O tema do poema é a espera,
ou melhor o poema é um lamento do que passa durante p período de espera, com
todos os sentimentos subjacentes: amor, saudade, fidelidade.
Por outro lado, o texto denota
muitas semelhanças com as cantigas de amigo: o sujeito é feminino (“Eu sou
aquela…”); o conteúdo aproxima-o das albas ou alvoradas, pela referência ao amanhecer;
o amado / amigo está ausente; a mulher apaixonada exprime o seu lamento.
Quanto à construção do poema,
podemos encontrar dois pólos. Por um lado, somos confrontados com o sentimento
da índia e com a construção da sua psicologia. Desde logo, há uma alteração do
ambiente que a rodeia: começa-se com a noite, que vai progressivamente dando
origem ao dia, o que implica uma descrição diferente da natureza. Por outro
lado, com o surgimento da manhã, as flores abrem e a mulher começa a desanimar
com a espera. A ligação entre a natureza e a mulher tem um grande efeito lírico
e harmonioso.
A primeira estrofe abre com uma
interrogação retórica que mostra a tensão e a ansiedade amorosa do «eu»
feminino pela ausência e, sobretudo, pela demora da chegada do amado (Jatir),
que ela questiona, sentimentos traduzidos pelas expressões “a tanto custo” e “voz
do meu amor”. A viração e o vento simbolizam a mudança, enquanto as folhas
representam o movimento de iniciação ou ritual. Além disso, a cena da espera
tem lugar à noite: a “viração da noite”, que é doce porque rumoreja
(personificação) e indicia a bisca de intimidade, está ligada ao bosque, que se
opõe ao espaço elevado (a colina ou a montanha), característico do dia. Nesta
perspetiva, dá-se a eufemização da não chegada do objeto amado, através da
personificação da voz do amor e do vento, na noite e no bosque. Os elementos da
natureza, em suma, corroboram o estado de espírito da mulher, a sua angústia, a
sua ansiedade, etc. Essa harmoniosa com a natureza, com aquele cenário harmonioso,
parece transformar Jatir, o amado, na figura do homem/ideal que ela ama ou que a
desperta para o amor. Deste modo, é possível questionar se ela ama mais o
sentimento do amor e a sua sensorialidade ou o homem.
Na segunda e na terceira estrofes, é
descrito o leito de amor, feito sob a copa de uma “mangueira altiva”, árvore que
simboliza o elemento fecundador, desde logo porque o sujeito poético se
encontra debaixo dela e em contacto com a terra, iluminada pela lua, símbolo da
reprodução e da fecundação. E tudo isto sucede à noite, o tempo em que a
semente lançada no solo germina, para nascer de dia. O facto de a mulher estar
debaixo da mangueira e sobre um leito coberto por um tapete de folhas e
iluminada por flores associa-se à ideia da maternidade. Estas imagens remetem
para o imaginário do amor e para a fecundação, associadas à expectativa do
amor. Nota-se ainda que a mulher está ansiosa e tensa, porém esperançosa, visto
que, quando se refere ao leitor, o apelidar de “nosso”, apontando para a ideia
de partilha já assegurada.
Deste modo, o nome «leito»,
determinado pelo determinante possessivo «nosso», sugere claramente que se
trata do leito nupcial, que, ao ser coberto por ela, de forma zelosa, com um “mimoso
tapiz de folhas brandas”, no momento em que o “frouxo luar brinca entre flores”,
evidencia a comunhão do sujeito poético com a natureza. Tudo isto decorre num
cenário harmonioso, mesmo que noturno, como se comprova através do uso dos
adjetivos “mimoso” e “brandas”, bem como do verbo “brincar”. Estas imagens, por
outro lado, sugerem um ambiente onde reina a paz e o bem-estar. O papel da
natureza é o de amiga e bem-feitora, tal como sucede em várias cantigas de
amigo.
A imagem do leito e a sua ligação à
terra transformam as folhas (símbolo do progresso e da transformação) em algo
também ligado à noite, visto que a sua seiva, potencialmente transformadora,
está ao serviço do descanso ou da resignação. Por seu turno, a mangueira,
enquanto árvore, é o símbolo da vida em perpétua evolução e em ascensão para o
céu, evocando a simbologia da verticalidade. Além disso, está associada à
construção de um cenário íntimo, pelo que pode pensar-se também como símbolo
fálico. Por último, há que considerar que esse cenário natural traduz toda a
doçura resultante do ansiado encontro amoroso: o mimoso tapiz de folhas
brandas; o frouxo luar brinca entre as flores; o bogari solta o mais doce aroma
(estrofe seguinte).
Na terceira estrofe, a imagem da
flor que se abriu e do doce aroma que se solta do bogari remetem para o
desabrochar da mulher, que reconhece estar pronta para o amor, tendo consciência
de que deve ficar à espera, no silêncio da noite: a flor abriu-se, o aroma
expande-se, o bosque exala. Esse desabrochar e essa consciência são recentes (“há
pouco”) e são a consciência do conhecimento do amor.
