Português: Poesia Trovadoresca
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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Cantigas de amigo: análise e interpretação

 
    Episódio sobre as cantigas de amigo, com exemplos textuais e análises dos mesmos [episódio].

Análise da cantiga "Quem a sesta quiser dormir"

 Tema: a pobreza da nobreza – crítica de costumes.
 
 
Assunto
 
            Numa época de calor, depois de se ter almoçado bem noutro local, sabe bem fazer a sesta na cozinha de um infanção: sem lume aceso e sem moscas (pois nela não há géneros alimentícios), é o lugar ideal para tal.
 
 
Personagem criticada: um infanção (um jovem nobre).
 
 
Desenvolvimento do tema
 
            O sujeito poético aconselha aquele que desejar dormir uma boa sesta na casa do infanção depois de almoçar antes, sugerindo que se passa fome naquela casa. De facto, se for à cozinha, verificará que é a mais fria da região, visto que nela não se acende a lareira.

            Na segunda cobla, o «eu» lírico relata a sua experiência pessoal. De facto, ele dormiu um dia naquela cozinha e aí teve a melhor sesta da sua vida desde o dia em que nasceu, visto que nela não havia moscas por ser muito fria, pois não havia lume / não estava acesa nem alimentos para cozinhar.

            Na terceira, o sujeito poético afirma que aquela cozinha, por ser tão fria, é um bom local para se refrescar o vinho… se alguém o der ao infanção, pois também não existe bebida em sua casa, visto que não possui dinheiro para o comprar (“e se vinho gaar d’alguém”).

 
 
Razão da crítica/sátira: a pobreza. A cozinha do infanção está fria porque não é usada, pois nela não existe comida (daí não haver moscas) nem bebida (só bebe vinho se lho derem).
 
 
Recursos expressivos
 
            Os recursos expressivos que predominam na cantiga são a comparação (“tam bõa sesta non levei / des aquel dia’m que naci”; “u nunca Deus quis mosca dar”), a hipérbole (“que tan fria casa non á”, “ena mais fria ren que vi”) e a ironia.

            Através da hipérbole, criticam-se as condições miseráveis (a falta de dinheiro, a fome, etc.) em que o infanção vive. Com a comparação, enfatiza-se a excelente sesta que o sujeito poético fez em casa do infanção e a ausência de moscas, que provam a falta de lume e de alimentos para cozinhar). Por meio da ironia, expõe-se a situação económica frágil do infanção.

 
 
Classificação
 
            O poema é uma cantiga de escárnio:

▪ o nome da pessoa criticada é omitido;

▪ os recursos estilísticos usados eram a ironia e as palavras com duplo sentido.

 
 
Estrutura formal
 
▪ Três coblas de sete versos – sétimas.

▪ Rima:

- esquema rimático: ababccb;

- rima cruzada nos quatro primeiros versos, emparelhada no quinto e no sexto e interpolada nos quarto e sétimo.

▪ Métrica: versos octossilábicos – Quem / a / ses / ta / qui / ser / dor / mir/.
 
 
Crítica social
 
            Esta cantiga denuncia a decadência da nobreza. A crítica é ilustrada com o caso de um infanção (um jovem nobre) que tinham uma cozinha ótima para se fazer a sesta, visto que nela nada se preparava (porque não havia géneros alimentícios), não existindo, por isso, nem lume nem moscas. Esta situação justificava-se pelo facto de os nobres não possuírem meios financeiros, serem pobres, dado pertencerem a uma classe social decadente. Em simultâneo, começava a ganhar preponderância outra: a burguesia.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Poesia Trovadoresca Galego-Portuguesa

 

    Este é o primeiro episódio «a sério» do podcast «Que farei com este livro?», dedicado à Poesia Trovadoresca. Para ouvir o original, basta clicar na ligação [Ep. 1.1.].

