Português: Análise da cena 13 de Farsa de Inês Pereira: Inês e o Escudeiro casados

terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 13 de Farsa de Inês Pereira: Inês e o Escudeiro casados



● Após a boda, plena de cantorias e alegria, os recém-casados ficam sozinhos e Inês começa a lavrar e a cantar de felicidade. Ela, que agora se julga livre, está tão feliz que retoma espontaneamente os bordados que antes lhe causavam tanto enfado.
 
● A cantiga (“Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan pouco os mirara.”) prenuncia o seu casamento: o «eu» manifesta a dor provocada pela relação com o ser amado (“penara”), o que sugere que o casamento de Inês será infeliz.
 
● Brás da Mata, que até então se apresentara como um homem galante e respeitador, revela-se um tirano autoritário, impondo à esposa um conjunto de interdições:

proíbe Inês de cantar (“Vós cantais Inês Pereira / […] que esta seja a derradeira”);

ordena-lhe que se cale (“Será bem que vos caleis”);

proíbe-a de lhe responder, devendo acatar tudo quanto ele disser sem retorquir (“E mais sereis avisada / que não me respondais nada”);

proíbe-a de conversar com quem quer que seja (“Vós não haveis de falar / com homem nem molher que seja”);

proíbe-a de sair de casa, incluindo ir à igreja (“nem somente ir à igreja”);

impede-a de estar à janela (“Já vos preguei as janelas, / por que vos não ponhais nelas”).

Em suma, Inês ficará fechada em casa, «como freira d’Odivelas». Esta comparação mostra como o Escudeiro é um tirano que manterá Inês presa na sua residência.

 
● Comparando este passo da peça com a vida da jovem enquanto solteira, poderemos concluir que a sua vida de casa é pior do que nessa altura, visto que o marido se revela mais autoritário e repressivo do que a Mãe, trancando Inês e não lhe dando hipótese sequer de dizer o que pensa.
 
● Como se pode justificar esta mudança de atitude do Escudeiro? Se recuarmos até ao momento em que Brás da Mata surge em cena pela primeira vez, recordaremos que ele desconfiava da seriedade de Inês, por isso é «natural» que, agora, a prenda em casa e a vigie, após o casamento. Por outro lado, como sabemos, o Escudeiro apenas escondeu, momentaneamente, o seu verdadeiro caráter, que nós já conhecíamos a partir dos diálogos com o Moço, para conquistar Inês. Nessas conversas, Brás da Mata mostrara um comportamento violento e agressivo (“Faria bem de ta quebrar / na cabeça, bem migada”) e um caráter autoritário que agora de manifesta (“homem sesudo / traz a mulher sopeada”).
 
● Qual é a reação de Inês à postura do Escudeiro? A jovem mostra-se surpreendida, não compreendendo a razão das interdições a que é sujeita (“Que pecado foi o meu? / Porque me dais tal prisão?”). Inês começa a perceber que se iludiu e cometeu um erro ao casar com Brás da Mata, no entanto manifesta-se submissa: “Bofé, senhor meu marido, / se vós disso sois servido, / bem o posso eu escusar”. Ela é repreendida pro fazer aquilo que em casa da mãe faria sem restrições: cantar.
 
● Como justifica à esposa o Escudeiro o seu comportamento? A ironia dos versos “Vós buscastes discrição, / que culpa vos tenho eu?” mostra a Inês que foi ela quem quis um homem como ele, o que significa que a jovem é a única responsável pelas consequências da sua escolha. Ironicamente, acrescenta que está preocupado com Inês e que apenas a quer proteger: “Pode ser maior aviso, / maior discrição e siso / que guardar eu meu tesouro?”.
 
● Por outro lado, as interrogações retóricas e as metáforas (“meu tesouro” e “meu ouro”) permitem ao Escudeiro mostrar o quão preciosa a esposa é para ele e como a quer proteger (o seu bem maior) da cobiça alheia.
 
● Em suma, a vida de casada de Inês caracteriza-se pela reclusão em casa, pela ausência de contacto com o exterior e com outras pessoas, pela absoluta submissão aos ditames do marido (“Vós não haveis de mandar / em casa somente um pelo. / Se eu disser isto é novelo / havei-lo de confirmar.”), pelo medo dele (“E mais quando eu vier / de fora haveis de tremer”) e, como se verá alguns versos adiante, pela entrega ao trabalho.
 
● De seguida, o Escudeiro comunica ao Moço a sua decisão de partir para as “Partes d’Além”, isto é, para o Norte de África (Marrocos), para guerrear e fazer-se cavaleiro.
 
