Português: Análise da cena 11 da Farsa de Inês Pereira - Discurso de Brás da Mata

terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 11 da Farsa de Inês Pereira - Discurso de Brás da Mata

 1. Estrutura do discurso do Escudeiro
 
            Podemos dividir o discurso do Escudeiro em duas partes. Na primeira, entre os versos 555 (“Antes que mais diga agora”) e 577 (“pode falecer nô mais”), Brás da Mata elogia Inês, na segunda, dos versos 583 (“Eu nam tenho mais de meu”) e 591 (“logo me ouvíreis tanger”), autocaracterizar-se (enumera as suas próprias qualidades.
 
 
2. Elogio de Inês Pereira
 
            O elogio que o Escudeiro faz de Inês segue o «modelo» das cantigas medievais, nomeadamente de amor:
a) retrato de Inês:
- beleza (metáfora “fresca rosa”)
- qualidades morais: “despejo” e “discrição”
- graciosidade e formosura
- fonte da sua vida: “sois minh’alma”
- em suma, é a mulher perfeita: “outra tal nam se acontece” (= não existe outra igual);
b) linguagem – vocabulário: “senhora”, “despejo”, “discrição”, “fermosura” – cantiga de amor; “donzela” – cantiga de amigo;
c) recursos estilísticos:
- metáfora: “fresca rosa”;
- hipérbole: “outra tal não se acontece”;
d) relação entre o enunciador e o destinatário: o Escudeiro assume uma atitude de subserviência perante Inês (“Senhora, eu me contento / receber-vos como estais”), que recorda a vassalagem prestada pelo trovador à sua dama, que é a sua suserana (como se comprova pelas formas de tratamento: trovador: “senhor” – Escudeiro: “senhora”) e ele o seu vassalo, dispondo-se a recebê-la em casamento.
         No entanto, o discurso de Brás da Mata opõe-se ao do trovador na cantiga de amor por causa da sua retórica falsamente elogiosa (pouco antes de se encontrar com Inês, tinha-se-lhe referido de forma desdenhosa e trocista), do interesse material que o norteia na procura de noiva para casar e que ultrapassam a expressão de um amor puro, espiritual e desinteressado, característico dos cantares de amor trovadorescos.
 
 
3. Objetivo da fala do Escudeiro/do elogio a Inês
 
            O objetivo do Escudeiro é seduzir Inês, de modo a casar com ela e, assim, sair da miséria em que vive e ter maior desafogo financeiro.
 
 
4. Caracterização de Brás da Mata
 
a) Elogio a Inês

▪ É galanteador: elogia os dotes da jovem (“mui graciosa donzela”).

▪ É sedutor: refere que ela é a mulher que sempre quis (“vós sois, minha alma, aquela / que eu busco e que desejo”).

▪ É eloquente – usa um vocabulário requintado (“Obrou bem a Natureza.”).

▪ Usa metáforas (“fresca rosa”).

▪ Usa hipérboles (“vossa fermosura, / que é tal que, de ventura, / outra tal não se acontece.”).

▪ É falso e mentiroso: ficará com ela, independentemente da situação financeira de Inês (“Senhora eu me contento / receber-vos como estais.”).

 
b) Autocaracterização

▪ É escudeiro / nobre: alega trabalhar para um marechal como escudeiro (“Eu nam tenho mais de meu / somente ser comprador / do marichal meu senhor / e sam escudeiro seu.”).

▪ É culto: sabe “bem ler” e “muito bem escrever”.

▪ Possui dotes artísticos e musicais: tange bem (“logo me vereis tanger”).

▪ É gabarola / fanfarrão (“Sei bem ler / e muito bem escrever / e bom jogador de bola / e quanto a tanger viola / logo me ouvireis tanger.”).

▪ É calculista e preguiçoso, pois pretende viver à custa da mulher (“Leixa-me casar a mi, / depois eu te farei bem.”).

 
c) Segundo o Moço (diálogo entre ambos)

▪ É arrogante e autoritário: “Pera fazeres o que mando.”

▪ É grosseiro e sem vergonha: “o mais sáfio bargante”.

▪ É pobre:
- se Inês casar com ele, passará fome (“Oh como ficará tola / se nam fosse casar ante / c’o mais sáfio bargante / que coma pão e cebola.”);
- a viola é emprestada (“E se ela é emprestada”);
- o Moço passa fome e dorme no chão, sem manta para se cobrir (“No chão e o telhado por manta / e çarra-se-m’a garganta / com fome”);
- o duplo sentido dos versos 610 e 611 – a viola está bem temperada (= afinada), mas o Escudeiro não tem o que temperar, ou seja, o que comer (“Ei-la aqui bem temperada / num tendes que temperar.”).

