Português: Resultados da pesquisa para d. joão iii
A apresentar mensagens correspondentes à consulta d. joão iii ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta d. joão iii ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens

domingo, 27 de novembro de 2011

Tempo da ação / diegese

     Apesar de, na primeira didascália que antecede o início do ato I, constar a referência à "... caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete", a ação desenrola-se, efetivamente, em 1599, último ano do sécilo XVI. O próprio Garrett declarou, na Memória ao Conservatório Real, lida a 6 de maio de 1843, que os aspetos cronológicos não o preocuparam aquando da escrita da peça, pois considerou mais importante "o trabalho da imaginação", irreconciliável com os "algarismos das datas".
     Com efeito, a ação respeitante ao ato I inicia-se no dia 28 de Julho de 1599, no final da tarde de uma sexta-feira, e terminada na madrugada de 5 de agosto do mesmo ano.

     Cronologicamente, os acontecimentos abordados na peça são os seguintes:
  • 4 de agosto de 1576: casamento de D. Madalena com D. João de Portugal (II, 10);
  • 4 de agosto de 1577: D. Madalena vê pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho (II, 10);
  • 4 de agosto de 1578:
               - batalha de Alcácer Quibir;
               - desaparecimento de D. Sebastião e de D. João;
  • de 1578 a 1585: durante este período de 7 anos, ocorrem as buscas infrutíferas de D. João de Portugal - D. Madalena envida todos os esforços no saber notícias do seu marido, sem, contudo, obter qualquer resultado ("... D. João ficou naquela batalha (...) como durante sete anos (...) o fiz procurar..." - 1578 + 7 = 1585);
  • 1585: D. Madalena casa com Manuel de Sousa, por quem se apaixonara ainda durante o primeiro casamento;
  • 1585 a 1599: 14 anos do segundo casamento ("... vivemos (...) seguros, em paz e felizes... há catorze anos.");
  • 1586: nascimento de Maria ("Então! Tem treze anos feitos..." - I, 2);
  • 4 de agosto de 1598: libertação de D. João de Portugal;
  • 28 de julho de 1599: incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho (I, 12);
  • 4 de agosto de 1599: chegada do Romeiro (II, 1-14);
  • madrugada de 5 de agosto de 1599:
               - morte de Maria;
               - tomada de hábito de D. Madalena e D. João de Portugal.

     Tendo em conta estes dados, conclui-se que o tempo da diegese dramática é de 21 anos: 1578 a 1599.

     A ação propriamente dita desenrola-se em cerca de uma semana:
  • Julho:
               - 28 ® ato I ("É no fim da tarde.")
              (sexta-feira)
  • Agosto:
               - 1 a 3 ® D. João aproxima-se da sua casa (três dias)
               - 4 ® ato II  ® 8 dias após o final do ato I e do incêndio
               (sexta-feira)      ® chegada do Romeiro
               - 5 ® ato III ® "alta noite"
                    ® tomada de hábito (morte para o mundo)
                    ® morte de Maria 
                    ® partida do Romeiro


  • Concentração / afunilamento do tempo
     De acordo com os preceitos da tragédia clássica, o tempo de Frei Luís de Sousa sofre uma redução progressiva que contribui para a construção da tensão dramática: 21 anos (1578 a 1599) ® 14 anos (duração do segundo casamento de D. Madalena) ® 7 anos (tempo durante o qual D. Madalena procurou, em vão, D. João) ® 1 ano (tempo que medeia entre a libertação e a chegada do Romeiro a Almada) ® 8 dias (vida da família no palácio de D. João) ® 3 dias (D. João aproxima-se da sua casa) ® 1 dia (4 de agosto - «Hoje» - chegada do Romeiro / D. João) ® 5 horas da madrugada de 5 de agosto (tomada de hábito e morte de Maria).



  • Simbolismo de algumas referências temporais
  • Sexta-feira: é um dia considerado aziago, conotado com a tragédia, de acordo com a tradição popular (por exemplo, a sexta-feira 13). Para D. Madalena, é um dia fatal ("Ai que é sexta-feira." - II, 5; "É um dia fatal para mim..." - II, 10) e foi nele que ocorreram os acontecimentos centrais da sua vida:
                         » primeiro casamento (com D. João);
                         » primeiro encontro com Manuel de Sousa, por quem se apaixona à primeira
                            vista,apesar de ainda estar casada com o primeiro marido;
                         » batalha de Alcácer Quibir;
                         » desaparecimento de D. João e de D. Sebastião;
                         » incêndio do próprio palácio por Manuel de Sousa, seguido da mudança, com
                            a família, para o de D. João;
                         » regresso de D. João, disfarçado de Romeiro.
  • Ambiente crepuscular e / ou noturno, caracteristicamente romântico, está associado à morte que se abaterá sobre a família e sublinha um certo aspeto transgressor que envolve toda a história daquele núcleo familiar:
                         » "É no fim da tarde" (didascália inicial do ato I);
                         » "É noite fechada" (I, 7);
                         » "É alta noite" (didascália inicial do ato III).
  • Número 7 e seus múltiplos:
                         »  D. Madalena procura saber notícias do seu primeiro marido durante sete
                             anos, após os quais se casa com Manuel de Sousa;
                         » o casamento de D. Madalena e Manuel de Sousa durava há catorze anos
                            (2 X 7);
                         » D. João regresso vinte e um anos após o seu desaparecimento / a batalha
                            de Alcácer Quibir (3 X 7).
     Ora o 7 é o símbolo da totalidade: 7 foram os dias da criação do Mundo, 7 são os pecados mortais e as virtudes que se lhe opõem, 7 são os dias da semana, 7 são as cores do arco-íris.
     Assim, o 7 é o número associado à conclusão de um ciclo e ao início de outro: o final da vida do casal e, consequentemente, com a tragédia; o fim de um ciclo (a destruição da família, a morte de Maria...) e o início de uma nova vida (tomada de hábito).
  • Número 9: este número simboliza também o nascimento de uma nova vida (por exemplo, os 9 meses de gestação de um ser humano), a passagem a outro estádio da existência; daí que a tomada de hábito, marcando a transição do mundo profano para o mundo religioso, tenha lugar ao nono dia. 
  • Número 3: o número da perfeição, daí que 21 seja o símbolo da tragédia perfeita (21 = 3 X 7). 
  •  Número 13: o número tradicionalmente associado ao azar (Maria tem treze anos).
  • Mês de agosto: mês do desgosto.
                         » simbologia do mês de agosto »»»
                         »  acontecimentos trágicos acontecidos durante agosto »»»

