Português

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Análise do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias


             “Canção do Exílio” é o poema mais conhecido de Gonçalves Dias, um texto pertencente `primeira fase do Romantismo, datado de julho de 1843, quando o poeta se encontrava em Coimbra, Portugal, desenvolvendo temáticas como o patriotismo e o saudosismo em relação à terra natal, publicado em 1846, na obra Primeiros Cantos, livro de estreia do escritor maranhense (trata-se, na verdade, do primeiro poema do livro).

            Aurélio Buarque destaca a simplicidade da composição, marcada pelos seguintes traços:
a ausência de qualificativos, o que favorece a valorização dos nomes, “carregados já por si de um denso conteúdo sugestivo”;
a técnica da repetição;
o encadeamento e o paralelismo, que reforçam o sentimento profundo da nostalgia.

            Há um aspeto que marca os poemas do Romantismo e que, por vezes, aparece em Gonçalves Dias: a epígrafe, sobretudo de autores românticos. Neste caso, temos um extrato de um poema de Goethe (1749-1832), intitulado “Balada de Mignon”, que manifesta a saudade de uma terra paradisíaca e distante e um desejo de evasão no tempo e no espaço, marcado pela oposição entre o «cá» e o «lá»: “Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro… / Conhecê-lo? / Para lá, / para lá, / quisera eu ir!”. Nestes versos de Goethe, nota-se o louvor da pátria e dos seus aspetos característicos. Gonçalves Dias segue o «modelo» do poeta alemão e compõe um poema que glorifica as belezas da sua terra natal. Em ambos os textos, mostra-se o sentimento que sente o exilado em relação à terra de origem, elogiam-se as árvores (em Goethe, são as laranjeiras e, em Gonçalves Dias, as palmeiras) e existe uma forte musicalidade. Há ainda a oposição entre um cá e um lá, que é um espaço idealizado e exótico. Gonçalves Dias sente necessidade de marcar a oposição, por causa da saudade que o indígena sente e transmite-a através de um tom simples e ingénuo. Mas que saudade é esta? Há quem diga que ela é tão intensa que se desliga do sentimento português e é uma autêntica saudade indígena, que tem todas as características do elemento português e algo mais.

            É um poema ingénuo que não toma aspetos filosóficos, mas aspetos simples da vida que nos rodeia e dos quais o poeta sente saudade. É uma idealização do «lá» (o que não se encontra fora do Brasil) em relação ao «cá» (o que há no país natal), daí a presença do saudosismo característico de quem está há algum tempo distante do seu país de origem. De facto, Gonçalves Dias compôs estes versos quando se encontrava em Portugal, estudando Direito na Universidade de Coimbra, numa época em que era frequente que intelectuais abastados brasileiros cruzassem o Atlântico para se formarem em faculdades portuguesas.

            Por outro lado, há que ter em conta que o Brasil tinha declarado a independência recentemente, vinte e um anos antes, o que levou os autores românticos a sentirem a necessidade de trabalharem para a construção de uma identidade nacional, por isso começaram a produzir uma literatura com tons mais nacionalistas.

            O próprio título “canção” marca desde logo um certo ritmo muito suave e adaptado ao sentimento de saudade expresso; é um poema substantivado e com uso frequente da técnica da repetição, que é própria da canção e serve para marcar a intensidade, toda a valorização do «lá» e a consequente oposição com o «cá».

            O encadeamento das estrofes, a repetição do tema reforçam o sentimento de saudade marcado pela simplicidade que é quase a nota principal do poema. Como não há adjetivos, os nomes são muito expressivos e Gonçalves Dias usa-os de forma acumulada. Daqui resulta um poema com uma carga de lirismo enorme, marcado pela simplicidade e sentimento de exílio. O poema pode ser visto como exemplo da poesia específica do Brasil, embora seja feita fora do Brasil. Os elementos basilares são elementos da natureza. “palmeiras”, “sabiá”.

            Este poema é tão conhecido que o hino do Brasil adota algumas das suas estrofes. Foi retomado por outros poetas do Modernismo, como Oswald de Andrade, no poema “Canto do regresso à pátria”. É um poema romântico por vários aspetos:
tema: exílio e saudade;
forma poética: a canção;
o ufanismo com a idealização do Brasil na descrição da sua natureza;
a idealização feita do «lá» no sentido da evasão;
o sentimento de exílio: o poeta sente-se só e talvez seja esta solidão que o faz cantar a saudade e o exílio;
a recorrência de elementos da natureza brasileira;
o nacionalismo.

            Há autores que, nas suas críticas, o consideram um dos poemas mais belos da literatura brasileira pelo tom de saudade, simplicidade e solidão e pelo seu alto grau de equilíbrio, vindo da simplicidade e da melodia.

            Voltando ao título, «exílio» é um nome que remete para uma situação em que determinada pessoa está fora do seu país de origem, onde ela gostaria de estar. O exílio pode ser voluntário, quando o indivíduo decide ir para outro lugar por vontade própria, como foi o caso de Gonçalves Dias, que se deslocou a Portugal para estudar, ou forçado, como, por exemplo, Camões quando foi para a Índia.

            O tema do texto é a exaltação e a nostalgia da terra natal, uma temática muito cara aos românticos, para os quais o sentimento que diferencia o homem dos outros animais é precisamente o amor da pátria. Para evitar que os habitantes das localidades mais inóspitas do globo se precipitassem para as regiões temperadas, provocando uma catástrofe, a providência divina ter-lhes-ia infundido o “instinto da pátria”, que “colou os pés de cada homem ao seu torrão natal, com um imã invencível: os gelos da Islândia, e os areais abrasados da África estão povoados” (Chateaubriand, in O génio do cristianismo). Quanto mais adversas as condições de um país, maior a força desse instinto, que decai naquelas latitudes onde a facilidade da vida e as riquezas destroem os vínculos naturais que prendem o homem à terra natal. Esses elos podem residir em pequenas coisas, como no sorriso dos pais ou no latido de um cão, mas é sobretudo a paisagem que infunde com mais intensidade a afeição pela pátria. No caso da literatura brasileira, o texto que fixa o sentimento de que, comparada à paisagem natal, a natureza de outros países parece inferior é “Canção do Exílio”.