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Análise de "Roi Queimado morreu com amor"

 
Assunto: O sujeito poético afirma que Roi Queimado morreu por amor devido à indiferença da mulher amada e destaca, de forma irónica, que ele só morreu poeticamente (portanto, trata-se de uma morte fingida), pois ao terceiro dia «ressuscitou».
Depois de ter ressuscitado, continua a escrever cantigas que crê serem de mestria, anunciando a sua morte por amor de cada vez que compõe uma cantiga de amor.
Possuidor desta capacidade de ludibriar a morte, Roi Queimado não a receia, o que origina a troça do sujeito poético, afirmando que Deus lhe concedeu um poder extraordinário. O sujeito poético finge e inveja, na finda, Roi Queimado pelo seu poder e afirma que, se possuísse semelhante poder, o de ressuscitar, jamais temeria a morte.
 
 
Tema: ridicularização do artificialismo dos trovadores:
- crítica ao fingimento da "morte de amor";
- sátira ao amor cortês.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-7) – Apresentação da situação: Roi Queimado não era correspondido amorosamente, para mostrar que era bom trovador, declarou que morria por amor, mas ressuscitou.
 
2.ª parte (vv. 8-21) – Explicitação da situação / ridicularização do visado, devido à sua vaidade (v. 10) e à superficialidade das suas palavras (vv. 11-12): o trovador fingia repetidamente a morte de amor nas suas cantigas, julgando que o fazia com mestria, mas, afinal, fazia-o com pouca qualidade.
 
3.ª parte (vv. 22-24) – Conclusão: formulação irónica de um desejo pelo sujeito poético – se pudesse viver e morrer constantemente, não temeria a morte.
 
 
Objeto da crítica: Roi Queimado.
Rui (Roi) Queimado foi um trovador português do século XIII, conviva e amigo de João Garcia de Guilhade e Pedro Garcia Burgalês. A alcunha “Queimado” remete para o seu aspeto físico, provavelmente a sua tez muito morena. Foi autor de quatro cantigas de amigo, dezasseis cantigas de amor e quadro de escárnio e maldizer,
 
 
Crítica
explícita: a ridicularização / denúncia da falta de dotes poéticos do trovador Roi Queimado;
implícita:
» crítica à expressão convencional e exagerada da coita de amor – crítica aos trovadores que afirmam morrer de amor nos seus cantares (um cliché da cantiga de amor, comum a outros trovadores);
» paródia das regras do amor cortês de cariz provençal (artificialismo / fingimento da coita de amor e da morte por amor).
 
 
Recursos da crítica
Ironia:
- crítica ao convencionalismo da coita amorosa nas cantigas de amor e do tópico da morte de amor: o sujeito põe a nu o ridículo do trovador que ressuscita sucessivamente após anunciar a sua morte em cada poema que escreve: anuncia a sua morte num poema, aparece vivo no seguinte, para voltar a morrer de amor;
- ridicularizar a mestria de Roi Queimado.
Hipérbole.
Irreverência: alusão a um exemplo bíblico com intenção jocosa – a morte de Jesus Cristo e a sua ressurreição, três dias depois.
Comicidade: paródia do «cliché» da morte de amor com recurso ao cómico – o trovador disse que morria e, afinal, ressuscitou.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
Nível fónico
 
Estrofes: três sétimas e um terceto (finda) heterométricas.
▪ Metro: versos decassílabos e eneassílabos (o primeiro e o último); refrão octossílabo.

▪ Rima:     - abbaccb;
- interpolada e emparelhada;
- consoante ("amor"/"trobador");
- aguda ("amor"/"trobador") e aguda ("Maria"/"queria");
- rica ("Maria"/"queria") e pobre ("amor"/"trobador").
 
 
Nível morfossintático
 
. Verbos no pretérito perfeito: morreu, quis, fez, ressurgiu, porque foi algo testemunhado no passado.
. Adjetivo queimado, que é simultaneamente apelido do trovador e metonimicamente a própria metáfora do "queimar-se por amor": Roi Queimado queimou-se e ficou "queimado" na sociedade pelo ridículo dos seus cantares de amor.
. Paralelismo semântico e estrutural.
 
