Português: Fontes de Hamlet

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Fontes de Hamlet


             O teatro foi sempre uma arte colaborativa. Na época de Shakespeare, uma companhia de reportório não poderia esperar que um dramaturgo escrevesse no vácuo. A natureza da programação na qual uma nova peça poderia ser encomendada semanalmente, exigia a colaboração dos dramaturgos. Os ingleses do final do século XVI e início do XVII emprestavam livremente material uns aos outros e partilhavam críticas e edições. Hamlet, à semelhança das outras grandes obras atribuídas a Shakespeare, representa o seu trabalho, mas também mostra muitas contribuições de atores, diretores, etc., que sabiam que partes de uma peça deveriam deixar ou retirar.

            Como os gregos, o público isabelino e jacobino frequentava o teatro para ver peças que já tinham visto várias vezes ou que se baseavam em histórias tão familiares para ele quanto as histórias das suas próprias famílias. Assim, Shakespeare baseou o seu Hamlet numa popular saga escandinava que existia há mais de cem anos e que atores de toda a Europa haviam representado em anteriores manifestações à década de 1550.

            Em Newington Butts, um antigo vilarejo, The Lord Chamberlain’s Men (uma companhia teatral para a qual Shakespeare escreveu durante a maior parte da sua carreira) representou uma peça anterior cuja temática era a vingança, dirigida por Henslowe, em 9 de junho de 1594. Os estudiosos designam habitualmente este Hamlet e Ur-Hamlet e acreditam que o seu autor seja Thomas Kyd, um brilhante dramaturgo contemporâneo de Shakespeare. Não é conhecida qualquer cópia do Ur-Hamlet nem evidências concretas de que Kyd realmente escreveu a peça, contudo a história de Hamlet apresenta grandes semelhanças com a obra-prima de Kyd, The Spanish Tragedy, que múltiplos críticos acreditam ser uma versão aperfeiçoada do Ur-Hamlet.

            Crê-se, por outro lado, que tanto Kyd como Shakespeare terão lido Historia Danica, da autoria de Saxo Grammaticus por volta de 1200, uma antologia de lendas e mitos de origem nórdica, traduzida e popularizada em língua francesa por Belleforest em 1570. Thomas Pavier publicou uma tradução em inglês da versão de Belleforest da história de Hamlet em 1608, sob o título The Hystorie of Hamlet.

            No reconto de Belleforest da velha história, que tem lugar nos dias anteriores à chegada do Cristianismo à Dinamarca ou à Inglaterra, o público conhece o assassinato do rei Hamlet e o novo monarca afirma que o matou enquanto agia em defesa da rainha. Hamlet é um jovem que só pode fingir cuidar de si mesmo. Embora admire a verdade, não consegue ver além do seu espírito vingativo e exibe uma crueldade extrema. Nessa versão, Hamlet vai para a Grã-Bretanha, onde se casa e vive com a sua esposa, a filha do rei inglês, durante um ano. A notícia da morte de Hamlet chega ao rei da Dinamarca, que dá uma festa para comemorar, porém ele aparece quando a festividade começa, embebeda a corte e incendeia o palácio, matando imediatamente o rei.

            A peça em que Shakespeare baseou Hamlet era um conto sangrento pleno de som e de fúria com conotações cruas e selvagens. Embora o derramamento de sangue permaneça na peça do autor de Romeu e Julieta, a realidade é que ele refinou o texto, tornando-o poético e cheio de reflexões sobre o significado da vida, da morte, da eternidade, dos relacionamentos, da hipocrisia, da verdade, da existência de Deus e quase tudo o que diz respeito à humanidade. No entanto, o facto de a personagem do Hamlet de Shakespeare ser mais refinada cria um problema para quem fosse representar a peça.

            Shakespeare escreveu a peça de vingança “standard”, mas de uma forma totalmente nova. A tragédia de vingança era muito popular na época do dramaturgo e girava em torno de um herói que estava destinado a vingar um erro. Tal como os seus modelos da tragédia romana de Séneca, os heróis e vilões eram dramaticamente loucos, melancólicos e violentos. As peças eram gráficas e sangrentas. Shakespeare, sendo um pensador original, refinou a sua obra, criando novas tensões e redimensionando algumas das velhas questões.

            Se a obra fosse uma verdadeira peça de vingança, Hamlet teria agido mais cedo, ou seja, teria liquidado o rei no início, com o resto da peça elaborando sobre o que aconteceu após a morte de Cláudio. Ao não agir com mais celeridade, Hamlet leva-nos a refletir sobre a sua verdadeira motivação. Ele tem todas as oportunidades de matar o rei desprotegido, mas Cláudio vive. Os obstáculos que impedem o homicídio não são físicos, o que constitui um problema para os críticos e intérpretes. Eles dependem largamente da cultura de onde o intérprete provém; obstáculos que parecem óbvios para os leitores/públicos modernos nunca ocorreram aos do século XVI.

            O dramaturgo escreveu para um público que tanto assistia às suas peças como a lutas de ursos ou a execuções públicas. Não se tratava de um público intelectual; apenas desejava observar um protagonista a agonizar com palavras bonitas e insinuações sexuais sobre o dilema humano.

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