            O sujeito poético, em versos heptassilábicos, começa por destacar dois símbolos brasileiros: o sabiá, que representa a rica fauna brasileira, e as palmeiras, que representam a flora. De seguida, compara o lugar onde se encontra no momento da enunciação, «aqui», com a “minha terra”, introduzida logo no primeiro verso, e repetidamente referida como «lá», atestando, assim, a distância que os separa. Em todas as comparações que estabelece, ressalta a superioridade da terra natal em relação à do exílio. Assim, compara as aves da terra natal com as de «lá», que não gorjeiam como «aqui», o que significa que a riqueza natural existente no Brasil não se encontra em nenhum outro local. Note-se, também, que o «eu» não especifica nenhuma ave, antes se lhes refere de forma geral. A antítese «lá» e «aqui» indicia que o sujeito poético não está em solo brasileiro e o poema constitui uma vaga lembrança das saudades da pátria.

            As comparações prosseguem na quadra seguinte, sempre exaltando a pátria amada e a natureza e colocando-a acima daquela onde se encontra fisicamente. A primeira comparação (“Nosso céu tem mais estrelas”) remete para o ufanismo, isto é, para a ideia do ideal: as estrelas que se veem e brilham no céu brasileiro são exatamente as mesmas que brilham no céu onde o «eu» se encontra – Portugal. A pátria descrita pelo «eu» parece muito melhor do que é na realidade. Por exemplo, não fala nas questões da discriminação, das profundas desigualdades sociais ou da escravatura. A idealização da natureza prossegue nos versos seguintes, ao mencionar as “nossas várzeas”, que têm mais flores, e os “Nossos bosques”, que têm mais vida. Os dois versos finais remetem de novo para a idealização: “Nossa vida / mais amores”. O Brasil é um local paradisíaco. Ou seja, partindo dos elementos mais prosaicos da natureza (as palmeiras, o sabiá, as estrelas, as flores), as comparações estabelecidas pelo sujeito poético acabam por atingir, num crescendo, a própria vida, que, diminuída e amesquinhada no exílio, alcança a plenitude na terra natal. Note-se, por outro lado, que o «eu» não se refere àquilo que o Brasil possui e que falta à terra do exílio, optando por comparar coisas que existem em ambos os espaços (estrelas, flores), para afirmar sempre a superioridade que esses elementos adquirem na terra natal.

            A comparação mostra como o sujeito poético prefere, em vez de enumerar as coisas boas da sua terra, o confronto das mesmas com as comuns da terra onde se encontra exilado, constituindo a localização o critério para determinar a sua preferência. Estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores – tudo isto existe em Portugal e no Brasil. O que, de facto, provoca a saudade não é, portanto, a sua simples existência, mas a qualidade que a existência desses elementos adquire quando enquadrados na moldura da pátria. O sujeito poético não compara o que a sua terra natal tem com o que a terra do exílio não possui; sugere, isso sim, o maior valor de que as mesmas coisas se revestem quando localizadas no Brasil. Por outro lado, não é a evocação dos elementos (palmeiras, aves, etc.) que desperta a saudade, mas é esta que, como se pré-existisse a qualquer elemento objetivo, oferece ao «eu» poético a afetividade com que «julga» o «aqui» e o «lá». Não há qualquer juízo objetivo ou realidade objetiva, pelo contrário: toda a certeza do sujeito de enunciação é subjetiva, ou seja, é a sua convicção dogmática de que, qualquer que seja o objeto, tudo o que pertença ao país de origem é superior ao estrangeiro.

            A partir da terceira estrofe, contactamos com o estado de alma do sujeito poético relativamente à sua pátria, destacando-se um sentimento: a saudade. Além dela, ele dá-nos conta da sua solidão e do pensamento aturado voltado para a terra natal: “Em cismar, sozinho, à noite…”. Observe-se que o adjetivo se encontra isolado por vírgulas, indiciando a extrema solidão que o magoava, a solidão meditativa e noturna, exatamente o ambiente adequado à reflexão e à manifestação de estados nostálgicos e melancólicos. Os dois versos que retomam os dois versos iniciais do poema e que formam uma espécie de refrão indicia a obsessão do «eu» com a sua terra natal. De facto, depois de descrever o seu estado de alma, em que dá destaque à sua condição meditativa propícia à saudade, o sujeito poético repete esses versos, o estímulo que esteve na base da sua obstinada nostalgia.

            Os quatro versos iniciais da estrofe seguinte enfatizam de novo a saudade e a solidão que sentia. A sua terra tem “primores / Que tais não encontro eu cá”. O nome «primores» acentua a ideia de que a saudade não nasce dos atributos peculiares da terra brasileira, mas da insistência em conferir maior valia a coisas que se encontram em toda a parte, quando estão em solo nativo. Seguem-se os versos que repetem, enfaticamente, a melancolia e a nostalgia, prosseguindo o estado obsessivo: o «eu» não se limita a repetir o tópico da terra natal; vai mais longe, reiterando a solidão que favorece a sua lembrança. Podemos concluir que esta estrofe obedece a uma estrutura tripartida: a “racionalização” sintética da preferência do «eu» pela pátria (dois versos); a reiteração da situação afetiva de onde nasce o sentimento da saudade (dois versos seguintes; o retorno da obsessão fundamental (dois versos iniciais).

            Já na última estrofe dá conta do seu desejo de regressar ao solo pátrio e de poder ver de novo as suas belezas: “Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá…”, mas, ao mesmo tempo, indicia o pressentimento doloroso de que o exílio se poderá tornar definitivo. O advérbio de lugar «lá» designa, de novo, a terra natal, é o eco sintético das palmeiras, do sabiá e de tudo aquilo, em suma, que tem um valor incomparável no seu país. Esse advérbio, por outro lado, opõe-se antiteticamente a outros, como «aqui», «cá» e «por cá».

            Formalmente, o poema é constituído por cinco estrofes: três quadras e duas sextilhas. Desses vinte e quatro versos, dois foram usados na composição do hino brasileiro: “Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida, (no teu seio)mais amores”. Os versos ímpares são brancos (isto é, não possuem rima: “estrelas” / “vida”), ou apresentam rima toante (“palmeiras” / “gorjeiam”), enquanto os pares apresentam rima consoante (“flores” / “amores”). Assim sendo, o esquema rimático é o seguinte: ABCB nas quadras e ABCBDB nas sextilhas.