Nível semântico
 
. Metáfora do «queimar-se» e do «morrer por amor».
. Ironia.
. A imagem bíblica da ressurreição de Cristo ao terceiro dia.
. Comparação: Roi Queimado é comparado a Cristo de forma irónica quando o sujeito poético se finge surpreendido por o trovador afirmar que morre de amor, mas ressuscitará ao terceiro dia. Tal como Cristo, Roi Queimado parece ter vencido a morte.

. Hipérbole: a afirmação da morte de amor (“Roi Queimado morreu com amor” – v. 1).
. Antítese: “de morrer i e des i d’ar viver” (v. 12).
. Polissemia do verbo «morrer».
. Vocabulário religioso: acentua o tom irónico do poema, aproximando Roi Queimado de Jesus Cristo, que também morreu e ressuscitou ao terceiro dia.
. A imagem bíblica da ressurreição de Cristo ao terceiro dia
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de maldizer:
. identificação do destinatário.
 
1.1. Formal:
• cantiga de finda – remate da cantiga, onde se destaca o ridículo do tópico da «morte de amor» das cantigas de amor
• cantiga de mestria: cantiga que não apresenta refrão.
 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Análise de "Ai, dona fea, fostes-vos queixar"

 
Assunto: o sujeito poético elenca os defeitos da mulher a quem se dirige, os quais o impedem de lhe dedicar uma cantiga de amor.
De facto, perante a queixa de uma “dona fea, velha e sandia” que o sujeito nunca a louvara nos seus poemas, apesar de já ter trovado muito, ele dispõe-se agora a louvá-la.
 
 
Tema: ridicularização do amor cortês e da imagem da mulher ideal e perfeita, através do elogio a uma “dona fea, velha e sandia”.
 

Objeto da crítica: uma dama feia que desejava ser cantada, representando todas aquelas que expressavam esse desejo.
 
 
Razão da queixa: a “dona” queixa-se de nunca ter sido louvada nos cantares do trovador / sujeito poético, isto é, de este não compor cantigas sobre ela.
 
 
Caracterização do sujeito poético
▪ Irónico: declara que irá cantar a «dona» numa das suas cantigas, mas, na realidade, o seu cantar será depreciativo, ou seja, afirma que a vai elogiar, mas, na verdade, zombará dela.
▪ Afirma que louvará a dama, mas referindo que ela é feia, velha e louca.
▪ Motivo de nunca a ter elogiado / composto cantigas de amor sobre ela:
(1) não a considerava digna de uma cantiga de amor;
(2) não queria expressar um amor que não sentia;
(3) ela não tinha qualidades para tal: era feia, velha e louca.
▪ Afirma-se superior à «dona», adotando uma postura de arrogância e desprezo, bem visíveis no facto de a invocar, mas não lhe dar a palavra: ditar o silêncio a alguém é quase negar a sua existência como pessoa.
 
 
Retrato da “dona”
▪ feia;
▪ velha;
▪ louca;
▪ gostaria / desejava que o sujeito compusesse cantigas de amor, porque, assim, a elogiaria, e expressasse o seu amor por ela;
 possui as características opostas às da dona da cantiga de amor: feiura - beleza; velhice - juventude; loucura - bom senso / juízo.
 
 
Crítica
explícita: a “dona” é criticada por ser veia, velha e louca;
implícita:
» crítica à presunção e ao irrealismo da dama, que não tem noção de si e, por isso, se considera merecedora de louvor;
» crítica à vaidade feminina excessiva (comparar com o poema “Vaidosa”, de Cesário Verde).
• às cantigas de amor e às regras do amor cortês:
» ridicularização / paródia das regras do amor cortês, pelo elogio a uma dama «fea, velha e sandia» ausência de beleza + ausência de juventude + ausência de razão – um trovador deveria elogiar a sua dama e expressar o seu amor; o «eu» critica esta mulher de forma sarcástica;
» elogio da dama (cantiga de amor) ≠ sátira à dama (esta cantiga);
» caracterização abstrata das qualidades da dama (cantiga de amor) ≠ exposição concreta dos defeitos da dama (esta cantiga);
» desvalorização da imagem da mulher ideal das cantigas de amor.
 
