Português: Análise do poema "Mulher ao Espelho", de Cecília Meireles

domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Mulher ao Espelho", de Cecília Meireles


   
Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

 
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

 
Que mal faz, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

 
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

 
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

 
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

 
    O poema “Mulher ao espelho” faz parte da obra Mar Absoluto, publicado em 1945.
    Começando a análise pelo título, um espelho é um objeto que, simbolicamente, reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Assim sendo, no caso desta composição poética, sugere a ideia de autorreflexão numa busca existencial, nas circunstâncias de uma mulher.
    O poema abre com o advérbio de tempo «hoje», que presentifica o momento da reflexão e o identifica com o momento da leitura. Os pronomes «esta» e «aquela» indicam a proximidade e a distância, que podem ser espacial ou temporal: «esta» de hoje e/ou «aquela» de ontem ou de amanhã. O estar entre estas dimensões estende-se à reflexão existencial, pois o sujeito poético coloca-se no lugar do não ser, a morte: “pois, seja qual for, estou morta.”
    Deste modo, podemos considerar que o vocábulo «morta» se refere à morte existencial. É preciso ter em conta que, filosoficamente, a morte pode ser entendida como o início de um novo ciclo de vida, como o fim de um ciclo de vida ou como possibilidade existencial. No caso do poema, aplica-se este último sentido, dado que o sujeito poético olha para a morte como o deixar de existir ou o deixar de ser. Presentemente, o «eu» não é mais nada, o que é confirmado pelo facto de o verso terminar em ponto final: ela está morta, não tem mais o que viver.
    A partir da aceitação da morte, o «eu» dá início a uma reflexão sobre as diversas facetas que teve ao longo da vida: «loura», «morena». Para isso, refere o nome de quatro mulheres (Margarida, Beatriz, Maria, Madalena), referências a personagens literárias. De facto, Margarida refere-se a Marguerite Gautier, personagem de A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas, e da Traviata, ópera de Verdi, ambas contando a história de uma mulher mundana; Beatriz relaciona-se com Beatrice Portinari, amada do poeta Dante, imortalizada por este na Divina Comédia e na Vita Nuova, como um ser puro e ideal; Maria é, obviamente, a Virgem, mãe de Jesus Cristo, símbolo religioso da pureza e perfeição; por último, Madalena é a prostituta bíblica, exemplo da mulher pecadora e arrependida. Estilisticamente, a anáfora dos versos 5ª 7, as formas verbais no pretérito perfeito do indicativo e os adjetivos antitéticos (loura / morena) sugerem as mudanças vividas pelo sujeito poético em busca da própria imagem. Além disso, a antítese «loura»/«morena» representa, antes de mais, a busca feminina pela beleza e perfeição físicas: “Quero apenas parecer bela”.
    Mas não é apenas o físico que está em questão. De facto, o «eu» reflete também sobre a personalidade, como se pode constatar pela enumeração dos quatro nomes femininos, alternando as imagens da mulher santa, pura, e da mulher sensual e vaidosa. Esta referência a figuras femininas de personalidades divergentes aponta para as mudanças de caráter e sugere a existência de alguma conflitualidade no que diz respeito à autoimagem do «eu», mostrando a sua perturbação por ter sido tantas, procurando agora encontrar-se ou ser alguém. De certo modo, este passo do poema recorda a questão da despersonalização e da multiplicidade de «eus» de Fernando Pessoa. Basta pensar, por exemplo, no poema “Não sei quantas almas tenho”.
    O último verso da estrofe mostra, através das formas verbais no pretérito perfeito («pude», «quis»), evidencia a frustração do sujeito poético por nunca ter sido o que queria ser: “Só não pude ser como quis.” Sucede que, com a definição do desejo pela negativa, levanta-se a dúvida: o que queria o «eu» ser?
