sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Valor documental da cantiga de escárnio e maldizer
. Artístico: decoração, iluminuras.
. Histórico e social: - a entrega dos castelos ao conde de
Bolonha;
- a cruzada
da Balteira;
- o
escândalo das amas tecedeiras;
- as
ambições dos pobres jograis, que até podiam ter talento para trovar, mas que os
trovadores não permitiam e gozavam;
- a traição
dos cavaleiros na guerra de Granada;
- a
corrupção do clero (abades, bispos, papas);
- as
soldadeiras;
- o amor
cortês;
- o uso do
latim macarrónico pelos padres;
- as
relações entre fidalgos e plebeus;
- as
disputas entre trovadores e jograis.
Em
suma, o que esta poesia retrata é a decadência da sociedade em geral.
De
facto, as cantigas de escárnio e maldizer têm um enorme valor documental, na medida em que constituem um vasto panorama
crítico da sociedade medieval portuguesa nos aspectos político-religioso,
social e cultural.
Assim,
no domínio político-religioso, assume
especial relevo a denúncia da condenável actuação das autoridades
eclesiásticas, que excomungam os alcaides que se mantêm fiéis à palavra dada,
aquando da deposição de D. Sancho II por D. Afonso III. É a célebre questão da
"entrega dos Castelos ao conde de Bolonha", que alguns alcaides
recusaram terminantemente, por se sentirem vinculados pelo juramento de
fidelidade e dever de vassalagem a D. Sancho II, enquanto este vivesse. Trata
este tema a conhecida cantiga "Meu senhor arcebispo, and'eu
escomungado", de Diego Pezelho.
É,
talvez, no aspecto social que a nossa
sátira medieval é mais rica. Denuncia-se nela o eterno problema do
"desconcerto" do mundo, em que a falsidade, a mentira e, de um modo
geral, a injustiça parecem triunfar, tal é a "desordem" em que a sociedade
se atolou. A cantiga "Vej' eu as gentes andar revolvendo", de Pero
Mafaldo, é um bom exemplo da inversão de valores a que se tinha chegado: os
mentirosos e desleais viam a sua reputação aumentar e, pelo contrário, os
honestos e cumpridores apenas somavam fracassos. Então, ironicamente, o sujeito
conclui que a melhor maneira de triunfar na vida é passar a mentir a toda a
gente, "ao amigo e ao senhor".
Também
o "cavaleiro famélico" da cantiga "Quem a sesta quiser
dormir", de Pero da Ponte, denuncia a grave crise por que passavam os
infanções, em resultado das transformações sociais e políticas da época, que
favoreciam a burguesia em detrimento da nobreza, sobretudo depois da conquista
definitiva do Algarve, no reinado de D. Afonso III.
No
aspecto cultural, é sobejamente
conhecida a ridicularização do convencionalismo do amor cortês, na conhecida
cantiga "Roi Queimado morreu com amor", de Pero Garcia Burgalês, em
que se critica o fingimento da morte de amor "por ua dona". Também na
cantiga "Ai! dona fea, fostes-vos queixar", Joam Garcia de Guilhade
elogia uma "dona fea, velha e sandia", ridicularizando deste modo o
lugar-comum da beleza etérea da mulher amada, a "sem par", que os
trovadores sempre idolatravam nas suas cantigas de amor.
Podemos, então, concluir que, para além do seu inegável valor literário, as cantigas de
escárnio e maldizer têm um enorme valor
documental. Através da crítica, da ironia e do tom pejorativo, elas
constituem um vasto e variado panorama dos males da nossa sociedade medieval:
os escândalos sociais (as amas e
tecedeiras), a cultura (a ridicularização do amor cortês
e da imagem da mulher ideal), a cumplicidade
entre a política e a religião (a entrega dos castelos ao conde de Bolonha),
a decadência da nobreza, o desconcerto do mundo, o privilégio da aparência, a imoralidade e a dificuldade em cumprir projectos ou promessas (a cruzada da
Balteira), a covardia (a traição dos
cavaleiros na Guerra de Granada), etc. Estas cantigas constituem, realmente, as
raízes de um dos mais ricos filões do nosso oiro literário, que terá continuadores
tão ilustres como Gil Vicente, Camões ("Esparsa ao desconcerto do
mundo" e alguns passos d' Os
Lusíadas), António José da Silva, o Judeu, e Nicolau Tolentino (no século
XVIII), Guerra Junqueiro e Gomes Leal (no século XIX) e, no século XX, Alexandre
O'Neill, entre outros.