 
Paródia ao amor cortês
 
Na cantiga de amor, o trovador exprime os sentimentos amorosos pela dama (destacando a sua coita de amor, que o faz enlouquecer ou morrer). Por seu turno, a mulher é a suserana a quem o trovador «serve», prestando-lhe vassalagem amorosa.
Esta cantiga de escárnio, através da ironia e da paródia, ridiculariza o amor cortês e o elogio exagerado da «dona» amada, porque é dirigida a uma «senhor» que não reúne os atributos da mulher da cantiga amorosa: formosura, juventude e bom senso / juízo.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
Nível fónico
 
Estrofes: três sextilhas isométricas.
▪ Metro: versos decassílabos e eneassílabos; refrão octossílabo.

▪ Rima:     - aaabab;
- emparelhada e cruzada;
- consoante ("queixar"/"cantar");
- grave ("via"/"sandia") e aguda ("queixar"/"cantar");
- rica ("queixar"/"cantar") e pobre ("via"/"sandia").
Cantiga de refrão (influência da cantiga de amigo), cuja importância advém:
- da apresentação irónica das três características negativas da "dona", que se opõem às do cânone feminino da cantiga de amor;
- de ser um reforço da crítica pela repetição (três vezes);
- de apresentar um ritmo ternário.
▪ Encavalgamento: vv. 8-9, 14-15, etc.
 
Nível morfossintático
 
. Vocabulário de teor negativo.
. Adjetivação: o refrão que fecha cada uma das estrofes contém três adjetivos extremamente negativos que traduzem as características da «dona».
. Repetição de versos e palavras de teor negativo, relativamente à mulher.
. Anáfora: reforço da caracterização negativa da "dona".
. Verbos, sobretudo louvar, usado ironicamente.
. Interjeição Ai: expressa o tom pseudo-lamentoso, pseudo-recetivo.
. A oração adversativa: marca uma viragem para a expectativa (inútil) do louvor ("... mais..."; "... toda via...").
. Dois pontos: abrem sobre o refrão um grau máximo de suspense relativamente ao modo como a mulher será louvada.
. Paralelismo semântico e estrutural (influência da cantiga de amigo): 1.ª copla quase igual à 2.ª, quase igual à 3.ª ® sátira obsessiva e cruel.
 
Nível semântico
 
. Jogo com o verbo «louvar»: passado – «nunca vos eu loei»; presente – «nunca louvo», «quero já loar»; futuro – «vos loarei», «um bom cantar farei».
. Apóstrofe: o trovador dirige-se a alguém, de forma irónica, mas não lhe dá a palavra.
. Exclamação e interrogação (indireta): traduzem ansiedade.
. Ironia: o trovador diz o oposto daquilo que pensa, promete uma coisa (elogiar a mulher) e faz o seu contrário (satiriza-a). A ironia reforça a intenção crítica e satírica do trovador.
. Disfemismo: "dona fea, velha e sandia".
. Sarcasmo: “dona fea, velha e sandia”. A rudeza destas palavras e a evidência de que a promessa de a louvar não passava de ironia dão lugar ao sarcasmo
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de escárnio:
. sátira/crítica velada: identificação vaga ("dona") do destinatário – não é referido o seu nome;
. linguagem humorística e irónica;
. finalidade de divertir e ridicularizar.
 