            Além da rima, outro processo que contribui para a homofonia do poema é a repetição. Assim, podemos observar que os versos 1 e 2 da primeira estrofe (“Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá”) são retomados integralmente na terceira e na quarte e, com alteração, na quinta, convertendo-se numa espécie de estribilho ou refrão. Além disso, a estrofe número três é integralmente repetida na quarta (vv. 9-12 / vv. 15-18). Verifica-se também a repetição de palavras isoladas, como “gorjeiam”, nos vv 3 e 4; “nosso” e as suas variantes nos vv. 5 a 8; “mais”, nos mesmos versos; “primores”, nos vv. 13 e 21; “sem”, nos vv. 20, 21 e 23; “lá”, nos vv. 4, 10, 16 e 20; “canta”, nos vv. 2, 12, 18 e 24; “eu”, nos vv. 10, 14, 16 e 19; “que”, nos vv. 3, 14, 19,20, 21, 22 e 23). Todas estas repetições proporcionam a grande musicalidade que perpassa a composição poética.

            No que diz respeito ao ritmo, esta caracteriza-se pela repetição de sons agrupados em pequenas unidades regulares. Nas línguas novilatinas, o ritmo poético é determinado pela tonicidade das vogais, isto é, pela sucessão de sílabas fortes e fracas, podendo haver também sílabas de tonicidade intermediária. “Canção do Exílio” foi escrito em versos heptassilábicos ou de redondilha maior. O esquema rítmico dominante é dado pelos acentos na terceira e na sétima sílabas de cada verso, como se pode constatar pela análise da primeira estrofe, na qual esse esquema é quebrado apenas no terceiro verso, acentuado na segunda, quinta e sétima sílabas:

1. Mi | nha | te | rra | tem | pal | mei | ras,                --/---/ [3-7]

2. On | de | can | ta | o | sa | bi | á;                            --/---/ [3-7]

3. As | a| ves | que a | qui | gor | jei | am                   -/--/-- [2, 5, 7]

4.Não | gor | jei | am | co | mo | lá.                            --/---/ [3-7]

            De acordo com o esquema, a quebra do ritmo dá-se quando o sujeito poético introduz o tema da terra estrangeira: é como se as aves do exílio, único elemento estrangeiro referido na estrofe, desafinassem o coro dos elementos nativos. Para confirmar essa impressão, a mesma quebra de ritmo ocorrerá no verso 14, que também faz referência ao «cá» onde o «eu» se encontra no momento da enunciação: “Que | tais | en | con |tro eu | ” [2-5-7-].

            Na última estrofe, quando o sujeito poético exprime o receio de que o exílio se torne permanente e afirma o desejo de retornar à terra natal, estrofe, portanto, em que a tensão atinge o nível mais elevado, o ritmo também sofre alterações:

19. Não| per | mi | ta | Deus | | que eu | mo | rra,    --/---/ [3-7]

20. Sem | que eu | vol | te | pa | ra | ;                      --/---/ [3-7]

21. Sem | que | des | fru | te os | pri | mo | res          ---/--/ [4-7]

22. Que | não | en | com | tro | por | ;                    ---/--/ [4-7]

23. Sem | qu’in | da a | vis | te as | pal | mei | ras,     ---/--/ [4-7]

24. On | de | can | ta o | sa | bi | á                              --/---/ [3-7]

            Deste modo, a quebra do ritmo é uma escolha doo poeta, que, consciente do seu ofício, o utiliza e às suas variações para reforçar o sentido do poema. O esquema rítmico dominante é 3-7. As quebras ocorrem nos versos 3 e 14 (acentuados em 2-5-7) e nos versos 21, 22 e 23 (acentuados em 4-7).

            Em suma, o poema qualifica, em tons superlativos, a terra natal, porém a qualidade atribuída é em si mesma abstrata. O sujeito poético não descreve qualquer aspeto particular da sua terra, optando por partir do sabiá, a ave-símbolo do Maranhão, terra natal de Gonçalves Dias, para a sobrevalorizar. O Brasil, nesta composição, não é isto ou aquilo; é sempre mais do que o outro espaço.

            “Canção do Exílio” é um poema romântico que veicula uma saudade melancólica e a aspiração a um país edénico, a uma terra ideal, a uma pátria sonhada e idealizada, constituindo o retorno à terra natal uma variante da nostalgia romântica. Por outro lado, a composição apresenta um estilo onde predominam os nomes e os adjetivos sobre os verbos, apontando para uma conceção não dinâmica da realidade, como se pode constatar pelo facto de, entre os dez verbos nela presentes (“ter”, “cantar”, “gorjear”, “cismar”, “encontrar”, “permitir”, “morrer”, “voltar”, “desfrutar”, “avistar”),apenas um – “voltar” – indicar movimento.

            A saudade do torrão pátrio é um sentimento profundamente brasileiro, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país. Boa ou má, essa realidade jamais conseguirá apagar a saudade e o amor obstinado pelo seu país.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Análise do poema "Leito de folhas verdes"


             O título do poema remete, desde logo, para um espaço – o leito –, lugar de regeneração pelo sono e pelo amor, transformado pelo sujeito poético em espaço de espera, de sonho, e de refúgio do ser, com o qual o sujeito poético -feminino – se identifica enquanto local do despertar da vida e da esperança, indiciados pela presença da cor verde. De facto, o leito é feito de folhas verdes, cor que evoca as imagens do novo, da esperança, da natureza e do feminino.

            O tema do poema é a espera, ou melhor o poema é um lamento do que passa durante p período de espera, com todos os sentimentos subjacentes: amor, saudade, fidelidade.

            Por outro lado, o texto denota muitas semelhanças com as cantigas de amigo: o sujeito é feminino (“Eu sou aquela…”); o conteúdo aproxima-o das albas ou alvoradas, pela referência ao amanhecer; o amado / amigo está ausente; a mulher apaixonada exprime o seu lamento.

