Português

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Moral do conto "O Tesouro"


    Através deste conto, Eça de Queirós poderá ter tido em mente várias hipóteses, no que diz respeito à função catártica:
* a ambição é má conselheira;
* amor de irmão, amor de cão;
* quem tudo quer, tudo perde;
* a vida é o grande tesouro;
* sem comunicação e comunicabilidade, o ser humano torna-se um perigoso animal;
* a família deve ser um santuário, uma igreja doméstica;
* o BEM deve triunfar sobre o MAL.
 

Elementos simbólicos em "O Tesouro"


Número três: a perfeição a atingir.
    No conto, é evidente a insistência no número três. Desde logo, são três os irmãos; e três é também um símbolo da família – pai, mãe, filho(s). Porém, aqui encontramos uma família truncada, imperfeita – nem pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos progenitores dos fidalgos Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os substituísse), Rui, Guanes e Rostabal muito dificilmente poderiam desenvolver sentimentos humanos: vivem como lobos, porque, provavelmente, cresceram como tal.
    Por outro lado, as três figuras não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do mesmo modo que, apesar dos laços de sangue que os unem e de viverem juntos, não formam uma família e sempre pela mesma razão: são incapazes de afetos, de criar e mantar amor entre si. Note-se que, neste caso, se opõem aos animais a que são associados – os lobos –, dado que numa alcateia há ordem, estrutura e fortes ligações entre os seus membros.
 
Cofre: a ideia da essência humana, inalterável de geração em geração.
    O tesouro está guardado num cofre. Este objeto protege, preserva, permite que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. Igualmente significativo é o facto de o cofre ser de ferro, que é um material resistente, simultaneamente, à força e à corrupção.
 
Três chaves e três fechaduras: símbolo da felicidade, apontada quer pelo ouro quer pelo numeral três.
    As três fechaduras preservam o conteúdo do cofre(Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?), no entanto as três chaves produzem o efeito contrário, isto é, permitem abri-lo sem dificuldade, só que nenhuma delas, só por si, mas apenas as três em conjunto. Este dado significa que somente a cooperação dos três irmãos permitirá abrir o cofre e aceder ao tesouro. Assim sendo, será apenas por meio da solidariedade, da cooperação, da convergência de interesses e esforços que se tornará possível alcançar o tesouro que todos almejam. Como, em vez do espírito de cooperação, prevalece a ganância extrema, não lhes foi permitido possuir o tesouro. Quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número três volta a aparecer: “três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho”, numa espécie de sublinhado do irredutível individualismo que cultivam e que os conduzirá à tragédia.
 
Ouro: símbolo da perfeição, da salvação, da aquisição da espiritualidade, bem como da riqueza, que proporcionaria a fuga dos três irmãos à miséria.
    O ouro é um metal precioso e incorruptível, símbolo de perfeição. Para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos vivem mergulhados na decadência material, na mais extrema pobreza e na degradação moral. Não se lhes conhece uma atividade útil, um sentimento mais elevado, um afeto, um gesto de amor. Vivem com os animais e como os animais, contudo, como sucede para qualquer ser humano, existe a possibilidade de redenção. O tesouro está à sua disposição, mas, para que tal suceda, é necessário abandonar a cobiça, superar o egoísmo, estabelecer laços de solidariedade e verdadeira fraternidade.
 
Medranhos – medronhos (?): pobreza, miséria.
 
Moita de espinheiros: as dificuldades, as provações a que os três irmãos estão sujeitos.
 
Cova de rocha: a descida aos infernos, uma espécie de catarse, de purificação (remete para a busca do Graal).
 
Ferro: o material de que o cofre é feito representa a resistência à corrupção e o valor do tesouro nele guardado.
 
Dístico em letras árabes: mal legível, remete para um passado distante, mítico, um tempo de paz, equilíbrio e perfeição, uma idade de ouro que poderá ser recuperada por quem conseguir encontrar o tesouro.
 