    A terceira estrofe é toda ela uma interrogação. O sujeito poético, ao referir-se à cor fingida do seu cabelo e do seu rosto, critica o facto de o mundo ser feito de aparências. De facto, tudo parece ser «tinta», maquilhagem, aparentemente muito bela, mas só existe para esconder ou disfarçar quem ou o que realmente é. Deste modo, as características da cor do cabelo e do rosto estão associadas à ideia de falsidade e superficialidade; tudo – as pessoas, o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto – é ilusório, é tinta.
    A transitoriedade de tudo e a efemeridade da vida são temas presentes também nesta estrofe, tendo em conta que a tinta representa a ilusão, o engodo que vai da aparência pessoal (cabelo e rosto) para o mundo e a vida, e atinge o íntimo do  «eu» (o contentamento, o desgosto), ou seja, todos os sentimentos se tornam momentâneos e passageiros.
    A quarta estrofe abre com a referência a transformações ocorridas no exterior do sujeito lírico. Assim, exteriormente manifesta o desejo de ser como a moda o determinar. Neste contexto, a moda pode representar a busca do próprio estilo, todavia o bom gosto que ela dita escraviza e aprisiona os indivíduos, promovendo a despersonalização do «eu», que acaba por incorporar-se no todo e perder a noção da própria imagem.
    Por outro lado, como a moda é um fenómeno transitório, a moda representa tudo o que é superficial e passageiro, associando-se à vaidade dos seres humanos; trata-se de um estereótipo da beleza que se liga à imagem exterior. Tudo isto tem consequências para o sujeito poético: a morte. E quem é o responsável por esse desfecho? Exteriormente, o «eu» segue a moda; por dentro, perde-se, morre: “Por fora, serei como queira / a moda, que me vai matando.”
    A gradação dos versos 15 e 16 (“Que me levem pele e caveira ao nada”) sugere que, para o «eu», a morte é natural e esperada. A presença da morte acentua-se nas duas últimas estrofes, aparecendo, neste caso, ligada ao domínio do religioso. Porquê e para quê? Se é verdade que a busca interior lhe trouxe dor e sofrimento, ele espera que mais tarde terá a recompensa de encontrar Deus, falar com ele. A forma verbal «viu», no pretérito perfeito do indicativo, aspeto perfetivo, indica uma ação concluída (a lembrança do sofrimento), enquanto «falará», no futuro do indicativo, remete para a certeza do encontro com a divindade.
    Filosoficamente, a morte representa a libertação do sofrimento e das preocupações, não constituindo um fim em si mesma. Pelo contrário, “mors ianua vitae” (a morte é a parte da vida), isto é, ela constitui a libertação da alma e uma forma de a pessoa se arrepender dos pecados. Por outro lado, a visão religiosa da morte aponta para a ideia de eternidade. Deste modo, o fim da existência deixa de constituir algo terrível e dramático e passa a ser encarado como uma forma de se tornar eterno e alcançar o paraíso, proporcionando descanso para a alma, o espírito. A presença do polissíndeto (“olhos, braços e sonhos seus / e morreu pelos seus pecados” – vv. 18-19) sugere as etapas necessárias para se obter a redenção.
    O primeiro verso da última estrofe indicia a libertação do sujeito poético dos seus pecados, o espírito purificado da cabeça aos pés, quando se concretizar o encontro com Deus: “Falará, coberta de luzes, / do alto penteado ao rubro artelho”. De seguida, no penúltimo verso é introduzido o símbolo da cruz e, no último, o do espelho. Assim, algumas pessoas “expiram sobre cruzes”, isto é, constroem um modo de vida assente nos princípios de uma religião, buscando um Deus, mesmo que tal implique dor e sofrimento (as cruzes). Por seu turno, o espelho representa a procura de si, seguindo as materialidades do mundo (a beleza, a moda, a vaidade, etc.), numa tentativa de a pessoa se encontrar. Seja como for, opte-se por qualquer uma das hipóteses, o desenlace será sempre o mesmo: a morte, porque todos morremos.

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