1.1. Formal: cantiga de refrão.
 
 
Valor documental
 
A referência excessiva, por parte de muitos trovadores, à "morte de amor" mereceu a denúncia vigorosa da falta de sinceridade dessa confissão. Tratava-se de mais uma convenção retórica que, usada em excesso, caía no ridículo.
Pêro Garcia Burgalês alude às muitas cantigas em que Rui Queimado diz morrer de amor e ironiza ao contrapor "morrer de amor" e "ressurgir ao tercer dia" para concluir que assim ninguém teria medo de morrer.
A retórica das cantigas de amor continha ainda outras convenções, como ensandecer, não poder viver sem a visão da "senhor". Interessante seria avaliar onde termina a sinceridade e onde começa o artificialismo, sabido que este se tornava quase inevitável devido ao fosso que separava o amador da sua amada, semelhante ao que separava o servo do senhor.
Esta cantiga parodia o amor e o louvor da dama, que constitui a temática da cantiga de amor.
 

domingo, 15 de novembro de 2020

Análise de "Como morreu quen ben"

 
Assunto: o sujeito poético compara-se àquele(s) que enlouqueceu(eram) ou morreu(eram) por não ser(em) correspondido(s) pela mulher amada.
                Assim como morreu infeliz quem nunca foi correspondido pela mulher amada e viu acontecer o que mais receou – a amada cair nos braços de outro –, assim também morre o sujeito poético pelo mesmo motivo.
 
 
Tema: o amor não correspondido / a coita de amor / a morte por amor.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
Na primeira estrofe, o sujeito poético compara-se a um homem indefinido (isto é, não identificado), que morreu porque nunca foi amado – “nunca bem / ouve” (vv. 1-2) – e porque viu a mulher amada fazer algo de que ele tinha medo – “viu quanto receou / dela” (vv. 3-4).
 
A segunda estrofe repete as ideias da cobla anterior: esse homem morreu porque amou uma mulher que nunca lhe correspondeu esse amor – “foi amar / quem lhe nunca quis bem fazer” (vv. 6-7) – e porque Deus o fez ver algo que o deixou triste – “lhe fez Deus ver / de que foi morto com pesar” (vv. 8-9).
 
Na terceira estrofe, o sujeito poético enumera os efeitos da coita de amor: a loucura – “ensandeceu” (v. 11) –, a perda da alegria e do sono (insónia) – “nom foi ledo nem dormiu” (v. 13) –, o sofrimento por algo que viu – “com grande pesar que viu” (v. 12), além da morte, ideia presente em todas as estrofes por intermédio da comparação.
 
Na última estrofe, o «eu» lírico identifica a causa concreta da coita de amor: o outro homem amou uma dama que nunca o amou ‑ “dona que lhe nunca fez bem” (v. 17) – e viu-a com alguém que não a merecia ‑ “e quem a viu levar a quem /a nom valia, nem a val” (vv. 17-18). E tal como este indivíduo morreu de amor, também o sujeito poético morre, pelas mesmas razões. Esta noção é transmitida através de uma gradação (“ensandeceu” “non foi ledo nem dormiu” “morreu”), que mostra os efeitos progressivos da «coita de amor», da indiferença da mulher amada, ou seja, evidencia, de forma gradativa, o sofrimento do sujeito poético.
A estrofe é a sequência lógica da terceira. De facto, esta terminou com o sujeito poético aludindo à morte de amor e a quarta revela a verdadeira razão da morte: a mulher deixou-se levar por quem não a merecia. É o clímax da cantiga.
 
 
Comparação
 
A cantiga assenta numa comparação que é estabelecida entre o sujeito poético e «alguém» não identificado no poema que morreu infeliz porque nunca foi amado pela mulher por quem se apaixonou. De acordo com a última cobla, essa mulher ter-se-á mesmo envolvido amorosamente com outra pessoa que não a merecia.
O sujeito poético não se queixa diretamente da sua senhora, antes recorre a esta comparação, ao exemplo de um homem indeterminado / indefinido («quem»), que teria morrido por não ser correspondido. Desta forma, evita criticar a sua amada pela não correspondência amorosa, respeitando, assim, o código do amor cortês.
 