▪ Promete-lhe que, depois de casar, a vida de ambos será diferente.

 
d) Segundo os Judeus:

▪ É cantador: canta mal e de forma monótona/aborrecida – dá sono ao judeu (“como oivo cantar guaiado / que nam vai esfandegado.”).

▪ É um “caçador de pardais”.

▪ É “sabedor, revolvedor, / falador, gracejador”.

▪ É atrevido – pega na mão de Inês como se ela fosse sua esposa (“afoitado pela mão”).

▪ É desonesto: “sabe de gavião” (o termo “gavião” – ave de rapina – significa que é desonesto, pois rouba o que não lhe pertence).

▪ É fraco e cobarde – envolve-se em brigas, mas acaba por apanhar (“Este escudeiro aosadas / onde se derem pancadas / ele as há de levar / boas senam apanhar”).

 
e) Segundo a Mãe, o Escudeiro é um rascão, um vadio (“Inês guar-te de rascão”).
 
f) Para afirmar os seus dotes artísticos e como estratégia de sedução, canta o romance “Mal me quieren en Castilha”.
 
 
5. Reação inicial de Inês ao discurso do Escudeiro
 
            A reação de Inês ao discurso elogioso do Escudeiro chega-nos através dos comentários dos judeus:
LatãoComo fala!
Vidal E ela como se cala!
            Esta breve troca de palavras significa que Inês Pereira ficou deslumbrada e rendida ao discurso e aos encantos de Brás da Mata, bem como convencida das suas qualidades.
            De facto, está tão embevecida que não consegue articular palavra, o que contrasta com a desenvoltura discursiva de Brás da Mata. Assim sendo, deduz-se que irá haver casamento, o que Vidal intui, conhecedor que é da psicologia feminina, ao afirmar que “este há de ser seu marido / segundo a coisa s’abala”.
 
 
6. Retrato do Moço
 
▪ É pobre e vive em condições muito difíceis, o que é simbolizado pelos seus sapatos rotos, pelas calças muito usadas, por passar fome e frio.
 
▪ É leal e serviçal, obedecendo ao seu amo, mas também revoltado e muito crítico.
 
▪ Os seus apartes mostram a leviandade do Escudeiro (“O Diabo me tomou: / Sair-me de João Montês / por servir um tavanês, / mor doudo que Deus criou!” – o Moço afirma que devia estar possuído pelo Diabo para ter deixado o serviço de João Montês e ir servir um estouvado - «tavanês» – e louco – «mor doudo») e reforçam a ideia de que Inês fará uma má escolha (“Oh! como ficará tola / se não fosse casar ante / co mais sáfio bargante / que coma pão e cebola!”).
 
▪ É sensato, visto que não se deixa impressionar pelas promessas do amo.
 
▪ Manifesta a vontade de se despedir, porque o Escudeiro não dá «governo» (não lhe paga) para o servir.
 
▪ O seu papel é semelhante ao de personagens do mesmo género que surgem noutras peças de Gil Vicente – desmistificar o caráter do Escudeiro:
- a penúria / a pelintrice / a pobreza:
. a viola é emprestada;
. o Moço passa fome, frio e dorme no chão, sem manta para se cobrir;
- em suma, revela a pelintrice famélica típica nos escudeiros vicentinos.
 
 
7. Diálogo entre a Mãe e Inês
 
• A Mãe, recorrendo à ironia, critica Inês por se deixar seduzir e se sentir feliz (“Agora vos digo eu / que Inês está no paraíso.”).
 
• Por outro lado, considera que a filha não está a pensar bem (“Quanta doudice.”).
 
• Inês reage de forma agressiva:
- quase insulta a mãe (“Como é seca a velhice” = como são maçadores os velhos);
- insiste em não casar com um homem tolo (“nam me hei de contentar / de casar com parvoíce.”);
- está encantado com o “homem avisado” (culto, com boas maneiras) que acabou de conhecer.
 
• A Mãe aconselha-a a preferir um homem simples, a ser prudente e racional na escolha do marido.
 
