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terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 13 de Farsa de Inês Pereira: Inês e o Escudeiro casados



● Após a boda, plena de cantorias e alegria, os recém-casados ficam sozinhos e Inês começa a lavrar e a cantar de felicidade. Ela, que agora se julga livre, está tão feliz que retoma espontaneamente os bordados que antes lhe causavam tanto enfado.
 
● A cantiga (“Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan pouco os mirara.”) prenuncia o seu casamento: o «eu» manifesta a dor provocada pela relação com o ser amado (“penara”), o que sugere que o casamento de Inês será infeliz.
 
● Brás da Mata, que até então se apresentara como um homem galante e respeitador, revela-se um tirano autoritário, impondo à esposa um conjunto de interdições:

proíbe Inês de cantar (“Vós cantais Inês Pereira / […] que esta seja a derradeira”);

ordena-lhe que se cale (“Será bem que vos caleis”);

proíbe-a de lhe responder, devendo acatar tudo quanto ele disser sem retorquir (“E mais sereis avisada / que não me respondais nada”);

proíbe-a de conversar com quem quer que seja (“Vós não haveis de falar / com homem nem molher que seja”);

proíbe-a de sair de casa, incluindo ir à igreja (“nem somente ir à igreja”);

impede-a de estar à janela (“Já vos preguei as janelas, / por que vos não ponhais nelas”).

Em suma, Inês ficará fechada em casa, «como freira d’Odivelas». Esta comparação mostra como o Escudeiro é um tirano que manterá Inês presa na sua residência.

 
● Comparando este passo da peça com a vida da jovem enquanto solteira, poderemos concluir que a sua vida de casa é pior do que nessa altura, visto que o marido se revela mais autoritário e repressivo do que a Mãe, trancando Inês e não lhe dando hipótese sequer de dizer o que pensa.
 
● Como se pode justificar esta mudança de atitude do Escudeiro? Se recuarmos até ao momento em que Brás da Mata surge em cena pela primeira vez, recordaremos que ele desconfiava da seriedade de Inês, por isso é «natural» que, agora, a prenda em casa e a vigie, após o casamento. Por outro lado, como sabemos, o Escudeiro apenas escondeu, momentaneamente, o seu verdadeiro caráter, que nós já conhecíamos a partir dos diálogos com o Moço, para conquistar Inês. Nessas conversas, Brás da Mata mostrara um comportamento violento e agressivo (“Faria bem de ta quebrar / na cabeça, bem migada”) e um caráter autoritário que agora de manifesta (“homem sesudo / traz a mulher sopeada”).
 
● Qual é a reação de Inês à postura do Escudeiro? A jovem mostra-se surpreendida, não compreendendo a razão das interdições a que é sujeita (“Que pecado foi o meu? / Porque me dais tal prisão?”). Inês começa a perceber que se iludiu e cometeu um erro ao casar com Brás da Mata, no entanto manifesta-se submissa: “Bofé, senhor meu marido, / se vós disso sois servido, / bem o posso eu escusar”. Ela é repreendida pro fazer aquilo que em casa da mãe faria sem restrições: cantar.
 
● Como justifica à esposa o Escudeiro o seu comportamento? A ironia dos versos “Vós buscastes discrição, / que culpa vos tenho eu?” mostra a Inês que foi ela quem quis um homem como ele, o que significa que a jovem é a única responsável pelas consequências da sua escolha. Ironicamente, acrescenta que está preocupado com Inês e que apenas a quer proteger: “Pode ser maior aviso, / maior discrição e siso / que guardar eu meu tesouro?”.
 
● Por outro lado, as interrogações retóricas e as metáforas (“meu tesouro” e “meu ouro”) permitem ao Escudeiro mostrar o quão preciosa a esposa é para ele e como a quer proteger (o seu bem maior) da cobiça alheia.
 
● Em suma, a vida de casada de Inês caracteriza-se pela reclusão em casa, pela ausência de contacto com o exterior e com outras pessoas, pela absoluta submissão aos ditames do marido (“Vós não haveis de mandar / em casa somente um pelo. / Se eu disser isto é novelo / havei-lo de confirmar.”), pelo medo dele (“E mais quando eu vier / de fora haveis de tremer”) e, como se verá alguns versos adiante, pela entrega ao trabalho.
 
● De seguida, o Escudeiro comunica ao Moço a sua decisão de partir para as “Partes d’Além”, isto é, para o Norte de África (Marrocos), para guerrear e fazer-se cavaleiro.
 
● Antes de partir, incumbe o Moço de uma missão: na sua ausência, vigiará Inês e o seu comportamento, mantê-la-á fechada em casa e assegurar-se-á de que as suas ordens serão cumpridas: “olha por amor de mi / o que faz tua senhora / fechá-la-ás sempre de fora.”. Relativamente a Inês, permanecerá encerrada em casa a lavrar.
 
