Português

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Narrador / Personagem / Escritor-Furão em O Delfim

            O narrador, desde o início da narrativa, aponta para o espaço da Gafeira (atente-se no uso do deítico espacial «cá»), visto a partir da sua perspetiva («estou»).

            Este início da obra remete para a dupla função de narrador e personagem, porém a sua presença não se limita a isso, visto que revela constantemente a sua consciência do fenómeno da criação literária, introduzindo mesmo a figura de autor. Ele próprio se intitula «escritor furão», visto que se reconhece como um pesquisador da verdade oculta, numa constante dupla caçada.

            A narrativa é construída a partir das recordações de diálogos que manteve com os donos da Casa da Lagoa, de situações que presenciou ou não, mas que considera plausíveis, de atitudes que observou, de tensões que pressentiu ou julgou pressentir, e de versões várias sobre um incidente.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O triângulo amoroso de O Delfim

             Na obra, encontramos uma espécie de triângulo amoroso, motivado pelo auditório e constituído por Tomás Manuel, Maria das Mercês e Domingos:
            Tomás fica no topo do triângulo, por causa do seu estatuto de chefe incontestado e incontestável, situado num plano superior ao das outras duas personagens. Maria das Mercês e Domingos aproximam-se por virtude do seu estatuto de inferioridade, ela por pertencer ao género feminino, ele por ser criado, maneta e mestiço. Ao viverem sob o domínio de Tomás Manuel, a aproximação dos dois irá promover um desequilíbrio na narrativa: ao cometerem adultério, tudo rui à sua volta, ambos morrem e, com a sua morte, brota um outro tempo para a população da Gafeira, que passará a ter livre acesso à Lagoa.
            Deste modo, podemos concluir que a forma de Tomás Manuel era aparente, visto que bastaram duas personagens de condição inferior e sem poder para mudarem todos os “valores antigos” a que o Engenheiro teimava em se agarrar.
            Por outro lado, este adultério conduz a uma mudança que simboliza a ideia de que a ditadura também poderia ser derrubada, desde que as pessoas se unissem contra o então governo de Marcelo Caetano, também ele considerado o “delfim” de Salazar.

A evolução do Natal


Glen, a Lebre

Almeida Garrett, o refundador do Teatro Português


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Análise da Cena 9 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Após a partida de Manuel de Sousa, Maria e Telmo, D. Madalena está finalmente só – ou quase, pois tem a companhia de Frei Jorge –, no local onde se dará, pouco depois, o encontro fatal com o Romeiro: a sala dos retratos.
 
Esta cena é constituída por uma única fala, sob a forma de monólogo, de Frei Jorge. Nela, o frade, que até ao momento se tinha mantido distante de agouros e sempre racional, qual coro da tragédia clássica, deixa-se contaminar pelo clima ominoso criado e também ele começa a adivinhar que se aproxima uma tragédia.
 
Deste modo, podemos concluir que a função deste monólogo é a seguinte: Frei Jorge transmite os seus pensamentos mais íntimos, reafirmando, angustiadamente, o pressentimento de uma iminente tragédia, que ele quer esconder a todo o custo da sua família. Por outro lado, o monólogo, para o leitor, constitui uma preparação, um indício trágico de uma desgraça futura.
 
Frei Jorge desempenha, de novo, uma função idêntica à do Coro da tragédia clássica. As suas palavras lembram-nos mais uma vez a sua atuação moderada e sensata ao longo da peça, procurando sempre minimizar as preocupações da família e moderar as suas reações. A apreensão que, agora, manifesta é, inevitavelmente, de mau agouro.

domingo, 1 de janeiro de 2023

"Oh Girl", Chi-Lites


1972

Análise do poema "O Gondoleiro do Amor"

     Este poema é apresentado como uma barcarola, uma composição poética característica da poesia medieval. O vocabulário também é medievalista: gondoleiro. Isto são características românticas, ou seja, estamos perante o regresso ao medievalismo:
                - ritmo ágil;
                - uso da redondilha maior e o nome "barcarola";
                - vcabulário;
                - toda a sensualidade que existe no poema:
                    Ex.:    "Como as noites sem luar...
                                São ardentes, são profundas,
                                Como o negrume do mar."
    O sujeito poético descreve a amada desde os olhos, voz, sorriso, seios, até ao colo. Ignora os cabelos. Isto é uma marca de sensualismo e medievalismo.