• Após uma interrupção, causada pelos Judeus, as duas mulheres retomam o diálogo:
- A Mãe adverte a filha para o caráter dos Judeus, que apenas estão preocupados com os seus interesses (o dinheiro que receberão) e nada com a felicidade de Inês.
- De seguida, aconselha-a a escolher para marido “um bom oficial / que te ganhe nessa praça / que é um escravo de graça / e casarás com teu igual?” e a livrar-se do “rascão” do Escudeiro, isto é, que lhe dê segurança económica e que pertença à mesma hierarquia social, o que não acontece com o Escudeiro. (Mãe: preocupada, sensata, precavida; Judeus: conveniência, avareza, ganância, proveito.)
 
• Inês responde-lhe, decidida e agressiva, primeiro desvalorizando os comentários da progenitora, dizendo que está a fazer afirmações sem fundamento (“Já minha mãe adivinha…”), pois não tem o dom de adivinhar o futuro, e depois que, se a mãe casou com quem quis, também ela o irá fazer: “Houvestes por vaidade / casar à vossa vontade / eu quero casar à minha.”
 
• Resignada, a Mãe cede à vontade da filha: “Casa, filha, muit’embora.” [= em boa hora]
 
• Inês fica, em suma, tão deslumbrada com o discurso do Escudeiro, dado que este é de uma classe social superior, galante, cortês e com dotes musicais, que decide, de imediato, casar com ele.
 
 
8. Judeus
 
            Neste excerto, as intervenções dos Judeus confirmam o que já se conhecia deles antes: são mentirosos, aldrabões, desonestos, interesseiros e materialistas. A sua única preocupação centra-se no recebimento da quantia combinada com Inês, cujo bem-estar e felicidade futuros lhes são absolutamente indiferentes. É, por isso, que tudo fazem para a convencer a casar com Brás da Mata, elogiando-o e aconselhando-o a casar logo, antes que outro pretendente “carrapatento” avance. Atentos aos comentários da Mãe, que desaprova a intenção da filha, sugerem a Brás da Mata que cante para Inês, para a seduzir.
            Convém não esquecer que os Judeus são casamenteiros – esse é o seu papel – e, nessa qualidade, encarecem os méritos do Escudeiro perante Inês e as qualidades desta perante aquele, mas simultaneamente criticam-nos, subtil e dissimuladamente, elogiam e depreciam, criticando, ao mesmo tempo.

 
9. Cómico
 
Cómico de linguagem:

» a ironia nas falas do Escudeiro;

» a ironia das respostas e apartes do Moço;

» a ironia da Mãe (“Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso”

 
Cómico de caráter: o Escudeiro quer-se passar por alguém que não é na realidade. Por exemplo, traz consigo uma viola que é emprestada e, quando ameaça parti-la na cabeça do Moço, este responde que, depois, não haveria quem a pagasse.
 
 
10. Linguagem
 
. Apóstrofe e metáfora: “Deus vos salve, fresca rosa...” (v. 551):
‑» a juventude e formosura de Inês;
‑» caricatura do estilo cortesanesco e afectado, cheio de jogos verbais, por exemplo.
. Hipérbole: “Mor doudo que Deos criou!” (v. 595).
. Ironia da Mãe: “Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso...” (vv. 627-628) ® traduz a reacção negativa da Mãe à apresentação do Escudeiro.
. Quiasmo: «”Pelo mar vai à vela,
Vela vai pelo mar”?» (vv. 654-655).
. Metáfora: “E sabe de gavião...” (v. 663) ® o Escudeiro é um conquistador sábio na conquista de mulheres; mas tal como o gavião fere e mata as suas presas, também o Escudeiro fere as esperanças e expectativas postas por Inês no seu casamento, no seu futuro;
“... casar he cativeiro.” (v. 729).
. Enumeração, assíndeto, adjetivação (vv. 658-661) ® retratam o verdadeiro carácter do Escudeiro: falador, medroso, hipócrita, cobarde, etc. Brás da Mata enumera as suas qualidades para se valorizar e impressionar Inês, o que revela também o seu narcisismo e vaidade.
. Antítese: “Senhora, eu me contento […] / se vós vos não contentais”.
 
 
11. Representatividade
 
Gil Vicente, através das palavras do Escudeiro, caricatura o estilo cortesanesco e afetado, cheio de jogos verbais, facilmente detetável em muitos dos menos conseguidos poemas do Cancioneiro Geral.
 
O Escudeiro é o retrato do “rascão” vagabundo, que vai vivendo ao sabor da sorte e das suas “falinhas mansas”.
 

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