            Quanto à construção do poema, podemos encontrar dois pólos. Por um lado, somos confrontados com o sentimento da índia e com a construção da sua psicologia. Desde logo, há uma alteração do ambiente que a rodeia: começa-se com a noite, que vai progressivamente dando origem ao dia, o que implica uma descrição diferente da natureza. Por outro lado, com o surgimento da manhã, as flores abrem e a mulher começa a desanimar com a espera. A ligação entre a natureza e a mulher tem um grande efeito lírico e harmonioso.

            A primeira estrofe abre com uma interrogação retórica que mostra a tensão e a ansiedade amorosa do «eu» feminino pela ausência e, sobretudo, pela demora da chegada do amado (Jatir), que ela questiona, sentimentos traduzidos pelas expressões “a tanto custo” e “voz do meu amor”. A viração e o vento simbolizam a mudança, enquanto as folhas representam o movimento de iniciação ou ritual. Além disso, a cena da espera tem lugar à noite: a “viração da noite”, que é doce porque rumoreja (personificação) e indicia a bisca de intimidade, está ligada ao bosque, que se opõe ao espaço elevado (a colina ou a montanha), característico do dia. Nesta perspetiva, dá-se a eufemização da não chegada do objeto amado, através da personificação da voz do amor e do vento, na noite e no bosque. Os elementos da natureza, em suma, corroboram o estado de espírito da mulher, a sua angústia, a sua ansiedade, etc. Essa harmoniosa com a natureza, com aquele cenário harmonioso, parece transformar Jatir, o amado, na figura do homem/ideal que ela ama ou que a desperta para o amor. Deste modo, é possível questionar se ela ama mais o sentimento do amor e a sua sensorialidade ou o homem.

            Na segunda e na terceira estrofes, é descrito o leito de amor, feito sob a copa de uma “mangueira altiva”, árvore que simboliza o elemento fecundador, desde logo porque o sujeito poético se encontra debaixo dela e em contacto com a terra, iluminada pela lua, símbolo da reprodução e da fecundação. E tudo isto sucede à noite, o tempo em que a semente lançada no solo germina, para nascer de dia. O facto de a mulher estar debaixo da mangueira e sobre um leito coberto por um tapete de folhas e iluminada por flores associa-se à ideia da maternidade. Estas imagens remetem para o imaginário do amor e para a fecundação, associadas à expectativa do amor. Nota-se ainda que a mulher está ansiosa e tensa, porém esperançosa, visto que, quando se refere ao leitor, o apelidar de “nosso”, apontando para a ideia de partilha já assegurada.

            Deste modo, o nome «leito», determinado pelo determinante possessivo «nosso», sugere claramente que se trata do leito nupcial, que, ao ser coberto por ela, de forma zelosa, com um “mimoso tapiz de folhas brandas”, no momento em que o “frouxo luar brinca entre flores”, evidencia a comunhão do sujeito poético com a natureza. Tudo isto decorre num cenário harmonioso, mesmo que noturno, como se comprova através do uso dos adjetivos “mimoso” e “brandas”, bem como do verbo “brincar”. Estas imagens, por outro lado, sugerem um ambiente onde reina a paz e o bem-estar. O papel da natureza é o de amiga e bem-feitora, tal como sucede em várias cantigas de amigo.

            A imagem do leito e a sua ligação à terra transformam as folhas (símbolo do progresso e da transformação) em algo também ligado à noite, visto que a sua seiva, potencialmente transformadora, está ao serviço do descanso ou da resignação. Por seu turno, a mangueira, enquanto árvore, é o símbolo da vida em perpétua evolução e em ascensão para o céu, evocando a simbologia da verticalidade. Além disso, está associada à construção de um cenário íntimo, pelo que pode pensar-se também como símbolo fálico. Por último, há que considerar que esse cenário natural traduz toda a doçura resultante do ansiado encontro amoroso: o mimoso tapiz de folhas brandas; o frouxo luar brinca entre as flores; o bogari solta o mais doce aroma (estrofe seguinte).

            Na terceira estrofe, a imagem da flor que se abriu e do doce aroma que se solta do bogari remetem para o desabrochar da mulher, que reconhece estar pronta para o amor, tendo consciência de que deve ficar à espera, no silêncio da noite: a flor abriu-se, o aroma expande-se, o bosque exala. Esse desabrochar e essa consciência são recentes (“há pouco”) e são a consciência do conhecimento do amor.

            Na quarta estrofe, o amor é apresentado como “mágico”, mas natural(“respira-se”), luminoso, mas longínquo (“lua e estrelas no céu”), místico (“preces”), contudo vivido como dom supremo (“melhor que a vida”). O último verso da quadra confirma que se trata de um amor perfeito: “um quebranto de amor, melhor que a vida”.

            Na quinta estrofe, a mulher é associada à flor – símbolo da beleza e do princípio passivo do amor –, que depende do elemento ativo, o sol (o amado), fonte de luz, calor e vida. A figura do sol simboliza a potência masculina, porém ela ainda não é conhecida, apenas vislumbrada, como “doce raio de sol” que dá vida. A figura feminina é uma espécie de mulher virtual, dado que lhe falta o raio de sol – o princípio masculino – para a efetivar como mulher. Assim sendo, o sujeito poético tem consciência de que o ser feminino apenas se revela e se completa com o amor e que este lhe proporciona vida. A imagem dos versos 3 e 4não deixa lugar a dúvidas: a jovem é a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para se realizar e viver: “Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida.”

            As duas estrofes seguintes constroem a ideia do amor único e da dedicação exclusiva ao amado a partir de uma série de contrastes: espacial (vales – feminino vs. montes – masculino, lago – circundado do corpo vs. terra – circundante), pontuando o imaginário do corpo; temporal (dia -masculino vs. noite – feminino), acentuando o género; abstração (pensamento) vs. concretude (posse: “és meu, sou tua”), indicando que a interação entre a figura masculina e a figura feminina é caracterizada pela exclusividade; pragmática (visão / conhecimento – olhos), contacto (lábios), atividade (mãos na cinta). Por outro lado, o amor vence todos os obstáculos (“Sejam vales ou montes, lago ou terra, / Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”); a figura feminina é idealizada – ela dedica total fidelidade ao seu amado: “Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!”, etc.