Letras em árabe apontam para um tempo muito recuado:
® a idade de ouro há humanidade, una e perfeita;
® ou o mito de Adão e Eva, que, em virtude de um comportamento algo semelhante ao dos três irmãos, perderam a vida espiritual, o paraíso, sendo ainda castigados com a solidão;
® ou a época cultural em que os árabes estiveram na Península e que representa a origem da nossa língua e da nossa cultura.
 
Cerrar a fechadura: remete para a ideia de que os três irmãos jamais alcançarão a espiritualidade e a felicidade e prenuncia a desgraça, o silêncio e a morte.
 
Inverno: frio, aponta para a privação, a escuridão e a morte.
 
Primavera: o renascimento da natureza, a luz e o aparecimento do Sol criador; a vida. Em suma, a primavera significa a possibilidade de mudança, é o sinal da natureza que os homens devem saber interpretar e que os irmãos não sabem.
 
Domingo: dia do convívio, da festa, do culto, do divino, da família, tudo quanto os irmãos deviam ser e não eram.
 
Percurso temporal manhã ® noite: não sabendo ou não querendo aproveitar as oportunidades, só lhes resta uma triste noite, isto é, um triste fim.
 
Nome dos três irmãos:
Rostabal:   ® é o mais velho, logo tem o nome mais comprido;
® a repetição da vogal aberta pode sugerir animalidade, instintos, o que está de acordo com o seu retrato;
Guanes:  ® possivelmente o irmão do meio, o seu nome contém menos uma sílaba do que Rostabal e mais uma do que Rui, o que poderá querer sugerir que está a meio caminho entre a animalidade e a razão; assenta-lhe bem a traição;
Rui:     ® o mais novo, tem também o nome mais pequeno e é o mais avisado;
® estaria do lado da razão, mas também, por isso, da maldade pensada, pérfida;
® a proximidade sonora de Rui e ruim pode ser um indício dessa maldade.
 
Água: símbolo de vida (vemo-la na clareira, escoando-se por entre a relva que cresce e Rui procura combater o veneno com ela) e de purificação (com a água, Rostabal pretende livrar-se do sangue do irmão que assassinou).
 
Navalha / espada: instrumento de morte.
 
“Nuvenzinhas cor-de-rosa”: o sonho, a miragem da felicidade atingida através do tesouro.
 

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Linguagem de "O Tesouro"


 
1. Nível fónico
 
® Aliterações:
- em v: "... o vento da serra levara vidraça e telha..." ® sugere a força do vento;
- em l e r: "... estalaram a rir, num riso de tão larga rajada...";
- em t, b, d, p: "... com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas...";
- em r: "... o outro rosnou surdamente e com furor dando um puxão às barbas negras.".
 
 
2. Nível morfossintático
 
® Adjetivos: têm como função caracterizar as personagens ou o cenário e, por vezes, anunciam a ação trágica, antecipando os atos violentos dos três irmãos: "E de novo recuaram vivamente (...) numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal..."; "Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos."
 
® Advérbios de modo:
- "Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro..." ® caracteriza a brutalidade do movimento, logo da personagem;
- "E de novo recuaram, bruscamente se encararam..." ® aponta para a súbita desconfiança que se estabelece entre os três, motivada pela sua ambição;
- "Vivamente, Rui agarrara o braço ao irmão..." ® está relacionado com Rui e a sua astúcia;
- "Rui, atrás, puxava desesperadamente, os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso..." ® remete para o contraste comportamental entre os três irmãos e a égua;
- "Então Rui tirou, lentamente,  do cinto, a sua larga navalha."; "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração." ® remete para a frieza e para a crueldade da personagem;
- "E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente." ® traduz a satisfação de Rui por o tesouro ser só seu;
- "Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente." ® remete para o desespero que a personagem sente;
- "... esbugalhando pavorosamente os olhos..." ® traduz o terror de Rui, ao perceber que tinha sido envenenado e que ia morrer.
 
