Este poema, que relata a luta de uma
jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos
Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras
e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático
AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No
que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas
métricas.
A única palavra que constitui o título
– Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos
índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para
eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam
gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como
malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a
criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do
encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos
concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas
imperfeitas e indignas da sua cultura.
No que diz respeito à estrutura do poema,
temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado.
Somos colocados perante quatro situações:
1.ª) Referência aos olhos.
2.ª) Referência ao rosto.
3.ª) Referência ao colo.
4.ª) Referência aos cabelos.
Em todos os casos, o sistema é o
mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por
alguém, que acrescenta algo mais.
Desde os primeiros versos, encontramos
um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo
outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha
do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de
Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o
trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja,
produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é
rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será
uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro
que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga
apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui
neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio
como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.
Seja como for, fica desde já
estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial
intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é
puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do
eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma
realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar
que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é
unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a
grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a
isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.
Porém, Marabá não se conforma e
prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são
da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são
esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto
de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza,
através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão
presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra
forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas
qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar.
Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos
outros, mesmo que tenha olhos belos.
De facto, a segunda e a terceira
estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela
própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro
(“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem
autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos
da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do
Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento
do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao
«céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do
mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas
mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro
mais puro” e com a beleza de um beija-flor.
Em suma:
1. Os olhos de Marabá são garços
(esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são
recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.
2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado
pela preferência por um rosto moreno.
3. O colo é flexível e elegante, mas
também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.
4. Ela tem cabelos louros e anelados,
mas o homem prefere-os lisos.
Por outro lado, o retrato de Marabá
pode ser sintetizado da seguinte forma:
• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente
brasileira;
• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela
sua própria comunidade;
• tem olhos garços (verdes);
• a sua pele é alva (da cor dos lírios);
• os cabelos são louros, longos e anelados;
• vive solitária, desprezada pela sua tribo;
• vive desiludida, por sofrer de
discriminação.
Este quadro permite concluir que
temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição
entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta
mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos
ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está
obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de
comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar,
as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços
preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do
facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam
símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a
consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus
relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não
correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que
os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido
excluída do povo de Tupã.
O verso seguinte confirma a
rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a
mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se
em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece
nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria
levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os
cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como
fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e
rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo
sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e
vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos,
compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no
paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam
por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que
fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.
Mediante isto, podemos concluir,
desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma
figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo
que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada
em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos,
para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está
condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que
potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que
apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste
modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem
à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma
reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes
derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a
impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio
«jamais» marca bem a sua solidão.
De facto, depois de todo o poema nos
colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes
finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia
/ Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”.
Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou
Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta
pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu
tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o
qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de
cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se
tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que
agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do
interlocutor venceu.
O poema põe em discussão a
importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia
mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa
autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento,
inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é
determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos
discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se
consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor.
Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na
coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível
para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno
solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de
Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se
fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de
miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota
da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por
outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem
vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem
vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim
sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do
povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê
ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de
preservação, a superioridade da sua beleza étnica.
No que diz respeito a influências, no
poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça,
com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote
utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a
rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão
amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o
poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de
amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor,
lamentando o desprezo a que é votada.
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