● Antes de partir, incumbe o Moço de uma missão: na sua ausência, vigiará Inês e o seu comportamento, mantê-la-á fechada em casa e assegurar-se-á de que as suas ordens serão cumpridas: “olha por amor de mi / o que faz tua senhora / fechá-la-ás sempre de fora.”. Relativamente a Inês, permanecerá encerrada em casa a lavrar.
 
● No diálogo que se segue, o Moço queixa-se que não tem recursos para se sustentar, porque Brás da Mata continua pobre.
 
● O Escudeiro incentiva, por isso, o Moço a roubar, indo “por essas vinhas”, a matar a fome com “rabisco”, nas “figueiras”, comendo favas e “túbaras da terra”. Estes conselhos comprovam, novamente, a falta de valores e de princípios do Escudeiro, que são ridicularizados, através da ironia, pelo seu criado.
 
 
Retrato de Brás da Mata
 
            Após o casamento com Inês, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter:

▪ cruel

▪ autoritário

▪ agressivo

▪ opressivo e tirânico, pois não permite que Inês

cante

lhe responda

fale com alguém

saia de casa em qualquer circunstância

mande em casa “somente um pelo”

o contrarie, tendo de concordar sempre com o que ele disser

ordena ao Moço que vigie constantemente Inês e a mantenha sempre fechada em casa

▪ ambicioso: parte para Marrocos para se fazer cavaleiro na guerra;

▪ pobre:

não deixa dinheiro ao Moço para se governar;

aconselha-o a alimentar-se percorrendo as vinhas, comendo figos, favas e cogumelos.

            É de realçar o contraste entre o amavio das palavras do Escudeiro enquanto pretendente e o seu comportamento agressivamente machista de casado. O fingimento e as mentiras acabaram e veio à tona o verdadeiro caráter de Brás da Mata.
            Por outro lado, a decisão que o Escudeiro toma de ir para o Norte de África parece resultar de um duplo equívoco:
Inês esperava do casamento uma intensa vida social e vê-se sujeita à situação inicial de clausura, dedicada às tarefas caseiras (“vós lavrai e ficar per i”);
o Escudeiro, defraudado na expectativa de colmatar pelo casamento a sua crónica penúria, vê-se obrigado a procurar na guerra um meio de subsistência ou, quiçá, de promoção social.
 
 
Cómico de situação
 
            A situação que se desenrola neste passo da farsa propicia o cómico em torna da figura de Inês, que vê o seu sonho de vida desfazer-se. De facto, tudo lhe sai ao contrário e ela apenas se iludiu: a jovem que quis ascender socialmente, desafiando as convenções da época, foi castigada, pois não soube contentar-se com o seu estado.
 
 
Dimensão satírica do diálogo
 
            O diálogo entre Brás da Mata e o Moço revela, novamente, a pobreza e a miséria da baixa nobreza decadente (representada pelo Escudeiro), que vive de aparências, e a exploração dos serviçais (Moço), que são enganados e explorados e passam fome por não receberem a remuneração devida. As soluções sucessivas que Brás da Mata apresenta para acudir à fome do seu serviçal acentuam a sátira e a comicidade, pela referência a alimentos ridículos e, por vezes, roubados. Por outro lado, esta cena revela ainda a insensibilidade do Escudeiro face a quem o serviu sempre, apesar das condições degradantes que lhe proporcionou.
 
 
A condição da mulher medieval
 
            A partida de Brás da Mata para o Norte de África, deixando o Moço a vigiar Inês, mostra como, na época de Gil Vicente, a mulher era totalmente submissa ao marido, e, na sua ausência, ela estava privada de ter vida própria. O seu estatuto social é tão baixo que até o criado tem poder sobre ela.
 
 
Recursos estilísticos:

. Comparação: “Estareis aqui encerrada / Nesta casa tão fechada, / Como freira d’Odivelas.” (vv. 801-803) ® tirânico, o Escudeiro manterá Inês encerrada em casa, como numa prisão.

. Metáforas:
‑ “Que guardar o meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro...” (vv. 810-811) ® Inês queria um marido discreto, com siso. Ora, haverá homem mais “avisado” do que aquele que procura guardar a sua mulher, o bem mais precioso, da cobiça alheia?

. Ironia do Moço:

‑ “Se vós tivésseis dinheiro,                                              ü
    Não seria senão bem.” (vv. 824-825)                         ï
‑ “Co dinheiro que leixais                                                 ï
  Não comerei eu galinhas...” (vv. 831-832)                  ý denuncia  a  penúria do  Escu-
‑ “E convidarei minha prima.” (v. 839)                           ï deiro
‑ “I-vos vós, embora, à guerra,                                        ï
   Qu’eu vos guardarei oitavas.” (vv. 847-848)              þ
 

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