A engorda


 

sábado, 31 de dezembro de 2022

Última homenagem a Pelé

Análise do poema "Os Três Amores"


             O poema é constituído por três sétimas com rima emparelhada, cruzada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABCADDB, com um verso na primeira estrofe, e versos decassílabos.

            O tema é o amor, tratado em três partes distintas, mas de construção paralela: I: Tasso – Eleonora; II: Romeu – Julieta; III: D. Juan – Júlia. Os nomes são exemplificativos, porque personificam uma situação própria e simbólica. A mudança de personagens condiciona a mudança de ambiente. A construção formal é a mesma nas três estrofes; muda o motivo, os símbolos e o ambiente. Isto aponta para a divisão do «eu» romântico abstrato concretizado em personagens reais. Se atentarmos na data de escrita do poema (setembro de 1866), podemos especular que a composição tenha sido escrita para a sua amada, a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Nela, o «eu» cita três diferentes situações vivíveis com a mulher amada, aludindo a três obras importantes da literatura mundial para descrever esses momentos com a mulher: a ópera Torquato Tasso, a peça Romeu e Julieta e El Burlador de Sevilla o El Convidado de Piedra.

            Assim, a primeira estrofe remete para a mencionada ópera, da autoria de Gaetano Donizetti, que decorre na cidade italiana de Ferrara e se baseia na vida do poeta Torquato Tasso, que vive um romance cheio de desencontros e escândalos que termina com a perda da amada. O sujeito poético encarna o poeta italiano e retrata o amor de forma idealizada, um amor não realizado, embora sublime e sereno. Com efeito, há uma apropriação da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem ele dedicara os seus versos e que acaba ensandecido pela ideia fixa de perseguição religiosa. Tasso é o cantor do sofrimento amoroso, que chora (canta) a cidade da sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão.

            A segunda estrofe remete para a peça Romeu e Julieta, também ela situada em Itália, concretamente na cidade de Verona, onde decorrem os amores impossíveis e contrariados entre dois jovens de famílias rivais, uma paixão que termina de forma trágica com a morte dos dois apaixonados. O sujeito poético deixa de lado o plano espiritual e passa ao terreno amoroso. Para isso, pede a ajuda dos ícones da literatura amorosa, ainda que trágica: Romeu e Julieta. Ao encarnar o herói de Shakespeare, o «eu» alude ao amor transcendental, isto é, ao amor que, apesar das barreiras sociais que o obstaculizem, se concretiza. O recurso à conjunção coordenativa copulativa «e» no último verso une as duas figuras femininas referidas no poema: Eleonora é também Julieta, isto é, são duas mulheres numa (quando concluída a terceira estrofe, serão três numa). Dito de outra forma, a mulher amada pelo sujeito poético é Eleonora, mas também é Julieta e ainda Júlia, ou seja, ele deseja as várias facetas da mulher. Para ele, o amor não possui apenas uma face, mas várias, e a mulher é, ao mesmo tempo, pura e sensual.

            Por sua vez, a terceira estrofe contém referências à obra de Tirso de Molina, cujo protagonista é D. Juan, um jovem belo que seduz Júlia, uma rapariga espanhola de origem nobre que assassina o pai. Estamos na presença de um amor sensual, carnal e amaldiçoado, cujo desenlace é igualmente trágico. O amor platónico cede lugar ao desejo ardente, à volúpia e à paixão descontrolada: “Na volúpia das noites andaluzas / O sangue ardente em minhas veias rola…”. Como não poderia deixar de ser, o vocabulário traduz esse amor/paixão/desejo, através de uma linguagem repleta de erotismo: ”sangue”, “ardente”, “leito”, “seio”, “desfaço-te”. Atente-se também na expressão «Eu morro», que alude à petit mort, isto é, ao orgasmo, se, por acaso, ele lhe desfizer a mantilha. Em suma, esta estrofe alude claramente à iniciação amorosa de D. Juan por Júlia, a espanhola fogosa.

Análise do poema "Boa noite"


             O poema “Boa noite”, de 1868, faz parte da obra Espumas Flutuantes, único livro de Castro Alves publicado em vida, e narra, através de um pretenso diálogo, com características de monólogo, uma aventura amorosa que se desenrola em dez quadras, onde se dá nota do envolvimento do «eu» poético com a mulher amada através dos ritmos e formas da natureza, que testemunham o drama da separação dos amantes, no domínio do tempo, entre a escuridão da noite e os primeiros raios da aurora (VENTURELLI, Suzette, in Arte e Tecnologia…).

