aos acontecimentos trágicos evocados) e de frases curtas, que traduzem as emoções.
 
            Estes elementos da linguagem são próprios do pendor oralizante do discurso.
 
 
Relação entre as cenas 1 dos atos I e II
 
            Entre a cena 1 do Ato I e a cena 1 do Ato II existe uma relação de semelhança.

            De facto, no ato inicial, D. Madalena cita versos de Os Lusíadas, concretamente do episódio de Inês de castro, em consonância com o seu estado de espírito: sofrimento amoroso.

            Já nesta cena do Ato II, Maria cita o início de Menina e Moça, romance de Bernardim Ribeiro, em consonância com o seu perfil psicológico: obra misteriosa e sentimental, como misteriosa e sentimental é Maria.


Importância da cena no desenvolvimento da ação dramática

Progressão da ação: esta é a cena em que se faz o enquadramento da ação no novo ato, expondo os antecedentes da mesma (acontecimentos ocorridos após o incêndio do palácio – ida para o palácio de D. João de Portugal, “Há oito dias”, durante a noite; reação de D. Madalena ao ser confrontada com o retrato de D. João; estado de saúde/espírito de D. Madalena na última semana).
 
Indícios trágicos:

- presságios de D. Madalena e Maria devido à perda do retrato de D. Manuel e ao destaque assumido pelo retrato de D. João;

- citação da obra Menina e Moça (novela trágica) por Maria;

- referência à morte pressentida por Camões;

- doença de Maria;

- referências de D. Manuel de Sousa Coutinho à morte e ao convento;

- referência à inexistência de Maria, caso D. João de Portugal estivesse vivo.
 
 
Características românticas da cena

O caráter histórico.

A exaltação dos valores patrióticos e da identidade nacional (a crença no Sebastianismo, a alusão a Camões, a luta pela liberdade).

A presença dos agouros/superstições (de Telmo, Maria, D. Madalena).

A dimensão apaziguadora da fé cristã.
 
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