® Verbos: algumas formas verbais evidenciam o carácter das personagens através das referências às suas atitudes, funcionando, assim, como uma forma de caracterização das mesmas.
                Atentemos nos seguintes exemplos:
1.º) "Ao escurecer, devoravam uma côdea de pão negro." ® remete para a ideia de que o homem é um produto do meio, ou seja, a sociedade em que se insere determina a formação da sua personalidade e, consequentemente, o seu comportamento (característica realista);
2.º) relativamente a Rostabal, as formas verbais traduzem o seu instinto, o seu carácter animalesco:
- "Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.";
- "Pois que morra, e morra hoje - bradou Rostabal.";
3.º) noutras ocasiões, traduzem a brutalidade do movimento:
- "Rostabal rompeu de entre a sarça...";
- "Então Rui (...) deslizou até Rostabal, que resfolgava.".
 
 
                3. Nível semântico
 
® Comparações:
- "... esfaimados como eles...": a miséria em que viviam os três irmãos;
- "... mais bravios que lobos.": o seu carácter animalesco;
- "... os três senhores ficaram mais lívidos que círios.": a emoção dos três irmãos ao depararem com o tesouro;
- "Então Rui, (...) ergueu os braços, como um árbitro...": a astúcia, a liderança que assume;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro" (hipérbole): a grande envergadura / altura da personagem;
- "... onde fazia como um tanque...";
- "... dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente.": a estreiteza e rudeza do caminho;
- "... a espada, agarrada pela folha como um punhal...";
- "... como se perseguisse um mouro...";
- "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.": o crime, a crueldade do assassínio de Rostabal pelo próprio irmão;
- "... um suor horrendo que o regelava como neve."     E
- "... sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo."     E
- "... como se fosse um metal derretido.": conferem os efeitos do veneno.
 
® Personificações:
- "... silenciosa manhã de domingo...";
- "Pela ramaria andava um melro a assobiar.";
- "... a cantiga dolente e rouca...";
- "A tarde descia, pensativa...": o fim do dia (= o fim da vida de Rui);
- "E a fonte cantava...": o ruído da água;
- "... as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam...";
- "A fonte, cantando...": como se, com a morte do último dos irmãos, a justiça tivesse sido reposta e tudo regressasse à normalidade.
 
® Hipérboles:
- "... estalaram a rir...";
- "... num riso de tão larga rajada que as folhas dos olmos, em roda, tremiam...": esta e a anterior revelam a reação, misto de nervosismo e alegre loucura, à descoberta do tesouro;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro..." (ver comparações).
 
® Gradação: "Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo..." ® os efeitos do veneno, gradualmente mais fortes e horríveis.
 
® Metáforas:
- "... rugiu logo Rostabal.";
- "O outro rosnou surdamente e com furor...": ambas revelam o instinto, o carácter animalesco das personagens;
- "... um fio de água...";
- "... tinha já a espada nua.";
- "Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos...": uma ligeira brisa fez ondular as folhas das árvores;
- "Mal a noite descesse...";
- "Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera, lhe subia até às goelas.";
- "Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, roía.";
- "E a chama dentro galgava...";
- "... para apagar aquela labareda...": estas últimas quatro metáforas traduzem os efeitos do veneno em Rui.
 
® Hipálage: "... e levou as duas mãos aflitas ao peito.": a aflição face ao envenenamento.
 
® Antítese: "No terror e esplendor da emoção...".
 
® Sinédoque: "... a pelejar contra o Turco!" (= turcos).
 
® Sinestesias:
- "Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso.";
- "A tarde descia, pensativa e doce..." (ver personificações);
- "Com aquela cor velha e quente...".
 
® Ironia:
- "Grande pena!": o menosprezo para com Guanes;
- "Oh! D. Rui, o avisado, era veneno!": afinal, o mais avisado dos três irmãos deixou-se enganar e vai morrer em consequência disso.
 
® Exclamações:
- no início, traduzem a emoção dos irmãos quando encontram o tesouro;
- na parte final, traduzem a angústia e o desespero de Rui face ao envenenamento.
 
® Perífrase e eufemismo: "Não dura até às outras neves." (= Inverno).