Agon

. De D. Madalena:
     * interior, de consciência (I, 1):
               - personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
               - personalidade real ou oculta, infeliz ou "desgraçada", ligada a D. João pela
                  memória do passado, pelo remorso do presente;
     * contínuo e crescente;
     * com Telmo:
          - apesar de lhe ter obedecido durante os 7 anos de «viuvez» como a um pai, D.
             Madalena não segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado na carta
             profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;
     * com D. João:
          - nas conversas com Telmo, testemunha da «desobediência» de D. Madalena, conversas
             cheias de reticências, de subentendidos, de duplos sentidos, de alusões, de agouros,
             de «futuros», de pressentimentos de desgraça iminentes (I, 2);
          - a consciência atormentada e o remorso de D. Madalena (I, 1);
          - as reações de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à
             crença da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião (I, 3);
          - a relutância de voltar a viver no palácio de D. João (I, 7 e 8);
          - a reação tida ao chegar ao palácio do primeiro marido (II, 1);
          - a "confissão" a Frei Jorge (II, 10);
     * com Maria:
          - para Maria, há um enigma que nem a mãe, nem o pai, nem Telmo se prontificam a
             decifrar; são segredos e mistérios intuitivamente pressentidos que não consegue
             desvendar;
          - a razão por que nem a mãe nem o pai, apesar do seu patriotismo ("... que ele não
             é por D. Filipe, não é, não?") acreditavam no regresso de D. Sebastião;
          - a razão por que, quando em tal se falava, o pai mudava de semblante e a mãe se
             afligia e até chorava;
     * com Manuel de Sousa Coutinho (I, 7 e 8): a necessidade de mudança para o palácio
        de D. João após ele ter incendiado o seu próprio lar, mudança a que ela se opõe.

. De Telmo:
     * de consciência: começa a ser evidente o conflito / a divisão de consciência entre o desejo
        do regresso de D. João e o amor a Maria / a incompatibilidade entre o amor a D. João e
        a Maria (III, 4);
     * com D. Madalena:
          - desaprova o casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética
             de D. João, escrita na madrugada da batalha;
          - desaprova igualmente o casamento baseado na superstição de que, se D. João voltasse
             e aparecesse a D. Madalena, não se iria embora sem lhe aparecer também;
          - daí vieram os «ciúmes», as alusões, os agouros, os «futuros»;
          - este conflito de Telmo com D. Madalena fica sempre sem solução;
     * com Maria (I, 2):
          - a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo ("Digna
             de nascer em melhor estado");
          - o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar;
          - novo conflito (II, 1), no entanto, se pode observar nas evasivas, nas meias-verdades,
             nas reticências, na relutância em revelar a identidade da personagem do retrato;
          - é Manuel de Sousa quem identifica essa personagem (II, 2);
    * com Manuel de Sousa (I, 2):
          - apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João;
          - por conta deste tem "ciúmes" e alguma aversão por o considerar um intruso;
          - o conflito resolve-se quando Manuel de Sousa o cativa pelos atos de resistência aos
             governadores, que culminam com o incêndio do próprio palácio (I, 7, 8 e 12),
             chegando mesmo a admirá-lo;
     * com D. João de Portugal (III, 4 e 5):
          - o amor a Maria venceu o amor a D. João;
          - por isso, chega a oferecer a sua vida em troca da vida "daquele anjo" e a desejar a
             morte de D. João.