 
Coita de amor
 
A coita de amor do sujeito poético está bem presente na cantiga. Ela consiste no estado de sofrimento do «eu», motivado pelo facto de o seu amor não ser correspondido, o que leva à expressão do seu lamento, e que pode conduzir à loucura e à morte.
Estas noções são evidenciadas através da repetição das formas verbais do verbo «morrer» - «morreu», «foi morto» (referentes à pessoa que sofre) e «moir’eu» (referente ao sujeito poético -, repetição essa que acentua a tragicidade das consequências do sofrimento amoroso; da repetição do vocábulo «pesar» («com pesar», «gram pesar») e das formulações «quem nunca bem ouve», «quem lhe nunca quis bem fazer», «dona que lhe nunca fez bem», que realçam o amor não correspondido e a queixa constante em relação à mulher amada.
Neste contexto, assume igualmente grande relevância o refrão. Este é constituído por uma apóstrofe dirigida à amada («mia senhor»), por uma interjeição expressiva de dor («Ai») e pelo segundo termo da comparação presente em cada estrofe («assi moir’eu»), que sugere que a morte é um destino fatal. No seu conjunto, o refrão reforça a forma persistente como o sujeito se lamenta, numa espécie de obsessão com a dor e o sofrimento que o atormentam, isto é, totalmente consumido pelo sofrimento amoroso.
 
 
Refrão
. segundo elemento da comparação que é estabelecida em cada estrofe (“Como morreu…” – “assi moir’eu”);
. contribui para reiterar o sentimento do sujeito poético;
. reforça o sofrimento sentido pelo sujeito lírico;
. intensifica a obsessão do «eu» pela sua amada;
. anuncia a morte por amor do «eu».
 
 
Personagens
. o sujeito poético («eu»)
. a dama / a mulher amada pelo sujeito poético («mia senhor»)
. o rival do sujeito poético
. um indivíduo indefinido («quem»), estranho à relação amorosa do «eu» lírico, com o qual este se compara
 
 
Retrato do sujeito poético
está apaixonado pela sua “senhor”, que é casada (foi levada por quem a não merecia, ou seja, presumivelmente o marido);
▪ sofre imenso por causa da indiferença / da não correspondência amorosa da mulher;
o seu sofrimento e dor vão num crescendo dramático, que atinge o desespero e desemboca na loucura e na morte por amor;
vive uma espécie de obsessão relativamente à “senhor”;
deixa antever o seu ciúme ao constatar que a mulher amada foi levada por outro homem;
a loucura motivada pelo amor faz com que o sujeito poético deixe de viver a sua vida e se torne uma espécie de espectador da mesma, sugerindo assim a tal morte psicológica.
 
 
Retrato da «senhor»
 
A caracterização da «senhor» é feita indiretamente. De facto, as suas características deduzem-se a partir das ações da dama invocada na pequena história do homem com o qual o sujeito poético se compara.
Assim, ela:
▪ não é identificável (em obediência ao código do amor cortês), sendo nomeada apenas pela senha «mia senhor»;
é amada pelo sujeito poético (“rem que mais amou” ‑ v. 2);
é indiferente ao sujeito poético e à sua paixão, não lhe correspondendo e nunca lhe fazendo bem (“lhe nunca fez bem” ‑ v. 17);
escolheu um homem que não a merecia [“(…) a viu levar a quem / a nom valia, nen’a val” ‑ vv. 18-19];
por isto, é a causa do sofrimento, da loucura e da morte (por amor) do sujeito poético;
representa um duplo papel na cantiga: é a amada do sujeito poético e, em simultâneo, a esposa do seu marido.
 
 
Género
 
Este poema é uma cantiga de amor:
. o sujeito poético é masculino;
. expressa a sua coita de amor;
. a atitude de vassalagem amorosa;
. a hiperbolização dos sentimentos: a loucura e a morte de amor.
 
 
Relação com a cantiga de amigo
 
Esta cantiga apresenta traços que encontramos também na cantiga de amigo:
. a presença do refrão;
. o paralelismo de construção de estrofe para estrofe:
- “quen nunca bem / ouve da ren que mais amou” (1.ª estrofe);
- “foi amar / quen lhe nunca quis bem fazer” (2.ª estrofe);
- “amou tal / dona que lhe nunca fez bem” (4.ª estrofe);
. o paralelismo semântico: as estrofes, embora existindo uma certa progressão temática, apresentam ideias muito semelhantes (vide desenvolvimento do tema);
. o desenvolvimento da mesma comparação nas estrofes 1, 2 e 4, de conteúdo equivalente.
Por outro lado, esta cantiga de amor diferencia-se de muitas das outras por não conter nenhum elogio explícito às qualidades da «senhor».
 