            O poema contém uma epígrafe, que é a primeira fala de Julieta da cena V de Romeu e Julieta, em francês, e que introduz o tema do poema. Nesse passo da obra de Shakespeare, Romeu apressa-se para partir, pois o dia está a nascer, o que pode denunciar a sua presença ali, nos jardins dos Capuletos, e, consequentemente, o encontro furtivo de ambos, porém Julieta tenta convencê-lo de que o canto que ouvem pertence ao rouxinol, ave que canta à noite, e não à cotovia, que anuncia a chegada do dia. Isto significa que Julieta não quer que o amado parta. Esta é uma característica tipicamente romântica. De facto, a mulher desempenha um papel ativo no relacionamento amoroso, procurando impedir a partida do «eu», fazendo uso das artimanhas da sedução, nomeadamente apertando-o contra os seus seios, entre beijos, abraços e, sobretudo, descobrindo o peito. Perante este cenário, quem deixaria essa alcova?

            A composição abre com o «eu» poético anunciado que “é tarde”, por isso ele vai-se embora. Estas atitudes encontram-se noutros poemas de Castro Alves e torno da figura de D. Juan, já que este seduz a mulher e depois abandona-a. No entanto, neste poema, esse esquema é desrespeitado, visto que o abandono não se concretiza, dando lugar ao jogo sensual, que vai da necessidade de ir ao desejo de ficar. De facto, nas duas estrofes iniciais, o sujeito lírico, mesmo anunciando a sua partida, deseja ficar e sente-se seduzido pela amada: “Boa-noite, Maria! É tarde…. é tarde… / Não me apertes assim contra teu seio.”; “Boa-noite!... E tu dizes – Boa noite. / (…) / Mas não digas assim por entre beijos… / Mas não mo digas descobrindo o peito, /– Mas de amor onde vagam meus desejos.”

            Na terceira estrofe, o sujeito poético chama por Julieta e refere-se a ela até à oitava estrofe, e fá-lo através de uma linguagem sensual e erótica, que se estende por todo o poema, numa gradação de volúpia que alimenta ainda mais a vontade de ficar: “Desmanchando o roupão, a espada nua – / O globo de teu peito entre os arminhos”; “os teus contornos”; “afago de meus lábios mornos”. A descrição do espaço amoroso, tal como a descrição do corpo da mulher, é alimentada com o fogo da paixão. Nesse passo, as imagens ligam-se à noite, o tempo dos amantes: “Boa-noite”, “a lua, “é tarde”, “cabelo preto”, “a frouxa luz da alabastrina lâmpada”, “negro e sombrio firmamento”. Na sétima estrofe, encontra-se outra cena sensual em que ocorrem imagens eróticas como a personificação da luz a lamber os contornos da mulher e a menção a um fetiche, sugerindo o ato sexual pela aproximação dos lábios do «eu» poético aos pés da mulher amada: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada / Lambe voluptuosa os teus contornos… / Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / Ao doudo afago de meus lábios mornos.”

            Note-se, por outro lado, que há a fragmentação da mulher, aludindo a uma possível infidelidade amorosa. De facto, a figura feminina duplica-se: primeiro é Maria, depois Julieta, Marion e, por último, Consuelo. Estas quatro mulheres representam uma única aventura amorosa que decorre entre a noite e o dia. O “Boa noite”, que, de início, soa como forma de cumprimento noturno de despedida e separação (o «eu» poético deseja ir-se embora), no final parece configurar-se como abandono e entrega no reduto da amada, mesmo que se trate de uma entrega dúbia, pois o dormir, no contexto do “negro e sombrio firmamento” do cabelo da mulher, assume ares de morte, de mergulho na noite, de dissolução e desdobramento do sujeito poético num Eros infinito, negro e sombrio, ligado ao reino de Tânatos, no desenvolvimento do poema.

            O «eu» poético, assim como Don Juan, não se contenta com uma única mulher, quere-as todas. Ele encontra-se em busca permanente pela mulher ideal, por isso, a mulher que já foi Maria, na primeira estrofe, e já foi Julieta, na penúltima estrofe, é Marion, musa de Victor Hugo, e será, na última estrofe, Consuelo, “personagem de George Sand, que viria dar o título à poesia inspirada por Agnèse Murri em 1871.