. De Maria:
     * não tem conflito interior;
     * com D. Madalena:
          - a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (cena 3, ato I) - D.
             Madalena não acredita, nem lhe convém acreditar nem uma coisa nem outra, enquanto
             Maria acredita firmemente;
          - desconfia que a mãe oculta alguma coisa muito importante; por isso, está sempre
             atenta, a observar os sobressaltos, as reações, a ansiedade da mãe a seu respeito; por
             isso, lê nas palavras, nas ações e nos gestos da mãe e do pai, à procura de indícios, de
             respostas para a sua curiosidade (cena 4);
          - não pode cumprir as esperanças nela depositadas (cena 4, ato I);
          - por isso, desejava ter um irmão;
     * com Manuel de Sousa:
          - duvida do patriotismo do pai (cena 3, ato I), por causa das atitudes que ele toma, ao
             ouvir falar de D. Sebastião ("Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe, não é,
             não?");
          - a hipótese não tem fundamento.;
     * com os governadores de Lisboa (I, 5): a resistência à tirania, concretizada na ideia de
        lutar e organizar a defesa, para que aqueles não entrem no seu palácio;
     * com Telmo Pais (II, 1), a propósito da identidade da personagem do retrato:
          - as meias-verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o
             nome do cavaleiro retratado;
          - os indícios observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe,
             no dia da mudança para este palácio; a intuição do segredo e a persistência em a
             manterem na ignorância daquele "mistério";
     * com D. João de Portugal:
          - antes da mudança de palácio (cena 4, ato I):
               . pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa
                 ser feliz;
               . por isso, procura uma resposta, com os meios ao seu dispor: a capacidade de
                 "ler nas estrelas" e os sonhos e as visões ("... leio... nas estrelas do céu também,. 
                 e sei cousas...");
          - depois da mudança (II, 1 e 2):
               . fica a saber, a partir da atitude da mãe, que a figura representada no retrato e de
                 quem ignora a identidade, é esse alguém, causador de todos os sofrimentos;
               . daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo até à revelação da
                 identidade do retratado; no entanto, ela já o sabia "de um saber cá de dentro";
          - por fim (III, 11 e 12):
               . revela que sempre houve alguém a interpor-se entre ela e a mãe, entre ela e o
                 pai, por intermédio da figura simbólica de um anjo vingador: "Mãe, mãe, eu
                 bem o sabia... nunca to disse, mas sabia-o; tinha-mo dito aquele anjo que
                 descia com uma espada de chamas na mão, e a atravessava entre mim e ti,
                 que me arrancava dos teus braços quando eu adormecia neles... que me fazia
                 chorar quando meu pai ia beijar-me no teu colo";
               - identifica-o: "É aquela voz, é ele, é ele!".

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     * não possui conflito de consciência;
     * não entra em conflito com outras personagens, exceto com os governadores;
     * a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens.

. De D. João de Portugal:
     * alimenta os conflitos dos outros:
          - com D. Madalena: a consciência atormentada pelos remorsos;
          - com Telmo:
               . a perda do aio por causa de Maria;
               . a luta contra a resistência de Telmo à sua ordem de mentir para salvar D.
                 Madalena;
          - com Manuel de Sousa Coutinho:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por se sentir espoliado por ele e por D. Madalena: "Tiraram-me tudo";
          - com Maria:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por o ter expulsado do coração de Telmo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O Renascimento em Portugal - Generalidades

         Apesar da dinâmica que se fez sentir na sociedade portuguesa a partir do século XV, do impacto dos Descobrimentos na mudança das mentalidades e da contratação de humanistas estrangeiros por parte de monarcas portugueses a partir do reinado de D. Afonso V, o Renascimento chegou tardiamente ao nosso país. Observe-se, por exemplo, como a arquitetura nunca se chegou a impor verdadeiramente, em razão da influência do estilo gótico, que se prolongou até ao reinado de D. Manuel e esteve na origem do estilo manuelino, uma espécie de modernização renascentista do gótico. Somente no reinado de D. João III (1521 – 1557) se constituíram edifícios marcadamente renascentistas, como a Igreja de Nossa Senhora da Graça em Évora, a Misericórdia de Beja, as sés de Miranda do Douro, Leiria e Portalegre e um dos claustros do Convento de Cristo em Tomar.

         Politicamente, durante o período de vida de Camões (1524 ? ‑ 1580), reinaram em Portugal D. João III, D. Sebastião e D. Henrique. Camões assistiu ao fim do ciclo dos Descobrimentos, que foram anteriormente, simultaneamente, uma das causas e consequências do espírito renascentista. Contribuindo para a abertura de novos horizontes ao homem europeu, os Descobrimentos determinaram um conjunto de transformações:


         Aproximadamente doze anos após o nascimento de Camões, surge em Portugal o Tribunal da Inquisição. Em 1531, regista-se um grande terramoto no reino, ficando destruídas povoações inteiras. A desproporção entre a escassez de recursos humanos e a vastidão geográfica das terras descobertas, a sucessão de naufrágios (o de Sepúlveda foi em 1522), a derrota em Alcácer Quibir em 4 de agosto de 1578 contribuíram fortemente para a queda do nosso império. Em suma, é lícito concluir que o tempo biográfico de Camões corresponde à trajetória política portuguesa, que culmina com a perda da independência em 1580.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Análise da Cena 5 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.


● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».


● O que permite o reconhecimento de D. João de Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz… esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.


● Entre as duas personagens existe uma relação paternal, de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...». De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo, gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado lhe fala de Maria.


● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida, parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho criado.


● No final, D. João de Portugal reconhece o quão imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.». E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».


