● Assunto: o sujeito poético
elenca os defeitos da mulher a quem se dirige, os quais o impedem de lhe
dedicar uma cantiga de amor.
De facto, perante a queixa de uma “dona
fea, velha e sandia” que o sujeito nunca a louvara nos seus poemas, apesar de
já ter trovado muito, ele dispõe-se agora a louvá-la.
● Tema: ridicularização do amor
cortês e da imagem da mulher ideal e perfeita, através do elogio a uma “dona
fea, velha e sandia”.
● Objeto da crítica: uma dama
feia que desejava ser cantada, representando todas aquelas que expressavam esse
desejo.
● Razão da queixa: a “dona”
queixa-se de nunca ter sido louvada nos cantares do trovador / sujeito poético,
isto é, de este não compor cantigas sobre ela.
● Caracterização do sujeito poético
▪ Irónico: declara que irá cantar a
«dona» numa das suas cantigas, mas, na realidade, o seu cantar será
depreciativo, ou seja, afirma que a vai elogiar, mas, na verdade, zombará dela.
▪ Afirma que louvará a dama, mas
referindo que ela é feia, velha e louca.
▪ Motivo de nunca a ter elogiado /
composto cantigas de amor sobre ela:
(1) não a considerava digna de uma
cantiga de amor;
(2) não queria expressar um amor que não
sentia;
(3) ela não tinha qualidades para tal:
era feia, velha e louca.
▪ Afirma-se superior à «dona»,
adotando uma postura de arrogância e desprezo, bem visíveis no facto de a invocar,
mas não lhe dar a palavra: ditar o silêncio a alguém é quase negar a sua existência
como pessoa.
● Retrato da “dona”
▪ feia;
▪ velha;
▪ louca;
▪ gostaria / desejava que o sujeito
compusesse cantigas de amor, porque, assim, a elogiaria, e expressasse o seu
amor por ela;
▪ possui as características opostas às da dona da cantiga de amor: feiura - beleza; velhice - juventude; loucura - bom senso / juízo.
● Crítica
• explícita: a “dona” é
criticada por ser veia, velha e louca;
• implícita:
» crítica à presunção e ao irrealismo
da dama, que não tem noção de si e, por isso, se considera merecedora de louvor;
» crítica à vaidade feminina
excessiva (comparar com o poema “Vaidosa”, de Cesário Verde).
• às cantigas de amor e às regras
do amor cortês:
» ridicularização / paródia das
regras do amor cortês, pelo elogio a uma dama «fea, velha e sandia» → ausência de beleza + ausência de
juventude + ausência de razão – um trovador deveria elogiar a sua dama e
expressar o seu amor; o «eu» critica esta mulher de forma sarcástica;
» elogio da dama (cantiga de amor) ≠ sátira
à dama (esta cantiga);
» caracterização abstrata das
qualidades da dama (cantiga de amor) ≠ exposição concreta dos defeitos da dama
(esta cantiga);
» desvalorização da imagem da mulher
ideal das cantigas de amor.
● Paródia ao amor cortês
Na cantiga de amor, o trovador exprime os sentimentos amorosos
pela dama (destacando a sua coita de amor, que o faz enlouquecer ou morrer).
Por seu turno, a mulher é a suserana a quem o trovador «serve», prestando-lhe
vassalagem amorosa.
Esta cantiga de escárnio, através da ironia e da paródia,
ridiculariza o amor cortês e o elogio exagerado da «dona» amada, porque é
dirigida a uma «senhor» que não reúne os atributos da mulher da cantiga
amorosa: formosura, juventude e bom senso / juízo.
● Recursos poético-estilísticos
▪ Nível fónico
▪ Estrofes:
três sextilhas isométricas.
▪ Metro: versos decassílabos e eneassílabos;
refrão octossílabo.
▪ Rima: - aaabab;
- emparelhada e cruzada;
- consoante
("queixar"/"cantar");
- grave
("via"/"sandia") e aguda
("queixar"/"cantar");
- rica
("queixar"/"cantar") e pobre
("via"/"sandia").
▪ Cantiga de refrão
(influência da cantiga de amigo), cuja importância advém:
- da apresentação irónica das três
características negativas da "dona", que se opõem às do cânone
feminino da cantiga de amor;
- de ser um reforço da crítica pela
repetição (três vezes);
- de apresentar um ritmo ternário.
▪ Encavalgamento: vv. 8-9, 14-15, etc.
▪ Nível morfossintático
. Vocabulário de teor negativo.
. Adjetivação: o refrão que fecha cada
uma das estrofes contém três adjetivos extremamente negativos que traduzem as
características da «dona».
. Repetição de versos e palavras de teor negativo, relativamente à mulher.
. Anáfora:
reforço da caracterização negativa da "dona".
. Verbos,
sobretudo louvar, usado ironicamente.
. Interjeição Ai: expressa o tom pseudo-lamentoso,
pseudo-recetivo.
. A oração
adversativa: marca uma viragem para a expectativa (inútil) do louvor ("...
mais..."; "... toda via...").
. Dois pontos: abrem sobre o refrão um grau máximo de
suspense relativamente ao modo como a mulher será louvada.
. Paralelismo
semântico e estrutural
(influência da cantiga de amigo): 1.ª copla quase igual à 2.ª, quase igual à
3.ª ® sátira obsessiva
e cruel.
▪
Nível semântico
. Jogo com o verbo «louvar»:
passado – «nunca vos eu loei»; presente – «nunca louvo», «quero já loar»;
futuro – «vos loarei», «um bom cantar farei».
. Apóstrofe: o trovador dirige-se a alguém, de forma irónica, mas não lhe dá a
palavra.
. Exclamação e interrogação (indireta):
traduzem ansiedade.
. Ironia: o trovador diz o oposto daquilo que pensa,
promete uma coisa (elogiar a mulher) e faz o seu contrário (satiriza-a). A
ironia reforça a intenção crítica e satírica do trovador.
. Disfemismo: "dona fea, velha e sandia".
. Sarcasmo: “dona fea, velha e sandia”. A rudeza destas
palavras e a evidência de que a promessa de a louvar não passava de ironia dão
lugar ao sarcasmo
● Classificação
1. Cantiga de escárnio:
. sátira/crítica
velada: identificação vaga ("dona") do destinatário – não é referido
o seu nome;
. linguagem humorística e irónica;
. finalidade de divertir e
ridicularizar.
1.1. Formal: cantiga de refrão.
● Valor documental
A referência excessiva, por parte de muitos trovadores, à
"morte de amor" mereceu a denúncia vigorosa da falta de sinceridade
dessa confissão. Tratava-se de mais uma convenção retórica que, usada em
excesso, caía no ridículo.
Pêro Garcia Burgalês alude às muitas cantigas em que Rui
Queimado diz morrer de amor e ironiza ao contrapor "morrer de amor" e
"ressurgir ao tercer dia" para concluir que assim ninguém teria medo
de morrer.
A retórica das cantigas de amor continha ainda outras
convenções, como ensandecer, não poder viver sem a visão da "senhor".
Interessante seria avaliar onde termina a sinceridade e onde começa o
artificialismo, sabido que este se tornava quase inevitável devido ao fosso que
separava o amador da sua amada, semelhante ao que separava o servo do senhor.
Esta cantiga parodia o amor e o louvor da dama, que constitui
a temática da cantiga de amor.
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