Português: A variedade do sentimento amoroso na cantiga de amigo

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A variedade do sentimento amoroso na cantiga de amigo

            Através da análise das cantigas de amigo, perscrutamos a alma da donzela enamorada e a diversidade dos seus sentimentos, que correspondem a momentos diferentes da relação com o amigo.

            Nas palavras do professor Rodrigues Lapa (Lições de Literatura Portuguesa – Época Medieval, p. 159), “Toda a escala sentimental da vida amorosa da menina nos é comunicada com o mais vivo realismo: a timidez, o pudor alvoroçado e a inexperiência do amor, […] a travessura, a alegria e o orgulho de amar e de ser amada, os pequeninos arrufos, as tristezas e ansiedades, a saudade, a impaciência e o ciúme, a crueldade e a vingança, a compaixão, o arrependimento e, finalmente, a reconciliação.”

            Por seu turno, António José Saraiva e Óscar Lopes (História da Literatura Portuguesa, p. 64) afirmam o seguinte: “A saudade, o ciúme, o ressentimento, os amuos, as ansiedades, as desconfianças, a reivindicação da liberdade de amar perante a intervenção materna, etc., exprimem-se de modo muito vivo; e ao lado da diversidade de situações é de notar dois tipos psicológicos simulados: as mulheres ora são ingénuas, ora experimentadas; ora compassivas e inclinadas à piedade, ora astutas e calculistas; ora indiferentes, ora suscetíveis.”

            O amor que a jovem exprime pelo seu amado pode assumir várias facetas e despertar diferentes efeitos na figura feminina.

 
1. Felicidade amorosa
 
● A donzela está enamorada, sente-se alegre e feliz com esse amor e pretende celebrar a sua alegria, por exemplo, dançando sedutoramente perante o seu amigo (para o que convida as amigas a bailarem consigo debaixo das avelaneiras floridas ou no adro da ermida).
 
● Antes do reencontro com o amado [muitas vezes, o amigo está ausente], ela rejubila com a ideia de voltarem a estar juntos.
 
● Noutros casos, depois de uma separação (quando o amigo partiu para servir o rei, no «ferido» ou no «fossado», por exemplo), expressa a sua grande alegria quando ele efetivamente regressa.
 
● Em todas estas situações, a jovem sente o prazer de amar e ser amada e acredita na firmeza da relação e nos sentimentos do amigo. Ocasionalmente, sofre a oposição da família, nomeadamente da mãe; outras vezes, mesmo que a avisem que ele não comparecerá ao encontro porque quer “mui gram bem a outra mulher”, ela não acredita, segura do seu amor.

 

2. Saudade
 
● Na ausência do amigo (que partiu para a guerra ou para a pesca, como já foi referido), a donzela sente saudades, que a inquietam e deixam em “gram coidado.
 
● Frequentemente, é atormentada pelo ciúme, que é motivado pela demora do amado ou pelo seu comportamento.

 

3. Ansiedade
 
● Quando o amigo está ausente, a donzela, além de saudosa, fica também ansiosa e preocupada.
 
● Se ele se atrasa ou falta a um encontro, receia que algo lhe tenha acontecido:
- ele já não vem;
- ela quer notícias dele;
- quer vê-lo;
- ele já deveria estar com ela e não está.
 
● Por vezes, os elementos da Natureza, personificados e confidentes, dão-lhe notícias do amado e tranquilizam-na: ele está bem e de saúde e regressará como combinado.

 

4. Sofrimento, ciúme e desespero
 
● Sempre que a donzela suspeita que o amigo já não a ama ou que o amor foi atraiçoado, fica angustiada e ciumenta.
 
● Nalgumas cantigas, suspeita ou fica a saber que o amigo lhe mentiu ou faltou ao prometido, o que a deixa cheia de fúria e revolta, prometendo nunca mais acreditar no amor ou revelando a intenção de exercer uma retaliação ou vingança.
 
● Por vezes, o amor durou pouco tempo:
- ele partiu e deixou-a triste, tristeza que se reflete na Natureza;
- a donzela chora o dia em que se enamorou e experimentou o que era o amor e maldiz o dia em que viu o amigo.
 
● Após tantas peripécias, a donzela parece ter aprendido a lição e reage:
- se ele se assanha com ela, a jovem assanha-se com ele;
- convencida da sua beleza e do seu amor, faz-se cara;
- então vinga-se: se ele ficou de falar com ela e não o fez, a jovem, quando o amigo quiser ficar consigo, não quererá;
- perdoa-lhe, mas não o quer amar mais.
 
● Todavia e afinal, o amor acaba por triunfar (ninguém pode mandar no coração) e a donzela pede à mãe que não se zangue e a culpe porque quer ir falar com o amigo à ermida, onde tantas vezes esperou por ele em vão.

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