● No diálogo que se segue, o Moço queixa-se que não tem recursos para se sustentar, porque Brás da Mata continua pobre.
 
● O Escudeiro incentiva, por isso, o Moço a roubar, indo “por essas vinhas”, a matar a fome com “rabisco”, nas “figueiras”, comendo favas e “túbaras da terra”. Estes conselhos comprovam, novamente, a falta de valores e de princípios do Escudeiro, que são ridicularizados, através da ironia, pelo seu criado.
 
 
Retrato de Brás da Mata
 
            Após o casamento com Inês, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter:

▪ cruel

▪ autoritário

▪ agressivo

▪ opressivo e tirânico, pois não permite que Inês

cante

lhe responda

fale com alguém

saia de casa em qualquer circunstância

mande em casa “somente um pelo”

o contrarie, tendo de concordar sempre com o que ele disser

ordena ao Moço que vigie constantemente Inês e a mantenha sempre fechada em casa

▪ ambicioso: parte para Marrocos para se fazer cavaleiro na guerra;

▪ pobre:

não deixa dinheiro ao Moço para se governar;

aconselha-o a alimentar-se percorrendo as vinhas, comendo figos, favas e cogumelos.

            É de realçar o contraste entre o amavio das palavras do Escudeiro enquanto pretendente e o seu comportamento agressivamente machista de casado. O fingimento e as mentiras acabaram e veio à tona o verdadeiro caráter de Brás da Mata.
            Por outro lado, a decisão que o Escudeiro toma de ir para o Norte de África parece resultar de um duplo equívoco:
Inês esperava do casamento uma intensa vida social e vê-se sujeita à situação inicial de clausura, dedicada às tarefas caseiras (“vós lavrai e ficar per i”);
o Escudeiro, defraudado na expectativa de colmatar pelo casamento a sua crónica penúria, vê-se obrigado a procurar na guerra um meio de subsistência ou, quiçá, de promoção social.
 
 
Cómico de situação
 
            A situação que se desenrola neste passo da farsa propicia o cómico em torna da figura de Inês, que vê o seu sonho de vida desfazer-se. De facto, tudo lhe sai ao contrário e ela apenas se iludiu: a jovem que quis ascender socialmente, desafiando as convenções da época, foi castigada, pois não soube contentar-se com o seu estado.
 
 
Dimensão satírica do diálogo
 
            O diálogo entre Brás da Mata e o Moço revela, novamente, a pobreza e a miséria da baixa nobreza decadente (representada pelo Escudeiro), que vive de aparências, e a exploração dos serviçais (Moço), que são enganados e explorados e passam fome por não receberem a remuneração devida. As soluções sucessivas que Brás da Mata apresenta para acudir à fome do seu serviçal acentuam a sátira e a comicidade, pela referência a alimentos ridículos e, por vezes, roubados. Por outro lado, esta cena revela ainda a insensibilidade do Escudeiro face a quem o serviu sempre, apesar das condições degradantes que lhe proporcionou.
 
 
A condição da mulher medieval
 
            A partida de Brás da Mata para o Norte de África, deixando o Moço a vigiar Inês, mostra como, na época de Gil Vicente, a mulher era totalmente submissa ao marido, e, na sua ausência, ela estava privada de ter vida própria. O seu estatuto social é tão baixo que até o criado tem poder sobre ela.
 
 
Recursos estilísticos:

. Comparação: “Estareis aqui encerrada / Nesta casa tão fechada, / Como freira d’Odivelas.” (vv. 801-803) ® tirânico, o Escudeiro manterá Inês encerrada em casa, como numa prisão.

. Metáforas:
‑ “Que guardar o meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro...” (vv. 810-811) ® Inês queria um marido discreto, com siso. Ora, haverá homem mais “avisado” do que aquele que procura guardar a sua mulher, o bem mais precioso, da cobiça alheia?

. Ironia do Moço:

‑ “Se vós tivésseis dinheiro,                                              ü
    Não seria senão bem.” (vv. 824-825)                         ï
‑ “Co dinheiro que leixais                                                 ï
  Não comerei eu galinhas...” (vv. 831-832)                  ý denuncia  a  penúria do  Escu-
‑ “E convidarei minha prima.” (v. 839)                           ï deiro
‑ “I-vos vós, embora, à guerra,                                        ï
   Qu’eu vos guardarei oitavas.” (vv. 847-848)              þ
 

Autárquicas 2021: um trio cheio de CIU


 

Análise da cena 12 da Farsa de Inês Pereira: festejo do casamento


● Os noivos trocam as palavras do ritual de casamento e, de imediato, os Judeus procuram cobrar o seu pagamento pelo êxito dos seus serviços: “Dai-nos cá senhos ducados.”. A Mãe promete efetuar o pagamento no dia seguinte.
 