 
Forma
 
Esta é uma cantiga de amor de refrão, com versos predominantemente octossilábicos, distribuídos por quatro quadras com refrão monóstico, formando quintilhas.
Relativamente à rima, esta é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema rimático abbac / deedc / cffcc / gaagc.
 

Análise de "Todalas cousas eu vejo partir"

 
Assunto: a donzela constata que tudo muda – os homens, os tempos, etc. –, geralmente para pior, exceto o coração do amigo por ela.
 
 
Tema: a mudança.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – Tese: tudo muda (para pior), exceto o coração do amigo de a amar.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – Desenvolvimento da tese – a mudança no homem:
. de terra
. de estatuto socioeconómico
. de amor
. a constância do amor do amigo
 
3.ª parte (3.ª estrofe) – Confirmação da tese – tudo muda:
. o próprio tempo
. o homem
. a natureza
. exceto o amor do amigo
 

 Desenvolvimento do tema
 
Nesta cantiga de amigo, João Airas de Santiago desenvolve o tema de que tudo passa e só o amor permanece.
De facto, na composição aborda-se a mudança, sendo clara a oposição entre a instabilidade do mundo e a segurança do amor que existe entre a donzela e o seu amigo: tudo muda, à exceção do amor que ele sente por si.
Deste modo, a cantiga estrutura-se da seguinte forma: nos primeiros 4 versos de cada estrofe, a donzela afirma que tudo muda no mundo e, nos dois últimos (incluindo o refrão monóstico), exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada cobla) [lítotes]: o coração do seu amigo nunca deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçon partir / do meu amigo de mi querer bem.”).
Na primeira estrofe, a partir da observação do mundo, a donzela conclui que tudo muda e nada se mantém igual (“Todalas coisas eu vejo partir / do mud’em como soíam seer” – vv. 1-2 –, ou seja, ela observa que certas coisas e situações deixam de existir como antes existiam, coisas a que estava habituada) e as pessoas deixam de praticar o bem, deduzindo-se que passaram a fazer o mal (vv. 3-4). Esta constatação provoca o espanto do «eu» (“tal tempo vos vem!” – v. 4) relativamente ao tempo (presente) que vive, que pode ser comparado ao passado. De facto, a exclamação do verso 4 sugere que o sujeito poético se espanta por tudo mudar e, principalmente, pelo facto de a mudança se operar em sentido negativo: as pessoas já não fazem o “bem” – como era costume –, daí o espanto. A exceção a esta mudança constante é o amor do amigo por si: ao contrário do mundo e das pessoas em geral, o coração (metonímia que traduz a origem do amor) do seu amigo não deixa de a amar (“mais non se pod’o coraçom partir / do meu amigo de mi querer bem” – vv. 5-6). Ou seja, o seu amigo não mudará, não deixará de a amar. Note-se que a palavra «coração» é repetida no penúltimo verso de cada estrofe (dobre), repetição que acentua a importância do sentimento amoroso. Este contraste é marcado pela conjunção adversativa «mais» (= «mas»). Ao nível da linguagem, há a destacar o uso da primeira pessoa, que parece centrar o poema numa questão de interesse pessoal: a constância do amor do amigo por si.
A segunda estrofe abre com a referência à mudança no Homem (isto é, no ser humano, em geral): o coração dos homens afasta-se das “cousas que ama” (v. 8), o homem muda da “terra ond’é” (v. 9) e “d’u grande prol tem” (v. 10). Neste passo, o sujeito poético apresenta o (mau) exemplo dos indivíduos que abandonam e se afastam de um lugar onde (“d’u”) vivem com benefícios e vantagens (“gran prol”) – verso 10. Este lugar de onde se parte pode até ser o que é referido no verso anterior (“e parte-s’home da terra ond’é” –, ou seja, a terra onde se vive. Neste passo, está implícita uma comparação antitética entre o comportamento do “home [que] part’o coraçon / das cousas que ama” e o do amigo, que continua a “querer bem” à donzela. Em resumo: ainda que (“pero que”) outros homens deixem de amar, o seu amigo não deverá imitá-los. Nesta cobla, a antítese é marcada pela locução concessiva “pero que” (“ainda que”).
Em suma: o homem afasta-se das “cousas que ama” e fica a saber-se, pela anáfora dos versos 9 e 10, que essas «cousas» são a “terra ond’é” e “a “prol” que possui.
Na última estrofe, nota-se a repetição do verso 1 no verso 13 apenas com a mudança do vocábulo «partir» para o seu sinónimo «mudar», acentuando a ideia de mudança que rodei a dozela, mudança que é global (“tempos”, “o al”, “a gente”, “ventos” e “tod’outra ren”), mas na qual não se inclui o coração do seu amigo. Esta oposição é marcada, mais uma vez, através da conjunção adversativa «mas». O uso da anadiplose «mudar» / «mudam-s” chama a atenção para o fator “mudança”, reforçado pela anáfora dos versos 14 a 16 e pelos polissíndetos. Por outro lado, a rima interna entre «tempos» e «ventos» traduz exatamente a ideia de transitoriedade.
Em suma, de acordo com a terceira cobla, a mudança atinge “al” (tudo) e “tod’outra ren” (todas as coisas).
 