● Note-se que Telmo tinha razão com a sua superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D. Madalena e a segunda para o velho aio.


● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».


● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.


● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena. Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra que é uma personagem exemplar.


● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio, visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».


● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes, que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.


● Esta cena confirma o que a anterior deixava adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que, afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça, Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D. Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos seus princípios por amor a Maria.


A figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa

De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):

A. D. João de Portugal é uma entidade dupla:

1 – É uma entidade abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses da tragédia grega).

2 – É uma entidade concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a tomada de hábito de Madalena.

B. D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático e vivo da palavra:

1 – Não é uma personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções, sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas (I, 1).

2 – Não é uma personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na eficácia das suas tentativas de solução da crise?

C. D. João de Portugal é uma personagem virtual

D. João é a presença simbólica de uma «força trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas progressivamente tensas até ao desfecho.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Análise da Cena 15 do Ato II de Frei Luís de Sousa

Comentário da cena

Frei Jorge, atónito, ainda não completamente esclarecido, interroga o Romeiro para desfazer as últimas dúvidas. No entanto, é para ele que está reservada a última surpresa:
JORGE – «Romeiro, romeiro, quem és tu?»
ROMEIRO (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – «Ninguém».
O vocábulo posto na boca do Romeiro – ninguém (pronome indefinido) – encerra uma grande carga dramática e psicológica. Por um lado, é o desenlace trágico de uma situação insustentável; por outro, resume todo o sofrimento e a desilusão do Romeiro, que nada mais pode esperar da vida familiar. De facto, o sentido da palavra é abrangente: D. João de Portugal é ninguém no sentido de não ser esperado por nenhum dos seus familiares, que organizaram a sua vida na base da sua morte; a sua própria casa já não lhe pertence, está ocupada por um intruso. Assim, o Romeiro anula-se enquanto pessoa com identidade própria, por não ter existência para os outros, por não ter a vida a que tinha direito, uma vez que a sua própria família construiu, a partir da sua «morte», uma à sua. De facto, o Romeiro fizera todos os esforços para se manter vivo na Palestina e regressar a Portugal para a sua esposa, mas esta não só já não o esperava, como também construíra a sua felicidade em cima da sua «morte». Assim, apagado da memória da mulher que amava e era toda a sua família, D. João de Portugal perdeu tudo durante os 20 anos de cativeiro: – a família; – a identidade (ninguém o reconhece); – o lugar que era seu / a sua casa. D. João de Portugal, aniquilado, é o símbolo de Portugal. Além deste sentido, pode também ser interpretada como outra prolepse, uma antecipação do desenlace de D. João: o anonimato.
E ali está presente e vivo D. João, alçado no meio da casa, com aspeto severo e tremendo. Ele vem reclamar tudo a que tem direito: a casa, a esposa, o nome... Quem poderá negar-lhe esse direito? Que lei, divina ou humana, poderá ser invocada para, com justiça, lho negar?
Frei Jorge compreende, por fim, toda a verdade. E só então parece medir o alcance das implicações desastrosas que essa descoberta vai trazer para D. Madalena, para Manuel de Sousa e para Maria. Daí que Frei Jorge caia prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna, como a implorar do Céu remédio, para o que, desde agora, já não tem nem pode ter remédio.

NOTAS:

1.ª) A figura do Romeiro concretiza a figura de D. João:
. sem o seu aparecimento não haveria drama;
. é o agente destruidor da tranquilidade da família, aparentemente feliz;
. é uma espécie de fantasma ou entidade abstrata nos dois primeiros atos, que absorve os pensamentos de Madalena, Telmo, Manuel e do próprio Frei Jorge;
. no ato III, vai precipitar o desenlace trágico, apesar da sua atuação como personagem ser reduzida.
Sobre a figura do Romeiro, informa António José Saraiva: "O Romeiro é o portador da fatalidade: o aparecimento dele vem anular toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua esposa viúva e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, que se julgava morto como um vulcão extinto, vem tragar os vivos que se tinham instalado na sua cratera.".

2.ª) O tempo (hoje) e o espaço (a área da moldura do retrato) atingem forte concentração, direcionando a ação dramática para a catástrofe.

3.ª) Esta é uma cena dispensável para os espectadores/leitores, que já sabem tudo; todavia, é importante para Frei Jorge que, além de acumular o máximo de informações, terá um papel importante a cumprir.

4.ª) Comparando esta cena com a última do primeiro ato, constata-se que são ambas espetaculares e que o paralelismo de construção é uma constante no Frei Luís de Sousa.

5.ª) Quem, além dos espectadores/leitores, fica a saber, no final do segundo ato, que o Romeiro é o próprio D. João de Portugal?
D. Madalena, ausente desde o fim da cena anterior, só ficou a saber pelas palavras do Romeiro-mensageiro que D. João de Portugal esteve sempre vivo durante todos aqueles anos, que estava ainda vivo nessa altura, que lhe enviou aquele estranho recado.
As restantes personagens encontram-se em Lisboa.
Só Frei Jorge, confidente qualificado, na dupla posição de irmão de Manuel de Sousa e cunhado de D. Madalena, e de sacerdote, recebe e percebe totalmente a informação de que conclui, sem dúvida, estar em presença do próprio D. João de Portugal.
Por isso, haverá outros momentos de anagnórise, de modo que todas as outras personagens, frente a frente, reconheçam no Romeiro o próprio D. João de Portugal.