● O Escudeiro mostra-se arrependido por ter casado (“Oh! Quem me fora solteiro!”) e confessa que “casar é cativeiro”, isto é, o matrimónio é sinónimo de prisão, indiciando o futuro de Inês. Casar significam, por um lado, perder a liberdade que possuía enquanto solteiro e, por outro, indicia o papel submisso da mulher no enlace. Deste modo, Brás da Mata retira a máscara com que seduziu Inês, revelando, por fim, a sua personalidade.
 
● Inês, ao ouvir o seu já marido, mostra-se surpreendida/admirada (“Já vós vos arrependeis?”), no entanto, diverte-se na boda, cantando e dançando.
 
● Face ao exposto, podemos concluir que o Escudeiro perspetiva o casamento como Inês concebia a vida de solteira: uma prisão. Porém, a relação deste passo da farsa não se esgota aqui. De facto, no monólogo inicial, a jovem sentia-se presa em casa da Mãe e aborrecida com as tarefas domésticas, por isso se casou com Brás da Mata, na esperança de se libertar e se emancipar da ascendência materna. Contudo, como se pode constatar, o Escudeiro encara o casamento como ela perspetiva a vida de solteira: um cativeiro.
 
● A Mãe organiza uma festa para celebrar o casamento da filha, convidando para a mesma algumas moças e mancebos vizinhos, entre eles Luzia e Fernando, que cantam uma cantiga. Embora a festa tenha sido organizada à pressa, nela não faltam a alegria, o baile ao ar livre, as cantigas e os votos de felicidades dos convidados aos noivos.
 
● Uma das cantigas é bastante significativa, dado que sugere a situação futura de Inês. Recordemos a letra: “Uma garça enamorada ia ferida e soltava gritos de dor. Nas margens de um tio tinha o ninho, mas um caçador feriu-a na alma. Por isso, soltava gritos de dor.” A garça (Inês) está apaixonada, mas vai triste, só e chorosa (o marido já não a ama ou maltrata-a). Tinha um ninho (o novo lar), mas um caçador (o Escudeiro) feriu-a de amor, daí os seus gritos de dor e sofrimento.
 
● A Mãe presenteia os noivos com a sua casa, dá a sua bênção ao casamento e incentiva Brás da Mata a amar e respeitar Inês para ser amado e respeitado: “que lhe tenhais muito amor, / que amado sejais no céu.”. A figura materna está, em suma, a cumprir o seu papel de mãe preocupada e protetora. Após a bênção, despede-se e não volta a aparecer. Porquê? Inês tomou uma decisão (a de casar com Brás da Mata) e agora terá de assumir todas as consequências daí decorrentes.
 
● Fernando e Luzia, dois moços alegres e amigos de Inês, são o símbolo da ingenuidade e da simplicidade.

Autárquicas 2021: pairando sobre Sesimbra


 

Análise da cena 11 da Farsa de Inês Pereira - Discurso de Brás da Mata

 1. Estrutura do discurso do Escudeiro
 
            Podemos dividir o discurso do Escudeiro em duas partes. Na primeira, entre os versos 555 (“Antes que mais diga agora”) e 577 (“pode falecer nô mais”), Brás da Mata elogia Inês, na segunda, dos versos 583 (“Eu nam tenho mais de meu”) e 591 (“logo me ouvíreis tanger”), autocaracterizar-se (enumera as suas próprias qualidades.
 
 
2. Elogio de Inês Pereira
 
            O elogio que o Escudeiro faz de Inês segue o «modelo» das cantigas medievais, nomeadamente de amor:
a) retrato de Inês:
- beleza (metáfora “fresca rosa”)
- qualidades morais: “despejo” e “discrição”
- graciosidade e formosura
- fonte da sua vida: “sois minh’alma”
- em suma, é a mulher perfeita: “outra tal nam se acontece” (= não existe outra igual);
b) linguagem – vocabulário: “senhora”, “despejo”, “discrição”, “fermosura” – cantiga de amor; “donzela” – cantiga de amigo;
c) recursos estilísticos:
- metáfora: “fresca rosa”;
- hipérbole: “outra tal não se acontece”;
d) relação entre o enunciador e o destinatário: o Escudeiro assume uma atitude de subserviência perante Inês (“Senhora, eu me contento / receber-vos como estais”), que recorda a vassalagem prestada pelo trovador à sua dama, que é a sua suserana (como se comprova pelas formas de tratamento: trovador: “senhor” – Escudeiro: “senhora”) e ele o seu vassalo, dispondo-se a recebê-la em casamento.
         No entanto, o discurso de Brás da Mata opõe-se ao do trovador na cantiga de amor por causa da sua retórica falsamente elogiosa (pouco antes de se encontrar com Inês, tinha-se-lhe referido de forma desdenhosa e trocista), do interesse material que o norteia na procura de noiva para casar e que ultrapassam a expressão de um amor puro, espiritual e desinteressado, característico dos cantares de amor trovadorescos.
 
