Português: Análise da Cena 3 do Ato II de Frei Luís de Sousa

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Análise da Cena 3 do Ato II de Frei Luís de Sousa

 
Nesta cena, Manuel de Sousa, logo na sua primeira fala, desafia o Destino: “Mas vamos: não dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há de ser destas paredes, é unção da casa: que isto é quasi um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Estas palavras despretensiosas e risonhas cortam o tom solene, quase de sermão, com que Manuel de Sousa, momentos antes, interpretara a “grande propensão (da filha) para achar maravilhas e mistérios nas coisas mais naturais e singelas”, e lhe dera uma interpretação teológica sobre os segredos inefáveis de Deus. Estas palavras possuem, contudo, um sentido oculto, talvez até de trágica ironia: com elas, mais uma vez Manuel de Sousa desafia o Destino. E este pega-lhe nas palavras tão imprudentemente proferidas: Manuel de Sousa terá de renunciar a tudo e vestir o hábito de S. Domingos.
 
Na primeira fala, Manuel de Sousa procura persuadir Maria de que não faz sentido acreditar em presságios, dizendo-lhe que a única coisa que não se pode explicar é a Fé; tudo o resto deve ser analisado à luz da razão.
 
Prossegue nesta cena o conflito de Manuel de Sousa com D. João. Ele louva as nobres qualidades de alma deste, a sua grandeza e valentia, a força de vontade, serena, mas indomável, que  nunca foi vista mudar, mas a realidade é que Manuel entrou naquela casa, está no ambiente em que D. João vivera com D. Madalena, aparentemente como senhor da casa, na ambígua situação de usurpador, de intruso.
 
De seguida, Manuel de Sousa realça a reação de D. Madalena (“estremece”) sempre que ouve falar no primeiro marido. Ele atribui esta atitude ao respeito que ela teria pela memória de D. João, não se apercebendo de que, na verdade, “estremece” por causa dos seus receios relativamente ao destino de D. João de Portugal.
 
Presságios

As palavras de Manuel de Sousa a propósito de parecer um frade constituem um novo indício de fatalidade: “Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Sem saber, Manuel de Sousa antecipa, simbolicamente, o desfecho da peça, altura em que D. Madalena e ele ingressarão em conventos da Ordem de S. Domingos.
 
A comparação irónica de Manuel de Sousa a um pregador – “(…) não dirão que sou da Ordem dos Pregadores?” – indicia a tomada do hábito.
 
A referência à capela: “Ainda não viste daqui a igreja? É uma devota capela desta. E todo o tempo tão grave! Dá consolação vê-la.”. Será nela que Manuel e Madalena tomarão o hábito.
 
A resposta de Manuel à fala de Maria, que afirma ter pena de D. João ter morrido na batalha de Alcácer Quibir: o pai lembra-lhe que, se ele estivesse vivo, ela não existiria e a família seria destruída, o que deixa Maria angustiada: “Manuel – Mas se ele vivesse… não existias tu agora, não te tinha eu aqui nos meus braços. / Maria (escondendo a cabeça no seio do pai) – Ai, meu pai!”. Isto indicia o desfecho trágico: a alusão ao facto de a vida de D. João implicar a não existência de Maria. Se, no passado, o regresso do cavaleiro inviabilizaria o seu nascimento, no presente, acarretará a sua morte, ou seja, ela sofrerá a vergonha de ser filha ilegítima.
 
A comparação do palácio de D. João a um convento – “isto é quase um convento aqui” – e a fala “a morte – e a vida que vem depois dela tão diante dos olhos sempre “ - antecipam uma mudança na vida da família e antecipam o desfecho da obra: é ali que Manuel e Madalena vão professar e tomar o hábito.

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