            O último verso da antepenúltima estrofe (“A arazoia na cinta me apertaram”) configura a materialização de um compromisso, a realização de um voto. Os índios usavam ao redor da cintura uma saia de plumas de ema, em certas cerimónias, e as viúvas, na Idade Média, costumavam depositar um cinto sobre a tumba dos maridos quando renunciavam à sua sucessão, o que aponta para a estreita relação entre cinto, castidade e fecundidade. No mundo greco-romano, quando uma jovem desapertava o seu cinto, entendia-se que setinha entregado a um homem. Assim, a arazoia na cinta associa-se à castidade, passivamente imposta e aceite, neste caso, pela cultura indígena. Nesta estrofe, há a tomada de consciência por parte da mulher de que está pronta para a vida amorosa e para a exclusividade do amor, visto que a arazoia ainda lá está, ou seja, estamos perante a imagem da mulher que ainda é virgem e a espera por que tal aconteça.

            A última estrofe dá conta da desilusão do sujeito poético: com a chegada da manhã (“lá rompe o sol”), a esperança e a expectativa dão lugar à deceção e à tristeza, pois Jatir não responde ao seu chamamento. Deste modo, pede à brisa da manhã que leve consigo as folhas do leito inútil: “nem tardo acordes / À voz do meu amor, que em vão te chama!”; “do leito inútil / A brisa da manhã sacuda as folhas!”. Isto não significa, porém, o fim da esperança, pois Tupã vai sacudir as folhas, desfazer o leito, mas elas continuarão a existir.

            Assim, a mulher amada somente a imagem, a memória, visto que Jatir não acode ao seu chamamento, está longe. A interpelação de Tupã, um deus masculino da mitologia tupi-guarani que representa o trovão, vai no sentido de ele observar o sol que surge no horizonte. O leito de folhas de árvore representa a evolução da condição de menina para a de mulher, condição inútil, mas esperançosa porque o leito é visitado apenas pela brisa, imagem do anseio e da esperança femininas.

            O pedido da jovem a Tupã para que faça com que a brisa (o desejo) sacuda as folhas do leito traduz o seu sonho e desejo de amar. Tupã sabe onde nasce o sol, que este é um elemento masculino e que a sua natureza é procurar a mulher para se completar. Esse desejo de amar e a comunhão com o amado são traduzidos, no poema, através da progressão temática e de contrastes: chamada vs. não resposta; esperança vs. impaciência/ansiedade; espera vs. ausência do esperado; vida vs. não-vida. Estas polaridades revelam o universo de valores do sujeito poético: a mulher e o homem necessitam um do outro para se tornarem seres completos.

            Em suma, este poema configura também uma declaração de amor marcada pela ausência e pela angústia da espera por parte da mulher, cujo estado de espírito vai evoluindo ao longo da composição. Inicialmente, encontramo-la de noite, questionando a ausência e a demora do amado, mas esperançosa no regresso de Jatir, cujos passos são movidos pela voz do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (a floresta, debaixo de uma mangueira). O decorrer da noite traz o vento e as folhas fazem barulho nos altos bosques, enquanto a jovem permanece sob a mangueira, local onde foi construído o leito, que ela cobriu com suaves folhas e que brilha através do luar que rompe entre as flores. A noite avança pela floresta e a flora, na sua diversidade, solta os seus aromas, entre as quais estão os das flores do tamarindo e do bogari.

            A lua e as estrelas brilham, os perfumes das flores noturnas espalham-se levados pela brisa, construindo-se, assim, uma imagem romântica, um ambiente mágico em que o sujeito poético é transportado para um mundo onírico, no qual ela pode viver o seu grande amor, pois aí não existe a triste realidade da vida, uma realidade de abandono e de solidão.

            O alvorecer rompe e com o nascimento do sol as flores começam a desabrochar, enquanto a mulher, qual flor vegetando sem o astro-rei, espera que a energia deste lhe dê ânimo para prosseguir a espera. O sujeito poético imagina o seu amado caminhando, de dia ou de noite, atravessando vales, montes, lagos, terras, a quem ela devota todo o seu carinho e desejo, pois ele é o seu único amor: os seus olhos nunca viram outros olhos, nem os seus lábios beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram a sua saia na cintura.

            No verso 29, a narração retoma a terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma da noite anterior. Aqui começa a mostrar-se desiludida, pois, tal como o perfume das flores, a sua esperança começa a esvair-se com a chegada do dia.

            A nona estrofe retoma a primeira para mostrar a consciencialização do sujeito poético em relação ao não regresso do amado. Assim sendo, o leito, tão bem cuidado e construído com amor, torna-se inútil sem a presença do homem, por isso pede à brisa que o desfaça.