Características trágicas (cenas 14 e 15)

▪ O simbolismo do tempo: D. João regressa numa sexta-feira (o4/08/1599), no vigésimo primeiro aniversário da batalha de Alcácer Quibir (sexta-feira)  21 = 7 (tragédia) x 3 (perfeição) = tragédia perfeita.

▪ Semelhança do assunto com as antigas tragédias gregas: a volta de D. João sob disfarce de um mendigo (Ulisses).

Hybris de D. João de Portugal
A hybris de D. João é anterior ao início da ação:
-» abandona a esposa, embora por razões nobres: acompanha o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé, por motivos cavaleirescos; na sociedade feudal, aos nobres cabia combater, pelo rei e pela grei, e em defesa da Fé. Era este um dos ideais da cavalaria medieval. Por esse ideal se arriscava a vida, se sofria a morte, ou o cativeiro, e se atingia a glória: como diz Manuel de Sousa: "... não hajais medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis" (I, 8);
-» o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói. É um crime de impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém e, durante quase 21 anos, não dá notícias suas, embora contra vontade;
-» todos o consideram morto.

Agón de D. João de Portugal
Antes do regresso, na figura do romeiro-mensageiro, os conflitos com as outras personagens manifestam-se:
1. em D. Madalena, na consciência atormentada pelos remorsos;
2. em Telmo:
- nos ciúmes, nos agouros e profecias, na crença no regresso de seu amo, baseado nos dizeres de a célebre carta, escrita na madrugada da batalha;
- nas prevenções e nas opiniões desfavoráveis a Manuel de Sousa, em confronto com as qualidades de D. João;
- na animadversão contra Maria;
3. em Maria, nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que perscruta as palavras e as meias-palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato (II, 2).
Mas o conflito, face a face, com D. Madalena, verifica-se com a entrada do romeiro-mensageiro (II, 14), em todo esse diálogo de grande densidade.
Nessas frases do Romeiro, carregadas de duplos sentidos, de alusões veladas ou claras, mas sempre diretas, de ironias, de sarcasmos, de graves acusações, as palavras ferem como punhais; por isso este diálogo é, antes de tudo, um autêntico duelo de palavras, em que D. Madalena por fim sucumbe, naquele grito espantoso, em tom cavo e profundo, grito de coração – como indicam as rubricas
Em primeiro lugar, o Romeiro não é apenas um mensageiro, um qualquer que traz um recado. É um português "como os melhores": os melhores são os nobres, os aristocratas. É esse mesmo o significado da palavra. Em segundo lugar. Viveu nos Santos Lugares "vinte anos cumpridos". Em terceiro, operou-se nele uma grande mudança entretanto: "Estou tão velho e mudado do que fui". Em quarto, se houve mudanças físicas, os sentimentos, as paixões permaneceram: "... as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito...". Em quinto, não tinha deixado descendência: "Eu não tenho filhos, padre". Em sexto, já não tem família: "Já não tenho família". A frase é ambígua; os advérbios marcam, com amarga ironia, o presente estado de coisas no seu lar, em confronto com o passado. E parentes? Amigos? "Os mais chegados, os que me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela". Esta resposta é uma alusão pungente e de amarga ironia à esposa infiel. E segue-se-lhe outra grave acusação: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder". Que sarcasmo e que crueldade do Romeiro contra D. Madalena. E ele prossegue: "De parentes já sei mais do que queria. Amigos, tenho um; com esse conto", numa referência óbvia a Telmo. Qual será a sua desilusão, quando mais tarde verificar que também perdeu esse amigo? Por fim, nova cruel ironia, novo sarcasmo: "Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito".

Há ainda outros elementos desse conflito, na progressiva identificação do romeiro-mensageiro com a figura de D. João de Portugal:
1. Quem o encarregou de trazer o recado foi "... um honrado homem... a quem unicamente devi a liberdade... a ninguém mais". Esta frase ambígua é, todavia, muito clara para quem tivesse ouvidos para ouvir.
2. "... lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que correram por estas faces. Ninguém o consolava, senão eu... e Deus!". A identificação está bem clara. Só uma espécie de anestesia moral muito inquietante, dadas as circunstâncias, é que poderá explicar a falta de clarividência de D. Madalena.
3. Mais claro ainda, se é possível: conhecê-lo-ia "Como se me visse a mim mesmo num espelho".
Mas, afinal, não bastou tudo isto. Foi preciso que Frei Jorge tomasse a iniciativa de obrigar o Romeiro a procurar, de entre os retratos, aquele que representava D. João de Portugal, para D. Madalena abrir por fim os olhos à evidência, e sucumbir, no fim deste duelo, desta luta de golpes certeiros.