            Um elemento que desempenha papel importante no poema é a natureza, que funciona como cenário dos acontecimentos, mas cujo papel não se esgota aí, pois reflete a mulher e até o «eu», conferindo grandeza à beleza feminina e ao próprio sentimento amoroso. Assim, a natureza é personificada e associada à mulher e às suas formas. Na segundo estrofe, o peito da mulher é apresentado como um mar de amor onde vagam os desejos do sujeito lírico. Na terceira, o canto da calhandra é comparado ao hálito da amada; enquanto na quarta o cabelo preto é a noite; na quinta, o peito é a lua; na sexta, as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima, a lâmpada lambe voluptuosa os contornos de Julieta; na oitava, das teclas dos seios saem harmonias e escalas de suspiros; na décima, o cabelo feminino é associado a um negro e sombrio firmamento.

            Para os dois apaixonados, a noite é o tempo do encontro, da sua vida enquanto amantes, enquanto que, para os restantes, é momento da «morte». O dia, por sua vez, é o momento da separação do casal, portanto de morte amorosa, e de vida para a realidade dos homens. Atente-se no seguinte verso: “A lua nas janelas bate em cheio”. Metaforicamente, podemos vislumbrar aqui a ideia da penetração carnal, dado que a janela, sendo um orifício, indicia a imagem da penetração.

            Por outro lado, o poema é bastante rico em matéria de recursos estilísticos. Destacam-se, desde logo, as anáforas, por exemplo nos versos 16 e 17, bem como no final da quarta e no início da quinta estrofe: “É noite ainda”; “É noite, pois…”. Segue-se a hipérbole, nomeadamente na comparação dos versos 37 e 38 (“Como um negro e sombrio firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo…”), onde o cabelo da mulher amada é comparado à escuridão da noite infinita, enfatizando o poder misterioso que este tem sobre o sujeito poético, o que acentua a hipótese da relação de Eros com a morte (negro e sombrio). Destacam-se também a enumeração e a gradação, que surgem sobretudo na oitava estrofe, quando das teclas do seio da amada o «eu» bebe “harmonias / Que escalas de suspiros”, ou na nona, quando a cavatina do delírio “Ri, suspira, soluça, anseia e chora…”. Por último, considere-se a apóstrofe, que é usada principalmente para pôr em evidência a(s) amada(s). A presença do hipérbato (“Se a estrela d’alva os derradeiros raios / Derrama nos jardins de Capuleto”, etc.) conferem uma certa feição barroca ao texto, mas de exaltação à vida, não de melancolia e pessimismo.

            O poema descreve quatro mulheres, que se poderão resumir a uma: Maria. A composição parte de Maria, passa pela platónica Julieta de Shakespeare, atinge o seu clímax na figura de Marion (Delorme) – a intensa e sexual musa de Alfred de Vigny e Victor Hugo – e termina em Consuelo, o protótipo de musa (grande cantora lírica) de George Sand, não tanto platónica ou sexual como Julieta ou Marion.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Análise do poema "Prometeu", de Castro Alves


             Prometeu é uma figura da mitologia grega que teria sido o criador da humanidade, que amassara em argila e água ou com as suas lágrimas. O mito é abordado por Hesíodo na sua Teogonia e, depois, em O Trabalho e os Dias: Prometeu, “hábil e de versátil astúcia”, era um dos filhos de Jápeto e Clímene, filha do Oceano. Os outros eram Atlas, o “esforçado”, Menécio”, o “glorioso”, e Epimeteu, o “torpe”. Enquanto reinou Cronos, homens e deuses conviveram pacificamente, mas, posteriormente, Zeus submeteu os primeiros. Para terminar com uma querela entre as divindades e os humanos, era necessário que se oferecesse um sacrifício a Zeus. Prometeu dividiu um boi em duas partes, cobriu a carne boa com a pele do animal e colocou os ossos debaixo de uma camada de gordura apetitosa. Como represália, Zeus negou entregar o fogo aos homens, que eram os protegidos de Prometeu.
            Epimeteu e Prometeu tinham sido encarregados de criar o ser humano e todos os animais: o primeiro concretizaria a criação e o segundo supervisionaria a tarefa. Deste modo, Epimeteu atribuiu a cada animal os vários dons (rapidez, força, coragem, asas, etc.),mas, quando chegou a vez do homem, formou-o do barro e, como já havia gastado todos os recursos nos outros animais, recorreu a Prometeu, que então roubou o fogo aos deuses, que era seu exclusivo, e o entregou aos mortais num galho oco, ensinando-lhes também várias artes. Tudo isto assegurou a superioridade dos homens sobre os demais animais.
            Como castigo, Zeus ordenou a Hefesto que acorrentasse Prometeu ao monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava o seu fígado, que, de seguida, se regenerava. O sofrimento só terminou quando Hércules, séculos depois, concluídos os seus doze trabalhos, matou a águia e o libertou. Além disso, Zeus ordenou a Hefesto que escupisse a estátua de uma mulher e pediu a Hermes que lhe oferecesse um espírito cínico e um caráter volúvel. Assim, foi criada Pandora (que mais tarde se casou com Epimeteu), cuja caixa continha todos os males e que, ao ser aberta, se espalharam e atormentaram a humanidade. No fundo da caixa, ficou somente a esperança para suavizar a condição humana.
 