Indícios trágicos de "O Tesouro"


    Frequentemente, nos textos de cariz narrativo e nos textos dramáticos, encontramos pistas (indícios, presságios) que antecipam o desenlace trágico da ação. É o que acontece, para citar as obras mais conhecidas da literatura portuguesa, em Os Maias, Amor de Perdição, Viagens na Minha Terra e Frei Luís de Sousa, por exemplo.
    Esses indícios passam despercebidos às personagens, mas não ao leitor mais atento. Ora, neste conto, encontramos também vários indícios de tragédia:
1.º) o ato de fechar o cofre: indício de que os três irmãos nunca conseguirão mudar de vida, alcançar a riqueza e a felicidade;
2.º) a cantiga entoada por Guanes ao dirigir-se à vila de Retorquilho, que repete durante o regresso, remete para a morte:
"Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...";
3.º) a cruz e o negro luto da cantiga indiciam a morte que Guanes planeia para os irmãos, mas, ironicamente, também prenunciam a sua própria morte (nenhum dos três reconhece ou interpreta esses sinais);
4.º) o bando de corvos: simbolizam a morte devido à sua cor preta e hábitos necrófagos;
5.º) o repicar dos sinos: indício de morte;
6.º) a existência de apenas duas garrafas, quando os irmãos eram três: Guanes traz de Retorquilho apenas duas garrafas. Rui estranha o facto, mas não suspeita da traição. Se as personagens conseguissem decifrar os sinais, poderiam fugir ao destino.

Modos de apresentação e expressão em "O Tesouro"


 
1. Narração

    O tempo predominante na narração é o pretérito perfeito.
    O predomínio da narração justifica-se pelo facto de tornar o ritmo narrativo muito rápido, sem grandes paragens da ação.
 
2. Descrição
 
    Neste conto, as descrições são bastante pormenorizadas.
    As classes gramaticais que constituem a descrição são:
® o adjetivo;
® verbos no pretérito imperfeito;
® os advérbios;
® vocabulário relativo às sensações;
® enumeração de elementos.
 
3. Modos de expressão
 
    O modo de expressão dominante é o diálogo, mas, ainda assim, é pouco utilizado, porque permite um ritmo mais rápido da narração:
• Discurso direto: “– Manos! O cofre tem três chaves… Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave.
• Discurso indireto: “… começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes.”
• Discurso direto e indireto: “Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam.”

Narrador de "O Tesouro"


 
1. Presença: não participante ® heterodiegético (narração na terceira pessoa).
 
 
2. Relações com a história:
- narrador observador;
- narrador interveniente (comentador): "Oh! D. Rui, o avisado, era veneno!".
Enquanto narrador interveniente, o seu papel é moralizador e punitivo.
 
 
3. Focalização / Ponto de Vista
 
    Num primeiro momento, a focalização é interna, ou seja, o narrador sabe tanto quanto as personagens. O leitor só sabe das suas intenções pelas revelações dessas mesmas personagens, o que é, aliás, uma das suas formas de caracterização.
 
    Num segundo momento (penúltimo parágrafo), encontramos uma focalização omnisciente, quer dizer, o narrador sabe tudo sobre as personagens e os acontecimentos: "Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.”

Tempo psicológico de "O Tesouro"

  
Inverno: tempo de dificuldades, de miséria e de fome.
 
Primavera: tempo de esperança duma vida nova, de regeneração, todavia frustrado pela ambição desmedida dos três irmãos.
 
Domingo: como dia santo, remete também para a possibilidade dum renascimento espiritual dos três irmãos.
 
Manhã ® tarde ® noite: a noite remete para a escuridão; por outro lado, este percurso remete para a vontade de cada um dos irmãos ficar com o tesouro, evidenciada pelo desejo de subida à serra com o cofre. A punição surge como obra da providência. A miséria física conduz à miséria espiritual.
 