 
3. Objetivo da fala do Escudeiro/do elogio a Inês
 
            O objetivo do Escudeiro é seduzir Inês, de modo a casar com ela e, assim, sair da miséria em que vive e ter maior desafogo financeiro.
 
 
4. Caracterização de Brás da Mata
 
a) Elogio a Inês

▪ É galanteador: elogia os dotes da jovem (“mui graciosa donzela”).

▪ É sedutor: refere que ela é a mulher que sempre quis (“vós sois, minha alma, aquela / que eu busco e que desejo”).

▪ É eloquente – usa um vocabulário requintado (“Obrou bem a Natureza.”).

▪ Usa metáforas (“fresca rosa”).

▪ Usa hipérboles (“vossa fermosura, / que é tal que, de ventura, / outra tal não se acontece.”).

▪ É falso e mentiroso: ficará com ela, independentemente da situação financeira de Inês (“Senhora eu me contento / receber-vos como estais.”).

 
b) Autocaracterização

▪ É escudeiro / nobre: alega trabalhar para um marechal como escudeiro (“Eu nam tenho mais de meu / somente ser comprador / do marichal meu senhor / e sam escudeiro seu.”).

▪ É culto: sabe “bem ler” e “muito bem escrever”.

▪ Possui dotes artísticos e musicais: tange bem (“logo me vereis tanger”).

▪ É gabarola / fanfarrão (“Sei bem ler / e muito bem escrever / e bom jogador de bola / e quanto a tanger viola / logo me ouvireis tanger.”).

▪ É calculista e preguiçoso, pois pretende viver à custa da mulher (“Leixa-me casar a mi, / depois eu te farei bem.”).

 
c) Segundo o Moço (diálogo entre ambos)

▪ É arrogante e autoritário: “Pera fazeres o que mando.”

▪ É grosseiro e sem vergonha: “o mais sáfio bargante”.

▪ É pobre:
- se Inês casar com ele, passará fome (“Oh como ficará tola / se nam fosse casar ante / c’o mais sáfio bargante / que coma pão e cebola.”);
- a viola é emprestada (“E se ela é emprestada”);
- o Moço passa fome e dorme no chão, sem manta para se cobrir (“No chão e o telhado por manta / e çarra-se-m’a garganta / com fome”);
- o duplo sentido dos versos 610 e 611 – a viola está bem temperada (= afinada), mas o Escudeiro não tem o que temperar, ou seja, o que comer (“Ei-la aqui bem temperada / num tendes que temperar.”).

▪ Promete-lhe que, depois de casar, a vida de ambos será diferente.

 
d) Segundo os Judeus:

▪ É cantador: canta mal e de forma monótona/aborrecida – dá sono ao judeu (“como oivo cantar guaiado / que nam vai esfandegado.”).

▪ É um “caçador de pardais”.

▪ É “sabedor, revolvedor, / falador, gracejador”.

▪ É atrevido – pega na mão de Inês como se ela fosse sua esposa (“afoitado pela mão”).

▪ É desonesto: “sabe de gavião” (o termo “gavião” – ave de rapina – significa que é desonesto, pois rouba o que não lhe pertence).

▪ É fraco e cobarde – envolve-se em brigas, mas acaba por apanhar (“Este escudeiro aosadas / onde se derem pancadas / ele as há de levar / boas senam apanhar”).

 
e) Segundo a Mãe, o Escudeiro é um rascão, um vadio (“Inês guar-te de rascão”).
 
f) Para afirmar os seus dotes artísticos e como estratégia de sedução, canta o romance “Mal me quieren en Castilha”.
 
 
5. Reação inicial de Inês ao discurso do Escudeiro
 
            A reação de Inês ao discurso elogioso do Escudeiro chega-nos através dos comentários dos judeus:
LatãoComo fala!
Vidal E ela como se cala!
            Esta breve troca de palavras significa que Inês Pereira ficou deslumbrada e rendida ao discurso e aos encantos de Brás da Mata, bem como convencida das suas qualidades.
            De facto, está tão embevecida que não consegue articular palavra, o que contrasta com a desenvoltura discursiva de Brás da Mata. Assim sendo, deduz-se que irá haver casamento, o que Vidal intui, conhecedor que é da psicologia feminina, ao afirmar que “este há de ser seu marido / segundo a coisa s’abala”.
 