            Este poema de Castro Alves pode dividir-se em duas partes: na primeira, dá-se a descrição do sofrimento de Prometeu, enquanto, na segunda, se estabelece a comparação da figura mítica com o povo de África.
            Na primeira estrofe, é descrita a agonia de Prometeu no cumprimento do seu castigo e feita a sua descrição, destacando-se a sua capacidade de resistências às agruras a que é submetido, tendo como consolo o pranto das Nereidas. Assim, é arrogante / desafiador, forte, “sublime no sofrer” e resistente (“vencido, – não domado”), vive em agonia (“Na sublime agonia arqueja Prometeu”), preso ao monte Cáucaso (“O Cáucaso é seu cepo”), constituindo o céu o seu sudário. O dramatismo da cena – o de alguém amarado a um monte, de olhar cravado no sol, arquejando – é acentuado pela referência crua ao abutre que lhe rói as entranhas.
            Na estrofe seguinte, é destacada a solidão de Prometeu: ninguém o consola, todos o abandonaram. Enquanto isso, no Olimpo, a morada dos deuses, Cupido brinca “por entre os seios nus” e as bacantes correm pelas montanhas dançando, nos seus tradicionais bacanais. Está, pois, aqui presente o contraste entre a agonia e a solidão de Prometeu e o ambiente de festa, erotismo e até alucinação vivido entre os deuses. Apenas um consolo existe para ele: o pranto das Nereidas.
            Posteriormente, a figura de Prometeu transforma-se na alegoria do povo. Assim, tal como a figura mitológica, o povo é infeliz, é um mártir eterno, tendo como algoz, não a águia, mas os maus reis e as leis injustas, e sendo o poder o instrumento de tortura. O mito é, assim, nacionalizado e transferido de espaço: Prometeu agoniza agora no continente sul-americano (“Era pequeno o Cáucaso… amarram-te nos Andes.”). O mártir já não é a figura mitológica, mas o povo, um “mártir eterno”, um “Prometeu moderno”, enquanto “O século da luz olha… caminha… ri…”. A herança do desenvolvimento humano é distribuída de forma desigual, e a figura da divindade castigada cruelmente – no caso do poema, encarnada no povo – anónima, portanto –, retorna sob a forma da crueldade, não dos deuses, mas dos “maus reis”.
            Os versos que se seguem aludem ao Iluminismo: “E enquanto tu, Titão, sangrento arcas aí, / O século da luz olha… caminha… ri…”. Ou seja, em pleno século das luzes, dominado por espíritos racionais e esclarecidos, Prometeu – o povo – continua a agonizar, só e desprezado por essas mentes. Estes versos mostram claramente a sua indiferença pelo sofrimento alheio. O Prometeu moderno – o povo – será cantado pelo «eu» poético, que coloca o seu discurso ao seu serviço enquanto espaço público para discussão dos destinos da humanidade: “A musa do poeta irá – filha do mar – / O oceano de sua alma… em cantos derrama…”.
            O importante no mito clássico era o castigo infligido a Prometeu; agora temos a solidão. O herói desafia o destino e sofre as consequências. Há uma transformação da figura mitológica num herói romântico, que, mais que o herói castigado, é o herói que fica só. Há um paralelo entre este herói e o homem negro, chamado «povo infeliz», povo mártir eterno. O poeta romântico tem consciência da sua missão: defender e cantar o negro. Assim sendo, o objetivo do poema é criticar a sociedade de então; está-se num século de luz onde ainda se pratica a escravatura, perante a indiferença geral.
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