            Formalmente, o poema é constituído por nove quadras, em versos decassilábicos brancos, com ritmo regular, com exceção da quarta estrofe e da rima toante entre “brisa” e “vida”, que remetem para a ideia de mudança, veiculada pela brisa. Estilisticamente, destacam-se as aliterações em torno do som /s/, que sugerem o som da brisa e o balanço das árvores, e em /n/,que sugere lentidão, que se coaduna com a ideia da espera lenta da jovem relativamente ao seu amado, que não chega. Tem igualmente importância a reiteração de determinados vocábulos, como “amor” (cinco vezes), “folha” (três vezes), “flor” (cinco), “leito” (duas), “lua” (duas) e “sol” (três). Estas repetições apontam para a temática que domina o poema (o amor), para o ambiente natural em que se localiza (sol, lua) e para um espaço específico (folhas, flor, árvores), formando a imagem de uma floresta. Temos também a repetição de certas palavras no mesmo verso: “prece” (v. 11), “olhos” (v. 25), “lábios” (v. 26), que reforçam a imagem da pureza (prece) que surge a par da sensualidade (olhos e lábios), uma imagem estereotipada da figura feminina, embora neste caso se refira a um ser feminino indígena, interpretada e idealizada pelo olhar e pela cultura europeus. Além disso, encontramos a repetição parcial do verso 9 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco”), no 29 (“Do tamarindo a flor jaz entreaberta”), a qual marca a progressão do tempo desde o anoitecer até ao amanhecer, tendo em conta que a flor referida abre à noite e fecha com a chegada do sol. Este desabrochar e fechar da flor coaduna-se com os sentimentos e as esperanças do sujeito poético, que está esperançado à noite, mas, com a chegada do astro-rei, no dia seguinte, vê essa esperança apagar-se, ir-se desfazendo lentamente. Por seu turno, o verso 2 (“À voz de meu amor moves teus passos?”) repete-se parcialmente no 34 (“À voz do meu amor, que em vão te chama!”), marcando-se assim dois tempos: no primeiro, correspondente à primeira estrofe, o sujeito poético ainda acredita que a sua voz pode guiar os passos do seu amado durante a caminhada de regresso, atravessando vales e montanhas; no caso do segundo, a presença da locução adverbial “em vão” aponta para a inutilidade da espera e a tomada de consciência de que Jatir poderá não voltar de todo. O verso 10 (“Já solta o bogari mais doce aroma!”) indicia que tanto a flor do bogari como a do tamarindo exalam um melhor aroma durante a noite do que de dia, ao ser repetido no verso 30 (“Lá solta o bogari mais doce aroma”). O sujeito poético compara a vitalidade do seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade do aroma, que é mais forte à noite. Contudo, ao amanhecer, está sem ânimo, sem vitalidade, com pouca esperança de que o seu amado regresse. Ainda no que diz respeito a recursos estilísticos, o poema contém diversas metáforas. Nos versos 9 e 10 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce aroma!”), marca-se a passagem da noite para o amanhecer através do desabrochar das flores noturnas que exalam um doce perfume. A metáfora/imagem presente entre os versos 29 a 32 permite associar os sentimentos da mulher à natureza. Assim, se a intensidade do aroma das flores era superior durante a noite, as esperanças da jovem, que durante a noite fortaleciam o seu coração, estão-se desfazendo à medida que o dia se aproxima.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mangueira", de Gonçalves Dias


     Adivinha-se um sujeito de enunciação e alguém que escuta. Isto deduz-se pelo tempo e pessoa dos verbos.
    As duas primeiras estrofes descrevem a natureza, uma natureza alegre, rica e específica do Brasil (ex.: mangueira). A referência ao "passarinho" parece um pouco deslocada, porque geralmente as aves referidas são o sabiá, a arara, a jandaia, etc. Apesar de poder ser um elemento do Brasil, está descrito em moldes europeus.
    Temos depois a descrição das personagens:
        - viandante, símbolo romântico do ser errante;
        - mancebo, símbolo do amor.
    Quanto à estrutura, esta é repetitiva, com ritmo muito marcado.
    Quanto à linguagem, temos poucos adjetivos e um vocabulário muito simples com elementos clássicos: mancebo, mil suspiros, anosa, etc.
    Elementos românticos:
        - natureza no sentido de abrigo e confidente;
        .- imagem do viandante com tudo o que significa de errância, exotismo, viagem;
        - imagem do mancebo como símbolo da saudade e do amor.

Análise do poema "Marabá", de Gonçalves Dias


             Gonçalves Dias (1823-1864) foi um poeta e dramaturgo brasileiro, considerado o grande poeta indianista da geração romântica brasileira. De facto, o Romantismo deu ao tema do índio grande relevância e à literatura uma feição nacional. O autor nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão, no dia 10 de agosto de 1823, sendo filho de um comerciante português e de uma mestiça. Em 1862, deslocou-se à Europa para fazer tratamentos de saúde, porém, não obtendo resultados, regressou ao Brasil em 1864, tendo falecido a 3 de novembro, a bordo do navio francês Ville de Boulogne.

            Este poema, que relata a luta de uma jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas métricas.

            A única palavra que constitui o título – Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas imperfeitas e indignas da sua cultura.

            No que diz respeito à estrutura do poema, temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado. Somos colocados perante quatro situações:

1.ª) Referência aos olhos.

2.ª) Referência ao rosto.

3.ª) Referência ao colo.

4.ª) Referência aos cabelos.

            Em todos os casos, o sistema é o mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por alguém, que acrescenta algo mais.

            Desde os primeiros versos, encontramos um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja, produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.

            Seja como for, fica desde já estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.

            Porém, Marabá não se conforma e prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza, através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar. Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos outros, mesmo que tenha olhos belos.

            De facto, a segunda e a terceira estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro (“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao «céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro mais puro” e com a beleza de um beija-flor.

            Em suma:

1. Os olhos de Marabá são garços (esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.

2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado pela preferência por um rosto moreno.

3. O colo é flexível e elegante, mas também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.

4. Ela tem cabelos louros e anelados, mas o homem prefere-os lisos.

            Por outro lado, o retrato de Marabá pode ser sintetizado da seguinte forma:

• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente brasileira;

• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela sua própria comunidade;

• tem olhos garços (verdes);

• a sua pele é alva (da cor dos lírios);

• os cabelos são louros, longos e anelados;

• vive solitária, desprezada pela sua tribo;

• vive desiludida, por sofrer de discriminação.

            Este quadro permite concluir que temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar, as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido excluída do povo de Tupã.

            O verso seguinte confirma a rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos, compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.

            Mediante isto, podemos concluir, desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos, para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio «jamais» marca bem a sua solidão.

            De facto, depois de todo o poema nos colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia / Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”. Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do interlocutor venceu.

            O poema põe em discussão a importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento, inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor. Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de preservação, a superioridade da sua beleza étnica.