 
6. Retrato do Moço
 
▪ É pobre e vive em condições muito difíceis, o que é simbolizado pelos seus sapatos rotos, pelas calças muito usadas, por passar fome e frio.
 
▪ É leal e serviçal, obedecendo ao seu amo, mas também revoltado e muito crítico.
 
▪ Os seus apartes mostram a leviandade do Escudeiro (“O Diabo me tomou: / Sair-me de João Montês / por servir um tavanês, / mor doudo que Deus criou!” – o Moço afirma que devia estar possuído pelo Diabo para ter deixado o serviço de João Montês e ir servir um estouvado - «tavanês» – e louco – «mor doudo») e reforçam a ideia de que Inês fará uma má escolha (“Oh! como ficará tola / se não fosse casar ante / co mais sáfio bargante / que coma pão e cebola!”).
 
▪ É sensato, visto que não se deixa impressionar pelas promessas do amo.
 
▪ Manifesta a vontade de se despedir, porque o Escudeiro não dá «governo» (não lhe paga) para o servir.
 
▪ O seu papel é semelhante ao de personagens do mesmo género que surgem noutras peças de Gil Vicente – desmistificar o caráter do Escudeiro:
- a penúria / a pelintrice / a pobreza:
. a viola é emprestada;
. o Moço passa fome, frio e dorme no chão, sem manta para se cobrir;
- em suma, revela a pelintrice famélica típica nos escudeiros vicentinos.
 
 
7. Diálogo entre a Mãe e Inês
 
• A Mãe, recorrendo à ironia, critica Inês por se deixar seduzir e se sentir feliz (“Agora vos digo eu / que Inês está no paraíso.”).
 
• Por outro lado, considera que a filha não está a pensar bem (“Quanta doudice.”).
 
• Inês reage de forma agressiva:
- quase insulta a mãe (“Como é seca a velhice” = como são maçadores os velhos);
- insiste em não casar com um homem tolo (“nam me hei de contentar / de casar com parvoíce.”);
- está encantado com o “homem avisado” (culto, com boas maneiras) que acabou de conhecer.
 
• A Mãe aconselha-a a preferir um homem simples, a ser prudente e racional na escolha do marido.
 
• Após uma interrupção, causada pelos Judeus, as duas mulheres retomam o diálogo:
- A Mãe adverte a filha para o caráter dos Judeus, que apenas estão preocupados com os seus interesses (o dinheiro que receberão) e nada com a felicidade de Inês.
- De seguida, aconselha-a a escolher para marido “um bom oficial / que te ganhe nessa praça / que é um escravo de graça / e casarás com teu igual?” e a livrar-se do “rascão” do Escudeiro, isto é, que lhe dê segurança económica e que pertença à mesma hierarquia social, o que não acontece com o Escudeiro. (Mãe: preocupada, sensata, precavida; Judeus: conveniência, avareza, ganância, proveito.)
 
• Inês responde-lhe, decidida e agressiva, primeiro desvalorizando os comentários da progenitora, dizendo que está a fazer afirmações sem fundamento (“Já minha mãe adivinha…”), pois não tem o dom de adivinhar o futuro, e depois que, se a mãe casou com quem quis, também ela o irá fazer: “Houvestes por vaidade / casar à vossa vontade / eu quero casar à minha.”
 
• Resignada, a Mãe cede à vontade da filha: “Casa, filha, muit’embora.” [= em boa hora]
 
• Inês fica, em suma, tão deslumbrada com o discurso do Escudeiro, dado que este é de uma classe social superior, galante, cortês e com dotes musicais, que decide, de imediato, casar com ele.
 
 
8. Judeus
 
            Neste excerto, as intervenções dos Judeus confirmam o que já se conhecia deles antes: são mentirosos, aldrabões, desonestos, interesseiros e materialistas. A sua única preocupação centra-se no recebimento da quantia combinada com Inês, cujo bem-estar e felicidade futuros lhes são absolutamente indiferentes. É, por isso, que tudo fazem para a convencer a casar com Brás da Mata, elogiando-o e aconselhando-o a casar logo, antes que outro pretendente “carrapatento” avance. Atentos aos comentários da Mãe, que desaprova a intenção da filha, sugerem a Brás da Mata que cante para Inês, para a seduzir.
            Convém não esquecer que os Judeus são casamenteiros – esse é o seu papel – e, nessa qualidade, encarecem os méritos do Escudeiro perante Inês e as qualidades desta perante aquele, mas simultaneamente criticam-nos, subtil e dissimuladamente, elogiam e depreciam, criticando, ao mesmo tempo.

