1.
Estrutura do discurso do Escudeiro
Podemos dividir o discurso do
Escudeiro em duas partes. Na primeira, entre os versos 555 (“Antes que mais
diga agora”) e 577 (“pode falecer nô mais”), Brás da Mata elogia Inês, na segunda,
dos versos 583 (“Eu nam tenho mais de meu”) e 591 (“logo me ouvíreis tanger”),
autocaracterizar-se (enumera as suas próprias qualidades.
2.
Elogio de Inês Pereira
O elogio que o Escudeiro faz de Inês
segue o «modelo» das cantigas medievais, nomeadamente de amor:
a)
retrato de Inês:
-
beleza (metáfora “fresca rosa”)
-
qualidades morais: “despejo” e “discrição”
-
graciosidade e formosura
-
fonte da sua vida: “sois minh’alma”
- em suma, é a mulher perfeita: “outra tal
nam se acontece” (= não existe outra igual);
b) linguagem – vocabulário: “senhora”,
“despejo”, “discrição”, “fermosura” – cantiga de amor; “donzela” – cantiga de
amigo;
c) recursos estilísticos:
-
metáfora: “fresca rosa”;
-
hipérbole: “outra tal não se acontece”;
d) relação entre o enunciador e o
destinatário: o Escudeiro assume uma atitude de
subserviência perante Inês (“Senhora, eu me contento / receber-vos como estais”),
que recorda a vassalagem prestada pelo trovador à sua dama, que é a sua
suserana (como se comprova pelas formas de tratamento: trovador: “senhor” – Escudeiro:
“senhora”) e ele o seu vassalo, dispondo-se a recebê-la em casamento.
No
entanto, o discurso de Brás da Mata opõe-se ao do trovador na cantiga de amor
por causa da sua retórica falsamente elogiosa (pouco antes de se encontrar com
Inês, tinha-se-lhe referido de forma desdenhosa e trocista), do interesse
material que o norteia na procura de noiva para casar e que ultrapassam a
expressão de um amor puro, espiritual e desinteressado, característico dos
cantares de amor trovadorescos.
3.
Objetivo da fala do Escudeiro/do elogio a Inês
O objetivo do Escudeiro é seduzir Inês,
de modo a casar com ela e, assim, sair da miséria em que vive e ter maior
desafogo financeiro.
4.
Caracterização de Brás da Mata
a)
Elogio a Inês
▪ É galanteador: elogia os dotes da jovem (“mui
graciosa donzela”).
▪ É sedutor: refere que ela é a mulher que
sempre quis (“vós sois, minha alma, aquela / que eu busco e que desejo”).
▪ É eloquente – usa um vocabulário requintado
(“Obrou bem a Natureza.”).
▪ Usa metáforas (“fresca rosa”).
▪ Usa hipérboles (“vossa fermosura, / que é
tal que, de ventura, / outra tal não se acontece.”).
▪ É falso e mentiroso: ficará com ela,
independentemente da situação financeira de Inês (“Senhora eu me contento / receber-vos
como estais.”).
b)
Autocaracterização
▪ É escudeiro / nobre: alega trabalhar para um
marechal como escudeiro (“Eu nam tenho mais de meu / somente ser comprador / do
marichal meu senhor / e sam escudeiro seu.”).
▪ É culto: sabe “bem ler” e “muito bem
escrever”.
▪ Possui dotes artísticos e musicais: tange
bem (“logo me vereis tanger”).
▪ É gabarola / fanfarrão (“Sei bem ler / e
muito bem escrever / e bom jogador de bola / e quanto a tanger viola / logo me
ouvireis tanger.”).
▪ É calculista e preguiçoso, pois pretende
viver à custa da mulher (“Leixa-me casar a mi, / depois eu te farei bem.”).
c)
Segundo o Moço (diálogo entre ambos)
▪ É arrogante e autoritário: “Pera fazeres o
que mando.”
▪ É grosseiro e sem vergonha: “o mais sáfio
bargante”.
▪ É pobre:
- se Inês casar com ele, passará fome (“Oh
como ficará tola / se nam fosse casar ante / c’o mais sáfio bargante / que coma
pão e cebola.”);
- a viola é emprestada (“E se ela é
emprestada”);
- o Moço passa fome e dorme no chão, sem
manta para se cobrir (“No chão e o telhado por manta / e çarra-se-m’a garganta
/ com fome”);
- o duplo sentido dos versos 610 e 611 – a viola
está bem temperada (= afinada), mas o Escudeiro não tem o que temperar, ou
seja, o que comer (“Ei-la aqui bem temperada / num tendes que temperar.”).