Na quarta estrofe, o amor é
apresentado como “mágico”, mas natural(“respira-se”), luminoso, mas longínquo (“lua
e estrelas no céu”), místico (“preces”), contudo vivido como dom supremo (“melhor
que a vida”). O último verso da quadra confirma que se trata de um amor
perfeito: “um quebranto de amor, melhor que a vida”.
Na quinta estrofe, a mulher é
associada à flor – símbolo da beleza e do princípio passivo do amor –, que
depende do elemento ativo, o sol (o amado), fonte de luz, calor e vida. A
figura do sol simboliza a potência masculina, porém ela ainda não é conhecida,
apenas vislumbrada, como “doce raio de sol” que dá vida. A figura feminina é
uma espécie de mulher virtual, dado que lhe falta o raio de sol – o princípio masculino
– para a efetivar como mulher. Assim sendo, o sujeito poético tem consciência
de que o ser feminino apenas se revela e se completa com o amor e que este lhe
proporciona vida. A imagem dos versos 3 e 4não deixa lugar a dúvidas: a jovem é
a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para se realizar e
viver: “Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida.”
As duas estrofes seguintes constroem
a ideia do amor único e da dedicação exclusiva ao amado a partir de uma série
de contrastes: espacial (vales – feminino vs. montes – masculino, lago –
circundado do corpo vs. terra – circundante), pontuando o imaginário do corpo;
temporal (dia -masculino vs. noite – feminino), acentuando o género; abstração
(pensamento) vs. concretude (posse: “és meu, sou tua”), indicando que a
interação entre a figura masculina e a figura feminina é caracterizada pela
exclusividade; pragmática (visão / conhecimento – olhos), contacto (lábios),
atividade (mãos na cinta). Por outro lado, o amor vence todos os obstáculos (“Sejam
vales ou montes, lago ou terra, / Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”); a
figura feminina é idealizada – ela dedica total fidelidade ao seu amado: “Outro
amor nunca tive: és meu, sou tua!”, etc.
O último verso da antepenúltima
estrofe (“A arazoia na cinta me apertaram”) configura a materialização de um
compromisso, a realização de um voto. Os índios usavam ao redor da cintura uma
saia de plumas de ema, em certas cerimónias, e as viúvas, na Idade Média,
costumavam depositar um cinto sobre a tumba dos maridos quando renunciavam à
sua sucessão, o que aponta para a estreita relação entre cinto, castidade e
fecundidade. No mundo greco-romano, quando uma jovem desapertava o seu cinto,
entendia-se que setinha entregado a um homem. Assim, a arazoia na cinta
associa-se à castidade, passivamente imposta e aceite, neste caso, pela cultura
indígena. Nesta estrofe, há a tomada de consciência por parte da mulher de que
está pronta para a vida amorosa e para a exclusividade do amor, visto que a
arazoia ainda lá está, ou seja, estamos perante a imagem da mulher que ainda é
virgem e a espera por que tal aconteça.
A última estrofe dá conta da
desilusão do sujeito poético: com a chegada da manhã (“lá rompe o sol”), a
esperança e a expectativa dão lugar à deceção e à tristeza, pois Jatir não
responde ao seu chamamento. Deste modo, pede à brisa da manhã que leve consigo
as folhas do leito inútil: “nem tardo acordes / À voz do meu amor, que em vão
te chama!”; “do leito inútil / A brisa da manhã sacuda as folhas!”. Isto não
significa, porém, o fim da esperança, pois Tupã vai sacudir as folhas, desfazer
o leito, mas elas continuarão a existir.
Assim, a mulher amada somente a
imagem, a memória, visto que Jatir não acode ao seu chamamento, está longe. A
interpelação de Tupã, um deus masculino da mitologia tupi-guarani que
representa o trovão, vai no sentido de ele observar o sol que surge no
horizonte. O leito de folhas de árvore representa a evolução da condição de
menina para a de mulher, condição inútil, mas esperançosa porque o leito é
visitado apenas pela brisa, imagem do anseio e da esperança femininas.
O pedido da jovem a Tupã para que
faça com que a brisa (o desejo) sacuda as folhas do leito traduz o seu sonho e
desejo de amar. Tupã sabe onde nasce o sol, que este é um elemento masculino e
que a sua natureza é procurar a mulher para se completar. Esse desejo de amar e
a comunhão com o amado são traduzidos, no poema, através da progressão temática
e de contrastes: chamada vs. não resposta; esperança vs. impaciência/ansiedade;
espera vs. ausência do esperado; vida vs. não-vida. Estas polaridades revelam o
universo de valores do sujeito poético: a mulher e o homem necessitam um do
outro para se tornarem seres completos.
Em suma, este poema configura também
uma declaração de amor marcada pela ausência e pela angústia da espera por
parte da mulher, cujo estado de espírito vai evoluindo ao longo da composição.
Inicialmente, encontramo-la de noite, questionando a ausência e a demora do
amado, mas esperançosa no regresso de Jatir, cujos passos são movidos pela voz
do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (a floresta, debaixo de uma
mangueira). O decorrer da noite traz o vento e as folhas fazem barulho nos
altos bosques, enquanto a jovem permanece sob a mangueira, local onde foi
construído o leito, que ela cobriu com suaves folhas e que brilha através do
luar que rompe entre as flores. A noite avança pela floresta e a flora, na sua
diversidade, solta os seus aromas, entre as quais estão os das flores do
tamarindo e do bogari.