 
9. Cómico
 
Cómico de linguagem:

» a ironia nas falas do Escudeiro;

» a ironia das respostas e apartes do Moço;

» a ironia da Mãe (“Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso”

 
Cómico de caráter: o Escudeiro quer-se passar por alguém que não é na realidade. Por exemplo, traz consigo uma viola que é emprestada e, quando ameaça parti-la na cabeça do Moço, este responde que, depois, não haveria quem a pagasse.
 
 
10. Linguagem
 
. Apóstrofe e metáfora: “Deus vos salve, fresca rosa...” (v. 551):
‑» a juventude e formosura de Inês;
‑» caricatura do estilo cortesanesco e afectado, cheio de jogos verbais, por exemplo.
. Hipérbole: “Mor doudo que Deos criou!” (v. 595).
. Ironia da Mãe: “Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso...” (vv. 627-628) ® traduz a reacção negativa da Mãe à apresentação do Escudeiro.
. Quiasmo: «”Pelo mar vai à vela,
Vela vai pelo mar”?» (vv. 654-655).
. Metáfora: “E sabe de gavião...” (v. 663) ® o Escudeiro é um conquistador sábio na conquista de mulheres; mas tal como o gavião fere e mata as suas presas, também o Escudeiro fere as esperanças e expectativas postas por Inês no seu casamento, no seu futuro;
“... casar he cativeiro.” (v. 729).
. Enumeração, assíndeto, adjetivação (vv. 658-661) ® retratam o verdadeiro carácter do Escudeiro: falador, medroso, hipócrita, cobarde, etc. Brás da Mata enumera as suas qualidades para se valorizar e impressionar Inês, o que revela também o seu narcisismo e vaidade.
. Antítese: “Senhora, eu me contento […] / se vós vos não contentais”.
 
 
11. Representatividade
 
Gil Vicente, através das palavras do Escudeiro, caricatura o estilo cortesanesco e afetado, cheio de jogos verbais, facilmente detetável em muitos dos menos conseguidos poemas do Cancioneiro Geral.
 
O Escudeiro é o retrato do “rascão” vagabundo, que vai vivendo ao sabor da sorte e das suas “falinhas mansas”.
 

O último mamute


Nikola Lites

Análise da cena 10 da Farsa de Inês Pereira

             O Escudeiro, de nome Brás da Mata, entra em cena com o seu Moço, que traz uma viola (símbolo do lado cortesão do seu amo e da vida de diversão, mas também da sua pelintrice).
 
1. Considerações de Brás da Mata sobre Inês
 
● Começa por considerar que, se Inês for como os Judeus casamenteiros a pintaram, não existe melhor partido para ele (“Se esta senhora é tal / como os judeus ma gabaram / certo os anjos a pintaram”). Por outro lado, isto significa que Latão e Vidal são bastante eficientes no seu ofício, dado que encareceram bastante Inês junto do Escudeiro, tal como tinham feito com Brás da Mata relativamente a Inês.
 
● De facto, os dois judeus compararam os olhos da jovem com Santa Luzia, a advogada da visão, e os cabelos com os de Santa Maria Madalena.
 
● No entanto, tamanha «perfeição» suscita nele alguma desconfiança (“e nam pode ser i al”)
1.º) Se é assim tão bela, como é que ainda não casou (“Se fosse moça tão bela, / como donzela seria?”)?
2.º) Desconfia que é uma jovem de mau porte (“Moça de vila”), pouco asseada (“sarnosa”), muito feia e provinciana (“e sarnosa no toutiço / como burra de Castela.” – comparação) e não está seguro da sua castidade (“Se ela fosse donzela / tudo essoutro passaria”, ou seja, fosse ela donzela e o resto não teria importância.
 
● Assim, imaginando que os judeus o enganaram, vai procurar certificar-se se Inês é como aqueles a descreveram, nomeadamente se é honesta, contida e discreta.
 
● A sua postura relativamente a Inês é muito semelhante à que esta adotou relativamente a Pero Marques. De facto, Brás da Mata refere-se à jovem de forma depreciativa e desdenhosa, mesmo antes de a conhecer, tal como ela se manifestara com desprezo e arrogância acerca do primeiro pretendente. E tal acontece por razões semelhantes.
 