▪ O aparecimento do Romeiro, pelo aspeto com que se apresenta, pela determinação de quem sabe o que faz e o faz do modo que quer, pela terrível mensagem de que é portador, pelo reconhecimento da sua verdadeira identidade:
. não é um acontecimento gratuito;
. nem desprovido de significado;
. antes verosímil e necessário, porque o argumento da tragédia gira à volta de um regresso do marido ausente, e porque assim o sentem as personagens envolvidas;
. constitui, portanto, uma autêntica peripécia, que se caracteriza por ser imprevista e imprevisível quanto ao mandatário, quanto ao teor da mensagem, quanto ao reconhecimento da personagem oculta.

▪ A peripécia é dinâmica, porque faz progredir e intensificar a ação (clímax) até ao ponto culminante (acmê).

▪ A intensificação da ação provoca sofrimentos terríveis (pathos), sobretudo em D. Madalena, mas também em Frei Jorge e, posteriormente, nas outras personagens.

▪ O ponto culminante corresponde ao momento do reconhecimento (anagnórise) da última cena.

▪ Verdadeira «reviravolta da fortuna», na designação aristotélica, a anagnórise precipita, por fim, o desfecho (catástrofe), pela grave modificação das posições relativas de cada personagem.


Duas notas finais:

1.ª) a extrema economia de meios, a densidade da «trama dos factos» e a concentração de efeitos (cenas 11 a 15);

2.ª) a forma como Garrett segue o preceito aristotélico: "A mais bela forma de reconhecimento é a que se dá com a peripécia".


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Fontes da obra de Fernão Lopes

1. Fontes narrativas
  • Crónica do Condestabre de Portugal (sobre Nuno Álvares Pereira), anónima, redigida provavelmente entre 1431 e 1436.
  • Tratados dos Feitos de D. João, Mestre de Avis, de Cristophorus (eclesiástico ou doutor em leis).
  • Crónica dos Reis de Castela, de Pero López de Ayala.
  • Crónica dos Feitos de D. Fernando, de Martim Afonso de Melo.
  • Livro de linhagens do conde D. Pedro.
  • Pelo menos cinco narrativas anónimas, referidas pelo próprio cronista e que descrevem a Batalha de Aljubarrota.
     Fernão Lopes recorre a várias fontes (textos históricos anteriores) com o objetivo de:
  • Fundamentar a verdade histórica em documentos escritos;
  • Confrontar os documentos para aferir a verdade dos factos.


2. Fontes documentais
  • Atas de cortes.
  • Documentos das chancelarias.
  • Bulas papais.
  • Bitafes antigos, isto é, epitáfios de sepulturas.
  • Práticas e sermões, procurações.
  • Correspondência epistolar particular e oficial.


3. Fontes orais

     Fernão Lopes socorreu-se ainda de testemunhos de pessoas que assistiram a acontecimentos narrador e que conheceram aqueles que nele participaram. De facto, o cronista teve acesso a testemunhos vivos, isto é, a pessoas que tinham conhecido aqueles tempos, nomeadamente os da crise de 1383-1385.

    A obra de López de Ayala serviu como fonte para 55 capítulos da Crónica de D. Fernando, enquanto a Crónica de D. Juan I foi aproveitada em 70 capítulos da Crónica de D. João I. Já a Crónica do Condestabre é usada quase na totalidade, não tendo sido utilizados apenas 8 capítulos. O cronista português chega mesmo a copiar períodos inteiros destas obras.
     As fontes narrativas dominaram a pesquisa de Fernão Lopes, tendo a consulta de fontes documentais ocorrido, de forma pontual, somente para completar o relato.

     A leitura das crónicas e da demais documentação deve ser feita com grande reserva pelos problemas que reserva. De facto, a redação das obras ocorre entre 1437 e 1443, ou seja, sessenta a setenta anos depois do reinado de D. Fernando (1367-1383) e da regência de D. Leonor Teles (22 de outubro de 1383 a janeiro de 1384). Pelo contrário, López de Ayala (1332-1407) foi testemunha ocular de acontecimentos que tiveram lugar no período a que se reportam as crónicas. Além disso, Ayala desempenhou outras funções além da de cronista: curador do casamento entre o infante D. Henrique e a infanta portuguesa D. Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei D. João I de Castela (marido da dita Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos; participantes na Batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Um viveu os acontecimentos, o outro ouviu-os contar e leu-os.
     Por outro lado, convém não esquecer que a obra de Fernão Lopes resultou da encomenda feita pela dinastia de Avis, nos primeiros anos da sua vida, quando havia a premência de afirmar o reinado dos novos governantes.
     Outra questão a ter em conta prende-se com o facto de a Torre do Tombo - criada por D. Fernando em 1378 e instalada no castelo de S. Jorge, para funcionar como arquivo dos livros das chancelarias régias - ter sido marcada pela desorganização progressiva com a passagem do tempo, daí que, em 1458, D. Afonso V tenha encarregado Gomes Eanes de Zurara de a remodelar. A sua ação passou pela escolha, nos livros de registos antigos, dos atos dignos de memória e pela sua cópia em novos livros de registo. Por exemplo, os 48 livros de D. João I passaram a apenas 4. Com esta depuração, os antigos livros de registos passaram à categoria de obsoletos, foram esquecidos e acabaram por desaparecer no reinado de D. João III.
     Em suma, só chegou ao nosso conhecimento a informação que os nossos antepassados quiseram que chegasse, graças às triagens e depurações feitas ao longo do tempo por diferentes agentes.
     Por outro lado, se é evidente que, no Prólogo à Crónica de D. João I, afirma que o seu objetivo é contar a verdade dos factos, não o é menos a noção de que há sempre diversas leituras da mesma realidade. Com efeito, as fontes em que nos baseamos refletem habitualmente uma série de circunstâncias e a ideologia dominante e não necessariamente a dita realidade. Além disso, há que ter em conta que se trata de uma narração e representação dessa realidade e não a própria.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Obra de António Ferreira