Características das cantigas de escárnio e maldizer
A
sátira do período trovadoresco reveste-se das seguintes características:
1ª) é concreta e particular: são raras as cantigas que visam defeitos de carácter
geral e dum modo abstracto (mentira, cobardia, luxúria, insinceridade,
avareza); atacam os viciosos em concreto, isto é, pessoas mentirosas, por
exemplo, e não o vício em si;
2ª) tem carácter social: os trovadores
satirizavam tipos sociais, tal como Gil Vicente o fará mais tarde:
. membros do
clero com costumes pouco edificantes;
. os nobres
(cobardes, pobres, mentirosos);
. ofícios
vários (jograis, militares);
. os vilãos;
3ª) é, em
parte, muito obscena (ex.: as
composições que se referem à Balteira).
Variedades da cantiga de escárnio e maldizer
Consoante
a temática ou a forma, as cantigas satíricas trovadorescas recebem as seguintes
designações:
a) joguete de arteiro: composição de
escárnio propriamente dita;
b) risadilha: composição que
provoca o riso, mas pouco fina, quase sempre obscena;
c) cantiga de seguir: composição
parodiada de outra poesia, da qual adopta a música e a rima;
d) tenção: composição dialogada entre
dois trovadores que se contradizem.
Tipos de sátira
. Pessoal.
. Social (moral e religiosa).
. Política.
Temas da cantiga de escárnio e maldizer
1. Sátira política e religiosa
*
A cobardia dos cavaleiros (guerra de Granada).
*
A corrupção e os desmandos do clero.
*
O ciclo dos castelos - a traição dos alcaides (deposição de D.
Sancho II).
2.
Sátira social e moral
* A
decadência da nobreza: a ambição e pelintrice dos infanções.
* O
escudeiro famélico, pelintra, mas fanfarrão e pretensioso.
* Crítica
contra as mulheres.
* A
imoralidade feminina: a cruzada da Balteira.
* Os amores
duvidosos entre fidalgos e plebeias.
* A
ridicularização dos maus trovadores.
* As
polémicas entre trovadores e jograis.
* O
desconcerto do mundo – a decadência da sociedade.
* Reflexões
sobre a moral e os bons costumes.
Cantigas de maldizer
As
cantigas de maldizer são aquelas em que a pessoa satirizada é nomeada. Não
velavam o ataque sob formas ambíguas, como acontecia nas de escárnio. Estas
ferem directamente, sem subterfúgios; o sujeito diz o que tem a dizer, com uma
linguagem baixa, vil e bruta.
Cantigas de escárnio
As
cantigas de escárnio são as que satirizam, atacam directamente, a descoberto,
escarnecem de alguém com palavras de dois sentidos, sob formas ambíguas,
"per palavras cubertas que hajam dous entendimentos", ou seja, feriam
delicadamente.
Eram
impessoais, de crítica velada e indirecta.
O
recurso estilístico predominante é a ironia.
O sirventês provençal e a sátira trovadoresca
A sátira trovadoresca vestiu-se muito cedo pelo figurino da
literatura provençal, que explorava o género em grande escala. As composições
satíricas cultivadas na Provença tinham o nome de sirventês,
cantiga satírica provençal de alcance moral ou social.
Havia
três espécies:
1ª) o sirventês moral ou religioso:
ridicularizava a decadência do ideal da cavalaria e a rudeza dos barões, as
leviandades das mulheres, os costumes duvidosos, a corrupção e os desmandos do
clero;
2ª) o sirventês político: explorava e ridicularizava os
sucessos da época, sobretudo a luta dos reis ingleses com os senhores feudais
da França, as guerras civis, a cruzada dos Albigenses;
3ª) o sirventês pessoal: ridicularizava determinados
aspectos da vida íntima ou profissional dos indivíduos, mormente a variedade
ridícula e as pretensões dos jograis ("sirventês joglaresc").
Ao
contactar com a estética provençal, os nossos poetas começaram a satirizar os
mesmos tipos e pelos mesmos processos. É às produções desta espécie que chamamos
cantigas de escárnio e maldizer.
Artifícios poéticos da cantiga de amor de influência provençal
* Coblas:
segundo a "Arte de Trovar", as estrofes tinham o nome de coblas ou
cobras e o seu número ficava ao sabor do trovador.