 
2. Conselhos da Mãe
 
            De acordo com a Mãe, o comportamento que a filha deve adotar perante o Escudeiro deverá caracterizar-se pela passividade e pela submissão:
▪ falar pouco e não rir demasiado, isto é, ser discreto e recatada;
▪ não encarar o Escudeiro.
            Ou seja, Inês deverá mostrar-se uma mulher sensata e subserviente face ao Escudeiro, que é de condição superior, pois a moça discreta é uma pérola para amar (metáfora). Ou seja, a Mãe aconselha a filha a representar um papel para agradar ao pretendente, ocultando o seu verdadeiro ser (o mesmo acontece com Brás da Mata), o que indicia o seu verdadeiro ser.
 
 
3. Modelo da mulher ideal da época
 
            A fala da Mãe permite-nos colher mais alguns traços daquilo que seria o modelo de mulher da época em que a farsa foi composta: trabalhadora (entregue às tarefas domésticas), recatada e discreta (deveria passar despercebida).
 
 
4. Diálogo entre o Escudeiro e o Moço
 
            Qual é a funcionalidade deste diálogo?
            Na conversa que entabula com o Moço, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter, ao combinar com aquele a estratégia para seduzir Inês, que é o mesmo que dizer as mentiras para a enganar:
1.ª) Aconselha Fernando a tirar o «barrete» em sinal de respeito, sempre que estiver na sua presença.
2.ª) Se cuspir no chão, o Moço deverá disfarçar com o pé.
3.ª) Se mentir, gabando-se de ser íntimo do Rei, o Moço deverá conter o riso ou sair, isto é, não o deverá contradizer/desmentir.
            O Escudeiro orienta o Moço para agir de forma coincidente com a sua vontade, para manter as aparências e impressionar Inês.
            Quando Moço reclama que não tem sapatos e calças para se apresentar dignamente em casa de Inês, Brás da Mata começa por mentir, dizendo-lhe que o sapateiro não tem solas nem pela para lhos consertar, e depois promete-lhe que em breve terá dinheiro para lhe pagar.
            E como pensa o Escudeiro obter esse dinheiro? Através do casamento com Inês, dado que pensa que esta o terá e o irá sustentar: “Eu o haverei agora”.
 
 
5. Por que razões o Escudeiro quer casar com Inês?
 
            O Escudeiro, como é um homem pelintra, pretende casar com Inês por interesse económico: “Deixa-me casar a mi / depois eu te farei bem.”
            Por outro lado, deseja desposá-la, porque se trata de uma jovem provinciana e, provavelmente, ingénua, sendo-lhe, portanto, mais fácil dominá-la: “Moça de vila será ela”; “como burra de Castela”.
 
 
6. Caracterização do Escudeiro
 
            O diálogo entre Brás da Mata e Fernando mostra-nos o verdadeiro caráter do Escudeiro e a sua real situação económica. A sua caracterização pode ser feita a partir de duas situações.
 
• Forma como se refere e retrata Inês antes de a conhecer:
- desconfiado / cético: duvida do que os Judeus lhe disseram sobre Inês;
- é hipócrita e dissimulado: troça de Inês quando não é ouvido por ela, mas elogia-a quando fala com ela;
- astuto, trocista e desdenhoso: “cumpre-me bem atentar / se é garrida, se honesta”; “Moça de vila será ela / com sinalzinho postiço”.
 
• Relação com o Moço:
- é falso e mentiroso: “E se me vires mentir / gabando-me de privado”;
- é cínico, pretensioso e dissimulado (pretende ser íntimo do rei);
- é arrogante e autoritário: “Aviso-te que hás de estar / sem barrete onde eu estou”;
- é pobre: o estado do calçado e do vestuário do criado evidenciam-no (“Que farei, que o sapateiro / não tem solas nem tem pele?”);
- é calculista, oportunista e ambicioso: pretende viver à custa da mulher;
- é manipulador (“faze-o por amor de mi”).
 
 
7. Figura do Moço
 
Papel: desmistificar a personagem do Escudeiro através dos seus apartes, nomeadamente a pobreza, bem patente no seu próprio calçado e vestuário.
 
• Qual é a sua reação às falas do Escudeiro?

1. Submete-se às ordens de Brás da Mata e cala-se.

2. Critica, de forma irónica, as atitudes do dono, através dos apartes.

3. Denuncia a pobreza do Escudeiro.

 
Caracterização
 
     Nesta sua aparição inicial, o Moço revela-se crítico e irónico nos apartes que vai produzindo, denunciando, assim, a pelintrice do seu amo. Por outro lado, mostra-se sensato, visto que não se deixa impressionar pelas promessas do Escudeiro [“(Homem que não tem nem preto, / casa muito na má hora.)”].
 
 
8. Cómico
 
1. De caráter: a figura do Escudeiro, mentiroso, falso, dissimulado, pelintra.
 
2. De linguagem:
- a ironia do Moço, desmascarando a pelintrice e o caráter do Escudeiro;
- as falas trocistas do Escudeiro sobre Inês: “Moça de vila será ela / com sinalzinho postiço, / e sarnosa no toutiço, / como burra de Castela.”
 