         Dos escritores renascentistas, apenas António Ferreira se pode considerar como representante íntegro do espírito classicista e humanista que conviveu com a tradição literária renascentista e com a Contra-Reforma; fez parte dos «Zagais da Estremadura» e como tal se relaciona com Sá de Miranda e com todos os seus seguidores, que pugnavam a favor do gosto renascentista; pelos destinatários das suas obras sabemos que conviveu com a elite governante, administrativa, social e literária do seu tempo. As Odes e Cartas dirigem-se a personalidades como Pêro de Andrade Caminha, Sá de Miranda, Diogo Bernardes, Francisco de Sá e Meneses, Duque de Aveiro, Padre Luís Gonçalves da Câmara (mestre de D. Sebastião), D. Francisco Coutinho, D. Constantino de Bragança, cardeal D. Henrique, rei D. Sebastião, Diogo de Teive, etc.
         Dois importantes factos distinguem António Ferreira dos outros autores clássicos renascentistas: nunca escreveu em castelhano e usou sempre a medida nova. De facto, o autor utilizou sempre a língua portuguesa em prosa e verso. Na sua Carta a Pêro de Andrade Caminha, censura-o por ter utilizado a língua castelhana e, em simultâneo, estimula-o a escrever em português, enriquecendo a nossa língua, como fizeram os Gregos, os Latinos, os Espanhóis e os Italianos, que sempre escreveram nas suas próprias línguas e não nas dos outros.


1. Poesia

         A obra de António Ferreira, que inclui sonetos, epigramas, odes, elegias, éclogas, epitalâmios, cartas, epitáfios, um poema religioso (História de Santa Comba dos Vales), foi compilada pelo autor num volume editado pelo seu filho mais velho, Miguel Leite Ferreira, em 1598, intitulado Poemas Lusitanos. Seguiram-se-lhe outras edições, nomeadamente em 1771 e 1829.
         No aspeto de estrutura formal, António Ferreira aperfeiçoou a carta e a elegia, e foi o introdutor em Portugal do epigrama, da ode e do epitalâmio. Todas estas formas são elaboradas sobre modelos italianos, latinos e gregos: à expressão em novas formas corresponde fatalmente a expressão de novas ideias, sentimentos e temas.

         Destas composições, umas estão recheadas de lugares comuns petrarquistas e renascentistas, outras assumem certa importância e inovação na época, como as odes e as cartas. O facto de se falar em lugares-comuns não assume aqui a conotação negativa vulgar de mera repetição da tradição literária: provenientes em geral de autores (autoridade) greco-latinos (auctoresauctoritas), os lugares comuns sentem-se viva e diferentemente na Idade Média, Renascimento e Barroco, segundo a idiossincrasia epocal. Referem-se a áreas semânticas múltiplas: natureza, sentimentos humanos, vida, etc.
         De facto, o interesse das composições líricas é desigual. Por exemplo, os sonetos, por vezes harmoniosos, repisam os lugares-comuns do petrarquismo, mas só há vibração nos referentes à morte da primeira esposa. As éclogas, geralmente de cunho virgiliano ou sannazzariano, e as elegias revestem-se também de pouco interesse. No entanto, nas odes horacianas, de que terá sido o primeiro cultor português, e sobretudo nas cartas, António Ferreira mostra toda a sua excelência enquanto escritor, podendo considerar-se o mais completo teorizador português quinhentista, em vernáculo, dos padrões e valores humanísticos, sobre aqueles relacionados com a arte literária.