▪ Promete-lhe que, depois de casar, a vida de
ambos será diferente.
d)
Segundo os Judeus:
▪ É cantador: canta mal e de forma
monótona/aborrecida – dá sono ao judeu (“como oivo cantar guaiado / que nam vai
esfandegado.”).
▪ É um “caçador de pardais”.
▪ É “sabedor, revolvedor, / falador,
gracejador”.
▪ É atrevido – pega na mão de Inês como se
ela fosse sua esposa (“afoitado pela mão”).
▪ É desonesto: “sabe de gavião” (o termo “gavião”
– ave de rapina – significa que é desonesto, pois rouba o que não lhe pertence).
▪ É fraco e cobarde – envolve-se em brigas,
mas acaba por apanhar (“Este escudeiro aosadas / onde se derem pancadas / ele
as há de levar / boas senam apanhar”).
e)
Segundo a Mãe, o Escudeiro é um rascão, um vadio (“Inês guar-te
de rascão”).
f) Para afirmar os seus dotes
artísticos e como estratégia de sedução, canta o romance “Mal me quieren en
Castilha”.
5.
Reação inicial de Inês ao discurso do Escudeiro
A reação de Inês ao discurso
elogioso do Escudeiro chega-nos através dos comentários dos judeus:
Latão – Como
fala!
Vidal – E
ela como se cala!
Esta breve troca de palavras significa
que Inês Pereira ficou deslumbrada e rendida ao discurso e aos encantos de Brás
da Mata, bem como convencida das suas qualidades.
De facto, está tão embevecida que
não consegue articular palavra, o que contrasta com a desenvoltura discursiva
de Brás da Mata. Assim sendo, deduz-se que irá haver casamento, o que Vidal
intui, conhecedor que é da psicologia feminina, ao afirmar que “este há de ser
seu marido / segundo a coisa s’abala”.
6.
Retrato do Moço
▪ É pobre e vive em condições muito difíceis,
o que é simbolizado pelos seus sapatos rotos, pelas calças muito usadas, por
passar fome e frio.
▪ É leal e serviçal, obedecendo ao seu amo,
mas também revoltado e muito crítico.
▪ Os seus apartes mostram a leviandade do
Escudeiro (“O Diabo me tomou: / Sair-me de João Montês / por servir um tavanês,
/ mor doudo que Deus criou!” – o Moço afirma que devia estar possuído pelo Diabo
para ter deixado o serviço de João Montês e ir servir um estouvado - «tavanês» –
e louco – «mor doudo») e reforçam a ideia de que Inês fará uma má escolha (“Oh!
como ficará tola / se não fosse casar ante / co mais sáfio bargante / que coma
pão e cebola!”).
▪ É sensato, visto que não se deixa
impressionar pelas promessas do amo.
▪ Manifesta a vontade de se despedir, porque o
Escudeiro não dá «governo» (não lhe paga) para o servir.
▪ O seu papel é semelhante ao de
personagens do mesmo género que surgem noutras peças de Gil Vicente –
desmistificar o caráter do Escudeiro:
- a penúria / a pelintrice / a pobreza:
. a viola é emprestada;
. o Moço passa fome, frio e
dorme no chão, sem manta para se cobrir;
- em suma, revela a pelintrice famélica
típica nos escudeiros vicentinos.
7.
Diálogo entre a Mãe e Inês
• A Mãe, recorrendo à ironia, critica Inês
por se deixar seduzir e se sentir feliz (“Agora vos digo eu / que Inês está no
paraíso.”).
• Por outro lado, considera que a filha não
está a pensar bem (“Quanta doudice.”).
• Inês reage de forma agressiva:
- quase insulta a mãe (“Como é seca a velhice”
= como são maçadores os velhos);
- insiste em não casar com um homem tolo (“nam
me hei de contentar / de casar com parvoíce.”);
- está encantado com o “homem avisado”
(culto, com boas maneiras) que acabou de conhecer.
• A Mãe aconselha-a a preferir um homem simples,
a ser prudente e racional na escolha do marido.
• Após uma interrupção, causada pelos Judeus,
as duas mulheres retomam o diálogo:
- A Mãe adverte a filha para o caráter dos
Judeus, que apenas estão preocupados com os seus interesses (o dinheiro que
receberão) e nada com a felicidade de Inês.