            No que diz respeito a influências, no poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça, com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor, lamentando o desprezo a que é votada.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Análise do poema "Canção do Tamoio", de Gonçalves Dias


             “Canção do Tamoio” é um poema da autoria de Gonçalves Dias, constituído por dez oitavas de versos de redondilha menor. Pertence ao género épico, pois exalta a coragem dos índios. O sujeito da enunciação é o pai que se dirige ao filho que acaba de nascer e chora. Estes conselhos revelam uma mundividência indígena, que tem a ver com o caráter do índio: coragem e força. Há uma tentativa de registar a cultura dos indígenas brasileiros e a relação de poder dirigida aos herdeiros da classe dominante. Por outro lado, o poema enfatiza a posição de guerreiros dos índios, mas acaba por reforçar o seu estatuto de inferioridade e a noção da supressão do mestiço na sociedade do Brasil. A fase indianista da literatura brasileira transmite uma imagem positiva do povo, assente no amor à liberdade, no apego à terra e a valores locais. Esta valorização do índio é um reconhecimento do seu valor e da sua importância na fundação do país, bem como a recriação da história da origem do povo, desassociando-a dos seus traços sociais e históricos, que evidenciavam a condição atrasada e periférica da jovem nação: a colonização (o português) e o trabalho escravo (negros escravos e mestiços), o que possibilitava a construção de uma ascendência heroica que derivava do indígena.
            Na primeira estrofe, o sujeito poético apresenta-se como o pai indígena no momento do nascimento do seu filho, que chora, e que lhe dá as boas-vindas, transmitindo-lhe os valores e a história heroica dos seus antepassados, não os portugueses, mas os tamoios. Assim sendo, mostra-lhe que, na vida, há que seguir com bravura, ser forte e lutar, pois “Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate”. Além disso, exalta os fortes.
            A exclamação que abre a segunda oitava enfatiza a ideia de que é importante viver na condição de homem forte e dominador. O homem forte não teme a morte, apenas a fuga, pois tal seria sinónimo de cobardia, pelo que é importante ficar e lutar. De seguida, o «eu» pai aconselha o filho recém-nascido a, nas situações de tensão, a agir como um caçador e a acionar os seus instintos de defesa: “No arco que entesa / tem certa uma presa”. Assim, chama a atenção para a contradição e a tensão existente entre as classes sociais que sinaliza o poder de um grupo, havendo evidências da constituição do homem brasileiro mestiço que se formava: “Quer seja tapuia, condor ou tapir”.
            A diferença entre o homem fraco e o forte retorna no início da estrofe seguinte: o primeiro é cobarde (porque foge, desiste, não luta) e invejoso da condição do segundo – lutador, determinado, corajoso, garboso e feroz. O verso 21 introduz a figura dos velhos, destacando-se a sua sabedoria (traduzida pela metáfora “Curvadas as frontes”, isto é, franzindo o rosto, a testa) e o facto de escutar a voz do homem fraco, cobarde e invejoso, aconselhando-o, porém, no sentido de o convencer da importância de ser um homem forte.
            A quarta oitava destaca a força do destino: o que está destinado, destinado está e, por isso, é fundamental ser sempre corajoso, porque a morte virá quando tiver de vir. A vida relaciona-se com a dominação e a morte com o descanso merecido após a jornada de conquistas. O que foi feito ficará na memoria. Os versos 29 e 30 introduzem um tema que atravessa autores e épocas: a passagem do tempo é inexorável e a morte inevitável. Assim sendo, a vida deverá ser vivida de forma digna e honrada, isto é, com bravura e força, devendo constituir uma referência para as gerações futuras. O sujeito poético é o pai que enfatiza a necessidade de construir um presente que molde o futuro, por isso é importante registar a história do país, as suas tradições, a sua cultura e os seus costumes.
            A estrofe seguinte enfatiza a noção da herança da tribo, nomeadamente a sua coragem e valentia: “Tamoio nascestes, / Valente serás.” Esta noção é acentuada pela referência ao brasão. Relembremos que brasão é o conjunto dos emblemas e signos distintivos de uma família nobre ou de uma coletividade. Deste modo, essa referência simboliza o orgulho nas suas qualidades, em tempo de paz ou de guerra.
            Desde o início do poema, o «eu» poético enfatiza a valentia do indígena, construindo uma imagem de luta, de combate, na qual o grito de guerra é a arma mais potente e com ele amedronta o oponente. A assonância em «ao» nos versos 45 e 49 e a comparação (“Pior que…”) com o efeito de susto e barulho como os sons da flecha lançada e o trovão, som da natureza que evidencia força e barulho que se ouve a grandes distâncias, destacam o tom grave do texto e essa noção de força e luta.
            A luta e a guerra tiveram lugar num passado distante e não tiveram como inimigo o colonizador, antes sucederam entre as diferentes tribos indígenas e causaram o horror. A referência à guerra e à grandeza do nome indígena sucede num momento em que esses eventos já não existem mais na objetividade da história brasileira.
            A partir deste ponto, o poema transforma-se num canto fúnebre, num canto de mote, ainda que se trate de uma morte heroica, impávida e audaz. O sujeito poético – o pai – apela ao filho para que, na sua última hora, se cair nos braços dos inimigos, reflita sobre a sua conduta moral diante do legado da sua tradição, com firmeza e astúcia: “Na última hora / Tens feitos memoria, / Tranquilo nos gestos, / Impávido, audaz.”
            A nona oitava explica, de forma metafórica, o heroísmo e a grandiosidade que presidiram à história do povo que ali vivia antes da chegada do homem branco. A conquista possível é a da honra dos tamoios, representada pelo brasão, que os torna os melhores e mais bravos guerreiros. Neste sentido, apesar de toda a idealização, o poema aproxima-se da realidade, visto que para o filho do índio não há possibilidade alguma de outra conquista.
            Este poema eleva o indígena à categoria de herói nacional, idealizando-o, mas, por outro lado, também demonstra o nascimento e a morte da possibilidade de um outro projeto de nação em que, de facto, estivessem incluídos os dominados.
            Há que ter sempre o melhor na vida e na luta, como se só isso fosse o caminho para algo eterno, que fica para lá da morte. Esta superioridade em tudo lembra a ἀρετή (a virtude) dos gregos.
           O ritmo do poema é incisivo e forte, adequado ao tipo de discurso, e a métrica é breve (redondilha menor). Isto está presente também no poema “I – Juca Pirama”. A Linguagem é substantiva, o que marca o equilíbrio da poesia de Gonçalves Dias.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto


             O poema é constituído por 29 versos brancos ou soltos, distribuídos por seis estrofes, cujo título sintetiza a ideia da beleza da africanidade, adjetivando as mãos como esculturais, isto é, como mãos que são como obras de arte. Por outro lado, a mão simboliza o trabalho e a manifestação, pelo que o título indicia a força, o valor do trabalho e a força da união dos africanos.
            As três primeiras estrofes compõem a imagem de uma África aparente, a que é retratada pelos estrangeiros, pelo que se trata de uma visão parcial do que é a identidade africana. O poema começa por apresentar o olhar vencido e cansado que carrega a memória dolorosa da época da exploração, bem como a imagem do mar em simbiose com o ser africano: “mares negreiros”. Esta expressão traduz o sentimento de aprisionamento e o medo vivido nos lares e o cansaço dos que foram para outros países africanos e que, porque não sabiam se regressariam, se sentiam como estrangeiros, como estando noutro continente. Pode também entender-se que estes versos sugerem que o homem negro sai do seu continente para trabalhar e prosperar fora, mas, ainda assim, carrega a África consigo. O mar é o elemento responsável pela separação e distanciamento, pelo que guarda vivências dolorosas.
            A segunda estrofe desnuda a miséria de África (“Além desta África / de mosquitos”), os contrastes, quando se refere às “almas negras” enfeitadas de “sorrisos brancos” e a caridades e medicinas que matam, e as práticas de feitiçaria (“e feitiços sentinelas”). O dístico seguinte prossegue a descrição das ideias negativas associadas ao continente africano: “África de atrasos seculares e corações tristes”.
            A quarta e a quinta estrofes retratam a verdadeira África segundo os olhos do sujeito poético: possui beleza, força, amor, trabalho e, portanto, produtividade. O «eu» afirma que vê além, ou seja, vê o futuro e o que há de bom no continente explorado. Além disso, fala do amor que nasce da boca virgem, indicando que vem da fala pura, das lianas, que designam os laços com a natureza, com as origens, os quais podem ser compreendidos como o amor que cresce e se difunde e floresce como uma planta trepadeira.
            De seguida, descrevem-se as mãos esculturais, que estão ligadas contra “as catadupas demolidoras do antigo”. As mãos são a metáfora do trabalho e as catadupas (a saída ou corrente impetuosa) a metáfora da violência do passado. Deste modo, o trabalho coletivo constitui a forma de extirpar o mal do passado e de fazer algo novo.
            Na última estrofe, o sujeito poético conclui a sua visão sobre África: além do cansaço vivido, ela está viva e o sujeito poético sente-a nas mãos dos que resistiram (dos fortes) e fundem-se com amor (rosa) e alimento (pão), sendo, portanto, o futuro.
            Em suma, o poema trata o tema da identidade africana e apresenta-se o passado de sofrimento como forma de estabelecer povos fortalecidos, atribuindo-lhes a responsabilidade de construir um futuro independente.

Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto


            Ao contrário de outros textos de Agostinho Neto, este poema representa não apenas o sofrimento dos negros colonizados, mas também as particularidades da sua cultura.
            O sujeito poético abre o poema com uma imagem da natureza, associa as árvores características de continente africano (os embondeiros e as palmeiras) com seres humanos, humanizando-as, ao referir-se a “braços erguidos” para remeter para os galhos e a “silhuetas escuras”, isto é, a sombra das árvores. O sujeito poético realça nestes versos a relação dos africanos com a natureza, nomeadamente com as árvores, que, como já foi referido, são humanizadas, indiciando o seu valor sentimental. Por outro lado, a sinestesia “cheiro verde” e a alusão ao fogo trazem para o poema os cheiros e as cores africanos com estreita ligação à luta africana pela liberdade.
            A segunda estrofe introduz novos ambientes, como a estrada, um quarto e a cama, trazendo distintas visões do povo: os trabalhadores que sofrem (os carregadores bailundos, isto é, indivíduos que pertencem aos grupos étnicos dos Bailundos, de Angola); a mulata enquanto representante da miscigenação e da vaidade feminina da mulher africana (“a mulatinha de olhos meigos” – atentar na expressividade do diminutivo e do adjetivo «meigos»); o homem africano com ideias e desejos estrangeiros como o de “comprar garfos e facas para comer”. Além disso, é apontado um ambiente não retratado concretamente, que é o vestuário da figura feminina: “A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas”, representando a musicalidade e a alegria do povo que dança, ou até a fertilidade.
            Na terceira estrofe, o sujeito poético promove um encontro entre o humano e a natureza (“No céu o reflexo do fogo”; “No ar a melodia quente das marimbas” – as marimbas são um instrumento musical formado por placas de madeira ou de metal, graduadas em escala sobre cabaças, que percutem com banquetas, ou seja, a música produzida pelos homens em contacto com o ar e o fogo também produzido por eles refletindo no céu. “As silhuetas dos homens negros batucando de braços erguidos” constitui a retoma ou a lembrança / semelhança dos baobás descritos na primeira estrofe, reforçando a ideia do encontro entre a espécie humana e a natureza.
            A quarta estrofe repete excertos da segunda, remetendo de novo para a musicalidade que perpassa todo o poema. Por sua vez, o título da composição indicia que a poesia africana não aborda apenas o sofrimento do africano, mas a cultura dos povos. 

Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto


             Este poema faz parte da obra Sagrada Esperança, publicada em 1953, e apresenta-nos a imagem do africano cheio de esperança e à procura da construção da sua identidade nacional.

            A composição é construída, gráfica e formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.

            Os cinco versos iniciais formam uma espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido. Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois, desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.

            Logo no primeiro verso, a forma verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização, refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema segue em ritmo de caminhada.

            São vários os elementos da natureza evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”; “asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um percurso.

            A segunda estrofe mescla elementos musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor». Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando, antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do ser humano”.

            A terceira estrofe, através da presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das estrelas.

            A quarta estrofe, a última da primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do caminho.

            Separando as duas partes está um verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.

            A segunda parte aponta para a esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado, a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.

            A sexta estrofe alude à “seiva do raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida, enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do riso / sobre os campos de esperança”.

            As duas primeiras estrofes da segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida existente para a luta e para a caminhada.

            A liberdade reside nos olhos, os ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno, Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em rio).

            Ora, a presença do deserto e do rio reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural) ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”, oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.

            A última estrofe do poema, a última, de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do «eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.

Faleceu Angelo Badalamenti

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...