         Nas suas cartas e odes perpassam, referenciadas ou como destinatárias de dedicatórias, personalidades múltiplas de relevo histórico, desde poetas como Pêro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Sá de Miranda, Francisco de Sá de Meneses, Jerónimo Corte Real, Diogo de Teive, a figuras de importância político-social como Alcáçova Carneiro, secretário de Estado de D. João III, filho do Duque de Aveiro (D. João de Lencastre), príncipe D. João (filho de D. João III), D. João III, D. Sebastião, D. Duarte (filho do Infante D. Duarte), Cardeal D. Henrique, Reis Cristãos (Carlos V, Francisco I), Marquês de Torres Novas (D. Jorge), Afonso de Albuquerque (filho do governador da Índia do mesmo nome), D. Constantino de Bragança (governador da Índia), Conde de Redondo (D. Francisco Coutinho, regedor da Casa da Suplicação), Luís da Câmara (mestre de D. Sebastião), e muitos outros. Temos assim uma rede polarizada de personalidades a quem António Ferreira expõe os seus sentimentos e atitudes perante as questões mais diversas. A todos prodigaliza conselhos e encorajamentos, que encobrem por vezes uma crítica discreta, pois entendia o escritor exercer desta maneira uma certa autoridade espiritual que reivindica para os poetas e os doutos em Humanidades. Diversos poemas são dedicados a D. Maria Pimentel, sua primeira mulher.
         Por outro lado, do conjunto das cartas e odes desprende-se uma atitude horaciana mais ou menos harmonizada com uma sabedoria cristã. António Ferreira adota uma postura de impassível superioridade perante as opiniões irracionais do «vulgo» (odi profanum vulgus) e perante a vacuidade dos bens por que se bate a maioria dos homens. Para ele, o «vulgo» ou «povo» é um conceito basicamente moral e não social: “Eu chamo povo onde há baixos intentos;”. Pelo contrário, considera sábio quem, guiando-se pelo próprio juízo, pode desprezar o que lhe é exterior:
“Ditoso aquele que em si só encerra
e, estimando o tesouro que em si tem,
pisa soberbamente toda a terra.”
         A razão humana, educada nas letras clássicas, feita de ponderação, buscando uma felicidade terrestre ao abrigo de paixões e ilusões, e que é a mais alta forma de autodomínio, é o único guia em que Ferreira confia. Em seu nome, condena todas as manifestações de impulsividade, incluindo o espírito de aventura e a brutalidade guerreira. Como se relaciona então com a ideologia expansionista da época, praticamente unânime em Portugal? Não obstante o elogio dirigido a heróis militares, o escritor insiste na superioridade da razão sobre a coragem física e, com alguma regularidade, censura ou lamenta aqueles que trocam a quietude da meditação e do estudo pelos riscos do mar e da guerra, levados pela ambição da riqueza, na esteira do que já fizera Sá de Miranda.

         No campo das ideias políticas e sociais, em carta dirigida a D. Sebastião, António Ferreira expõe, de forma inequívoca, a doutrina do contrato social (provavelmente herdada de Aristóteles) e nega o poder monárquico absoluto:
“absoluto poder não há na terra
que antes será injustiça e crueldade”
e afirma a condição humana dos reis:
“iguais somos, Senhor, na natureza:
assim entramos na vida, assim saímos.”
Além disso, contrapõe à nobreza do sangue a aristocracia do saber, lamentando que lhe não sejam reconhecidas no seu tempo as prerrogativas a que se sente com direito:
“Aquela proveitosa liberdade
aos antigos Poetas concedida […]
porque entre nós será mal recebida?”

         Parte da sua obra, nomeadamente as epístolas dirigidas aos confrades em letras, consagra-se a problemas do ofício de escrito, sobretudo à defesa e ilustração da língua portuguesa. Como já foi referido, o escritor quinhentista interessou-se a fundo pelo nosso idioma, inclusivamente na sua forma medieval, de que fez duas imitações felizes a propósito do texto do Amadis. Reagiu contra o emprego da língua castelhana por parte dos poetas seus contemporâneos e foi um dos poucos portugueses do século XVI que não escreveram em castelhano um só verso. Pelo contrário, por exemplo, Gil Vicente ou Camões mesclaram com alguma frequência as duas línguas. Terá sido este amor à língua portuguesa que o levou a designar a sua coletânea de Poemas Lusitanos:
“Eu desta glória só fico contente:
que a minha terra amei, e a minha gente.”

         Além disso, António Ferreira foi um notável doutrinário, o mais importante teorizador do Classicismo, tendo como fonte principal o poeta latino Horácio, nomeadamente a sua Epístola aos Pisões (também conhecida por Arte Poética). Alguns dos traços desse magistério são os seguintes:

a) a primazia do estudo e do trabalho sobre a inspiração, isto é, a poesia não pode ser só inspiração, deve ser fruto de trabalho e estudo apurado e prolongado sobre o texto:
“doutrina, arte, trabalho, tempo e lima
fizeram aqueles nomes tão famosos
por quem a Antiguidade se honra e estima.”

b) a necessidade do conhecimento aprofundado e de uma imitação dos antigos que afinal consiste na apropriação nacional do património literário das línguas clássicas:
“Do bom escrever, saber primeiro é fonte.”

c) a necessidade da crítica e da autocrítica, de «tempo e de lima»: o poeta deve desconfiar de si próprio e fazer discutir pelos entendidos as suas composições;

d) o sentido da justa proporção:
“há nas cousas um fim, há tal medida,
que quanto passa ou falta dela é vício.”

e) a proscrição de toda a herança peninsular medieval, conservando apenas, como mal inevitável, a rima, que restringe a liberdade dos versos «e com som leve o juízo engana», enquanto se não encontrar outro sistema rítmico mais próximo do verso latino – de facto, Ferreira considera desejável que se fizesse uso do verso branco;

f) a necessidade de tomar a Razão como único guia

         No conjunto da sua obra lírica, há a destacar ainda as exortações que dirigiu a vários confrades no sentido de produzirem uma epopeia nacional (ideia já expressa por Garcia de Resende no Prólogo do Cancioneiro Geral), não tanto um texto que fosse a afirmação dos valores guerreiros e cruzadistas nacionais, mas um monumento de cultura e sobretudo da língua. Coube a Camões seguir o repto e produzir Os Lusíadas.


2. Teatro

         A seguir…

Bibliografia:


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...