 
Refrão
 
O refrão (juntamente com o penúltimo de cada estrofe) demonstram, por um lado, o otimismo e a alegria da donzela, uma confiança no amor fiel do seu amigo. Através do verso repetido, ela afirma e reafirma uma situação que não deve alterar-se: nada deve mudar e o sentimento amoroso há de permanecer.
Por outro lado, a insistência que o refrão estabelece tem um significado próprio. De facto, à primeira vista, ele diz e repete que o amigo deve manter o coração firme. No entanto, podemos questionar: aquela insistência não quererá dizer também que há alguma insegurança por parte da mulher? Será o coração do amigo capaz de resistir à tendência que em tudo se observa para a mudança?
 

Dimensão moral e filosófica da cantiga
 
O uso da 1.ª pessoa logo no verso 1 permite concluir que o poema se centra numa questão de interesse pessoal: a lealdade do amigo. No entanto, a segunda estrofe alarga a reflexão do «eu» a considerações de caráter filosófico. Por exemplo, o «home» de que aí se fala não corresponde a nenhum homem em particular, antes evoca a condição humana em geral.
Nessa reflexão está implícita a comparação entre o presente e o passado, concluindo-se que as coisas já não são “como soíam seer”. Esta comparação introduz na cantiga uma tensão dramática, isto é, um conflito entre o que antes era e o que agora é, que se acentua quando se confronta o comportamento do homem que “part’o coraçon / das cousas que ama” com o que é esperado do amigo da donzela.
Assim, se pela forma estamos perante uma cantiga de amigo, pelo tema e pelo propósito ela aproxima-se muito do chamado sirventês moral, que é uma composição de origem provençal que se ocupa, em termos gerais, da crise de valores morais ou religiosos, em estreita conexão com a decadência de costumes sociais.
Segundo Carlos Reis (Leituras Orientadas, p. 66), «o “partir do mundo” que motiva a cantiga pode ser lido como uma imagem que lembra a ameaça do fim de todas as coisas, um fim que a mudança vai preparando. Ao mesmo tempo, [este poema] anuncia alguma poesia que veio depois: o soneto de Camões que começa “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o emocionante poema “Mignonne, allons voir si la rose”, do poeta francês Ronsard, que nos diz da rápida mudança da juventude para a velhice; e, muito mais próximo de nós, o “Soneto da fidelidade”, de Vinicius de Moraes que, em tom de paródia, fala de um sentimento amoroso “que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. 

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