A lua e as estrelas brilham, os perfumes
das flores noturnas espalham-se levados pela brisa, construindo-se, assim, uma
imagem romântica, um ambiente mágico em que o sujeito poético é transportado
para um mundo onírico, no qual ela pode viver o seu grande amor, pois aí não
existe a triste realidade da vida, uma realidade de abandono e de solidão.
O alvorecer rompe e com o nascimento
do sol as flores começam a desabrochar, enquanto a mulher, qual flor vegetando
sem o astro-rei, espera que a energia deste lhe dê ânimo para prosseguir a
espera. O sujeito poético imagina o seu amado caminhando, de dia ou de noite, atravessando
vales, montes, lagos, terras, a quem ela devota todo o seu carinho e desejo, pois
ele é o seu único amor: os seus olhos nunca viram outros olhos, nem os seus
lábios beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram a sua saia na cintura.
No verso 29, a narração retoma a
terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma
da noite anterior. Aqui começa a mostrar-se desiludida, pois, tal como o
perfume das flores, a sua esperança começa a esvair-se com a chegada do dia.
A nona estrofe retoma a primeira para
mostrar a consciencialização do sujeito poético em relação ao não regresso do
amado. Assim sendo, o leito, tão bem cuidado e construído com amor, torna-se
inútil sem a presença do homem, por isso pede à brisa que o desfaça.
Formalmente, o poema é constituído
por nove quadras, em versos decassilábicos brancos, com ritmo regular, com
exceção da quarta estrofe e da rima toante entre “brisa” e “vida”, que remetem para
a ideia de mudança, veiculada pela brisa. Estilisticamente, destacam-se as
aliterações em torno do som /s/, que sugerem o som da brisa e o balanço das
árvores, e em /n/,que sugere lentidão, que se coaduna com a ideia da espera
lenta da jovem relativamente ao seu amado, que não chega. Tem igualmente
importância a reiteração de determinados vocábulos, como “amor” (cinco vezes), “folha”
(três vezes), “flor” (cinco), “leito” (duas), “lua” (duas) e “sol” (três).
Estas repetições apontam para a temática que domina o poema (o amor), para o
ambiente natural em que se localiza (sol, lua) e para um espaço específico (folhas,
flor, árvores), formando a imagem de uma floresta. Temos também a repetição de
certas palavras no mesmo verso: “prece” (v. 11), “olhos” (v. 25), “lábios” (v.
26), que reforçam a imagem da pureza (prece) que surge a par da sensualidade
(olhos e lábios), uma imagem estereotipada da figura feminina, embora neste
caso se refira a um ser feminino indígena, interpretada e idealizada pelo olhar
e pela cultura europeus. Além disso, encontramos a repetição parcial do verso 9
(“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco”), no 29 (“Do tamarindo a flor jaz
entreaberta”), a qual marca a progressão do tempo desde o anoitecer até ao
amanhecer, tendo em conta que a flor referida abre à noite e fecha com a chegada
do sol. Este desabrochar e fechar da flor coaduna-se com os sentimentos e as
esperanças do sujeito poético, que está esperançado à noite, mas, com a chegada
do astro-rei, no dia seguinte, vê essa esperança apagar-se, ir-se desfazendo
lentamente. Por seu turno, o verso 2 (“À voz de meu amor moves teus passos?”) repete-se
parcialmente no 34 (“À voz do meu amor, que em vão te chama!”), marcando-se
assim dois tempos: no primeiro, correspondente à primeira estrofe, o sujeito
poético ainda acredita que a sua voz pode guiar os passos do seu amado durante
a caminhada de regresso, atravessando vales e montanhas; no caso do segundo, a
presença da locução adverbial “em vão” aponta para a inutilidade da espera e a
tomada de consciência de que Jatir poderá não voltar de todo. O verso 10 (“Já
solta o bogari mais doce aroma!”) indicia que tanto a flor do bogari como a do
tamarindo exalam um melhor aroma durante a noite do que de dia, ao ser repetido
no verso 30 (“Lá solta o bogari mais doce aroma”). O sujeito poético compara a
vitalidade do seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade
do aroma, que é mais forte à noite. Contudo, ao amanhecer, está sem ânimo, sem
vitalidade, com pouca esperança de que o seu amado regresse. Ainda no que diz
respeito a recursos estilísticos, o poema contém diversas metáforas. Nos versos
9 e 10 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce
aroma!”), marca-se a passagem da noite para o amanhecer através do desabrochar
das flores noturnas que exalam um doce perfume. A metáfora/imagem presente
entre os versos 29 a 32 permite associar os sentimentos da mulher à natureza.
Assim, se a intensidade do aroma das flores era superior durante a noite, as
esperanças da jovem, que durante a noite fortaleciam o seu coração, estão-se
desfazendo à medida que o dia se aproxima.
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