- De seguida, aconselha-a a escolher para
marido “um bom oficial / que te ganhe nessa praça / que é um escravo de graça /
e casarás com teu igual?” e a livrar-se do “rascão” do Escudeiro, isto é, que
lhe dê segurança económica e que pertença à mesma hierarquia social, o que não
acontece com o Escudeiro. (Mãe: preocupada, sensata, precavida; Judeus:
conveniência, avareza, ganância, proveito.)
• Inês responde-lhe, decidida e agressiva,
primeiro desvalorizando os comentários da progenitora, dizendo que está a fazer
afirmações sem fundamento (“Já minha mãe adivinha…”), pois não tem o dom de
adivinhar o futuro, e depois que, se a mãe casou com quem quis, também ela o irá
fazer: “Houvestes por vaidade / casar à vossa vontade / eu quero casar à minha.”
• Resignada, a Mãe cede à vontade da filha: “Casa,
filha, muit’embora.” [= em boa hora]
• Inês fica, em suma, tão deslumbrada com o
discurso do Escudeiro, dado que este é de uma classe social superior, galante,
cortês e com dotes musicais, que decide, de imediato, casar com ele.
8.
Judeus
Neste excerto, as intervenções dos
Judeus confirmam o que já se conhecia deles antes: são mentirosos, aldrabões,
desonestos, interesseiros e materialistas. A sua única preocupação centra-se no
recebimento da quantia combinada com Inês, cujo bem-estar e felicidade futuros
lhes são absolutamente indiferentes. É, por isso, que tudo fazem para a
convencer a casar com Brás da Mata, elogiando-o e aconselhando-o a casar logo,
antes que outro pretendente “carrapatento” avance. Atentos aos comentários da
Mãe, que desaprova a intenção da filha, sugerem a Brás da Mata que cante para
Inês, para a seduzir.
Convém não esquecer que os Judeus
são casamenteiros – esse é o seu papel – e, nessa qualidade, encarecem os
méritos do Escudeiro perante Inês e as qualidades desta perante aquele, mas
simultaneamente criticam-nos, subtil e dissimuladamente, elogiam e depreciam,
criticando, ao mesmo tempo.
9.
Cómico
•
Cómico de linguagem:
»
a ironia nas falas do Escudeiro;
»
a ironia das respostas e apartes do Moço;
» a ironia da Mãe (“Agora vos digo eu / Que
Inês está no paraíso”
• Cómico de caráter: o Escudeiro quer-se
passar por alguém que não é na realidade. Por exemplo, traz consigo uma viola
que é emprestada e, quando ameaça parti-la na cabeça do Moço, este responde
que, depois, não haveria quem a pagasse.
10.
Linguagem
. Apóstrofe e metáfora: “Deus vos salve, fresca
rosa...” (v. 551):
‑»
a juventude e formosura de Inês;
‑» caricatura do estilo cortesanesco e
afectado, cheio de jogos verbais, por exemplo.
. Hipérbole: “Mor
doudo que Deos criou!” (v. 595).
.
Ironia da Mãe: “Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso...”
(vv. 627-628) ® traduz a reacção negativa
da Mãe à apresentação do Escudeiro.
. Quiasmo: «”Pelo
mar vai à vela,
Vela
vai pelo mar”?» (vv. 654-655).
. Metáfora: “E
sabe de gavião...” (v. 663) ® o
Escudeiro é um conquistador sábio na conquista de mulheres; mas tal como o
gavião fere e mata as suas presas, também o Escudeiro fere as esperanças e
expectativas postas por Inês no seu casamento, no seu futuro;
“...
casar he cativeiro.” (v. 729).
. Enumeração, assíndeto, adjetivação (vv. 658-661) ®
retratam o verdadeiro carácter do Escudeiro: falador, medroso, hipócrita,
cobarde, etc. Brás da Mata enumera as suas qualidades para se valorizar e
impressionar Inês, o que revela também o seu narcisismo e vaidade.
.
Antítese: “Senhora, eu me contento […] /
se vós vos não contentais”.
11.
Representatividade
● Gil
Vicente, através das palavras do Escudeiro, caricatura o estilo cortesanesco e
afetado, cheio de jogos verbais, facilmente detetável em muitos dos menos
conseguidos poemas do Cancioneiro Geral.
● O
Escudeiro é o retrato do “rascão” vagabundo, que vai vivendo ao sabor da sorte
e das suas “falinhas mansas”.
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