Tempo do discurso de "O Tesouro"


    A ação estende-se do inverno à primavera e o seu núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A condensação de um tempo da história tão longa (presumivelmente três ou quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de sumários ou resumos (processo através do qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história). Nos momentos mais significativos da ação (decisão de repartir o tesouro e partilhar as chaves, bem como a argumentação de Rui para excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (a duração do tempo da história é igual à do tempo do discurso), sem, no entanto, a atingir).
    No texto, existe outro processo de redução do tempo da história, que é a elipse, isto é, a eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da narrativa. A parte inicial da ação é localizada no inverno (“… passavam eles as tardes desse inverno…”) e logo a seguir o narrador remete-nos para a primavera (“Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo…”).
    No que diz respeito à ordenação dos acontecimentos, predomina a cronologia. Só na parte final do texto surge uma analepse (recuo no tempo), quando o narrador abandona a postura de observador e adota a focalização omnisciente, para revelar o modo como Guanes tinha planeado o envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma o seu caráter traiçoeiro.
    Frequentemente, a analepse permite esconder do narratário pormenores importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um suspense favorável à tensão dramática.
 
                Em suma:
 
a) Anisocronias:
- resumo de acontecimentos:
. o 2.º parágrafo, em que é resumida a vida dos três irmãos durante todo o Inverno.
 
b) Isocronias: o diálogo entre Rui e Rostabal.
 
c) Anacronias:
- analepses:
. a recusa do empréstimo dos três ducados.
. o relato do que Guanes fizera em Retortilho (antepenúltimo parágrafo).
 

Tempo da história de "O Tesouro"


    A ação decorre entre o inverno e a primavera, mas concentra-se num domingo de primavera, estendendo-se de manhã até à noite.
    O inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono e a morte. É nessa estação do ano que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência económica, no isolamento social e na degradação moral (“E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.”)
    Por sua vez, a primavera tem uma conotação positiva: associa-se à luz, à claridade, à cor, ao aparecimento do Sol. Esta estação significa o renascimento da natureza, sugere uma vida nova (a descoberta do cofre é uma oportunidade dada às personagens de abandonarem a sua miséria), que se poderia ter estendido ao renascimento espiritual dos três irmãos, representado simbolicamente pelo domingo, um dia santo.

    Assim, o período compreendido entre o Inverno e a Primavera é vivido pelos três irmãos de uma forma miserável: fome, frio, decadência, solidão. O início da primavera proporciona-lhes a oportunidade de uma nova vida, a que corresponde a descoberta do tesouro.
    A ação central inicia-se na manhã de um domingo e progride durante o dia. Nessa data, o seu percurso (de fome, privação…) inverte-se: "E assim refeitos (...) subiram para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua." – domingo manhã tarde noite.
    À medida que a noite se aproxima, a tragédia vai-se preparando. A essa aproximação corresponde a vontade de cada um dos irmãos de reter para si próprio uma maior quantidade do dinheiro, que se evidencia pelo desejo de subir à serra com o cofre. Quando tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite está a surgir (“Anoiteceu.”). A purificação surgirá como obra da providência: “Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes.” A miséria física conduz à miséria espiritual.

Tempo histórico de "O Tesouro"

    A referência ao “reino das Astúrias” permite localizar a ação na Idade Média, por volta do século IX (“Eram então, em todo o reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e mais remedados.”), visto que os Árabes invadiram a Península Ibérica no século VIII (a ocupação teve início em 711 d.C. e prolongou-se por vários anos, sem nunca ter sido concluída). Por outro lado, no século X encontramos já constituído o reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Espaço psicológico de "O Tesouro"

    Paço de Medranhos ® espaço de necessidade, de privações, de miséria, de fome.

    Mata de Roquelanes ® espaço de esperança, mas simultaneamente de ambição desmedida, de desconfiança, de traição, de crueldade, do Mal e da justiça reparadora. Todos estes elementos decorrem da descoberta do tesouro.

    Por outro lado, este espaço exterior, pela sua vastidão, é também um local de provação e dificuldades, e ainda de descoberta e aventuras.

Espaço social de "O Tesouro"

    Os três irmãos pertencem à nobreza ("os fidalgos mais famintos..."), que entrou em gradual degradação e decadência até atingir a miséria quase total, como é evidenciado pelo facto de a casa que habitam estar quase em ruínas (não tem telhado, por exemplo), de passarem fome, de dormirem junto com as éguas para se aquecerem, etc.

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