 
9. Crítica
 
            Neste diálogo, Gil Vicente inicia o processo de crítica que recai sobre Brás da Mata, o tipo do escudeiro pelintra, mentiroso, dissimulado e oportunista que procura no casamento uma forma de sobrevivência e subsistência.
            Atentemos nas palavras de Maria Leonor da Cruz (in Gil Vicente e a sociedade portuguesa de quinhentos. 1990. Lisboa. Gradiva, p. 135): «Se o culto das aparências domina em particular aquele estrato social que, devido às mutações socioeconómicas que a sociedade portuguesa atravessa e à sua incapacidade de adaptação, a novos moldes, se encontra em decadência económica, mas procura manter um modo de vida faustoso, de acordo com o prestígio que granjeia na sociedade, ele estende-se também […] a camadas de escalão social inferior que com a fidalguia se pretendem identificar, embora quantas vezes não tenham nem sangue nobre nem disponibilidades financeiras para tanto.
            O prestígio e o título de nobre continuam a ter, de facto, um peso preponderante na sociedade da época, a que se alia um modus vivendi de sumptuária, real ou fictício, para obtenção do qual muitos se mobilizam.»
            Já nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes (in História da Literatura Portuguesa. Porto Editora), o escudeiro «É tipo insistente nos autos vicentinos […], género de parasita ocioso e vadio […]. O Escudeiro imita os padrões da nobreza, toca guitarra, verseja, faz serenatas às filhas dos “oficiais mecânicos”, pavoneia-se de bravo e cavaleiro, espera o seu “acrescentamento”, que o instalará de vez na nobreza. Mas não trabalha, passa fome estreme, tem medo, é corrido sob a chuva de insultos da mãe da pretendida, que o aconselha a aprender um ofício para não morrer à míngua.”
            De facto, no tempo de Gil Vicente, os escudeiros eram uma classe social desprestigiada, embora com ideias de grandeza. De facto, Brás da Mata apresenta-se como alguém importante, conhecido do rei, mas, na realidade, é um pobretanas cujo Moço usa calçado roto que ele não pode reparar, que não tem dinheiro e espera obtê-lo por meio do casamento.
            Deste modo, a sátira que Gil Vicente constrói a partir da figura deste escudeiro centra-se no contraste entre o que ele presumia e queria aparentar ser e o que era na realidade.
 
 
10. Linguagem
 
. Comparação: “Como burra de Castela” (sugere a ingenuidade o provincianismo de Inês, que, na cabeça do Escudeiro, seria fácil de dominar).
 
. Provérbio: “Homem que não tem nem preto, / Casa muito na má hora.” (= quem não tem dinheiro não devia casar.)
 

Autárquicas 2021: virar o 69


 

Na aula (XLIII): a vida romanceada de D. João I

     D. João I casado com Leonor Teles era rei de Lisboa até a sua própria mulher o ter matado para conseguir ela subir ao trono. Ela teria um caso com el-rei de Castela e ele quando soube que não seria ela a rainha mas sim o mestre de Avis ele decidiu atacar a cidade de Lisboa.

André A.

Café do Espírito Santo - Brasil





segunda-feira, 11 de abril de 2022

Putin, o pequeno açougueiro


Michael Ramirez

 

Pagamentos "contactless" com "microchips" implantados na mão

    A empresa polaca Walletmor criou, em 2019, um microchip para implantar na mão destinado a efetuar pagamentos contactless.

    O implante pode ser utilizado para pagar uma bebida numa praia ou um corte de cabelo, em qualquer lugar do mundo em que sejam aceites pagamentos via contacless. O chipe a implantar pesa menos de uma grama e é pouco maior que um bago de arroz, sendo composto por um microchip e uma antena, envolvido num material natural composto por biopolímero, semelhante a plástico, não requerendo alimentação de energia.

    A tecnologia comunica através de NFC, o mesmo sistema de pagamentos contactless utilizados nos smartphones. No que diz respeito à questão da segurança, a tecnologia é a mesma de que as pessoas fazem uso no seu dia a dia, consistindo a única diferença o facto de esta se encontrar implantada no próprio corpo, dispensando o recurso a um cartão ou telefone, e de a sua ativação necessitar de ser feita a uma distância muito próxima dos terminais magnéticos.

    No que diz respeito a riscos, os chips contêm dados pessoais do utilizador, podendo ser usados de forma abusiva ou para a prática de ilicitudes.

    Por outro lado, esta tecnologia contactless pode ser utilizada por pessoas com deficiência, por exemplo, para abrir portas automaticamente.

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