As estrofes podem classificar-se
como:
- uníssonas: têm a mesma
rima;
- singulares: apresentam
rimas diferentes;
- doblas ou pareadas:
cada grupo de duas coblas tem a mesma rima.
As cantigas galaico-portuguesas têm,
regra geral, três ou quatro coblas, com excepção das paralelísticas. Cada copla
pode apresentar número variável de versos. Em todas se encontra o
isossilabismo, o mesmo número de sílabas, reforçado pelo princípio da
isometria, a mesma medida, dentro de cada composição.
Pode ter um predomínio de quatro
versos na cantiga de refrão e de sete na cantiga de mestria.
O número máximo de versos numa copla
era de dez e o número mínimo de dois (paralelísticas).
* Refrão: é o estribilho, ao qual regressava o coro ou o solista
entre a execução de duas coplas. Podia estar ligado ao corpo da copla pelo
sentido, ou ser independente dela.
Surge nas paralelísticas e, em
geral, nas cantigas de amigo, mas não aparece nas de mestria.
* Finda: é uma copla de menor extensão, de um a quatro versos, que
encerra a cantiga em jeito de conclusão.
A "arte de Trovar"
define-a como "acabamento de rrazon", "versos-remate".
Nas cantigas de mestria, rima,
geralmente, com a segunda parte da última estrofe; nas de refrão, a rima
faz-se, regra geral, com o refrão.
Uma cantiga pode possuir mais do que
uma finda.
* Atafinda: é um processo de ligação de coplas, feita pela
continuação do último verso de uma estrofe na copla seguinte. Essa ligação
faz-se através de partículas como "e", "ca",
"pois", "quando", "pero", "que", etc.
Ocorre tanto nas cantigas de mestria
como nas de refrão.
* Verso / palavra perduda: verso/palavra sem correspondência temática/rimática
que aparece no meio, início ou fim da copla e deve repetir-se no mesmo lugar.
* Enjambement / transporte
/ encavalgamento: consiste em
completar o sentido de um verso no verso seguinte. D. Dinis chegou até a
dividir a palavra.
Este processo é uma constante na
poesia de todas as épocas.
* Dobre: repetição da mesma palavra de rima duas ou mais vezes em lugares
simétricos da estrofe, de preferência no primeiro e no último verso.
* Mordobre / mozdobre:
repetição da mesma palavra em lugares simétricos, porém jogando com as suas
várias flexões.
Características e estética da cantiga de amor
. Análise
profunda da interioridade dos que amam, sendo surpreendente uma certa
racionalização dos efeitos do amor sobre o sujeito, à maneira de Camões.
. A
idolatração da mulher amada, a atitude de veneração, de submissão perante ela,
recorda-nos Petrarca.
. O sujeito
sente que não é senhor do seu coração. Este enganou-o, fê-lo apaixonar-se por
uns olhos verdes, temática que nos remete para a lírica camoniana, tal como
acontece com a confissão do poeta de ser "sandeu", "já o sen non
á", tudo por causa de uns olhos verdes.
. A
simbologia dos olhos.
. O amor
espiritual conduz a um aperfeiçoamento através da aspiração ao objecto amado. A
mulher é a ponte para a plenitude, para o infinito, nela se realiza e por ela
se esquece de si próprio, para pensar só no ben
da dama (conferir a cantiga "Desej' eu ben de mha senhor" com o
soneto "Transforma-se o amador na cousa amada").
Mas o trovador sofre imenso,
desespera e chega a desejar vingar-se da "senhor", mas tudo não passa
de um desejo, porque não consegue deixar de a amar, não pode enganar o seu
coração (é a temática do poder cruel do amor que novamente nos recorda Camões).
. Os
trovadores valorizam sobretudo as qualidades morais da mulher, qualificando-a
através de expressões convencionais: "tan comprida de todo o ben",
"a que prez nem fermosura non fal", "Deus fez sabedor de todo
ben", "mui comunal", "Deus deu-lhe bon sen / e falar mui
ben e rir melhor", "é leal muit", "olhos verdes",
"ben talhada", "tan poderosa", "boõ semelhar",
Deus fê-la "das melhores melhor", "ben talhada", "de
muito ben saber".
Muitas destas qualidades da
"senhor" serão mais tarde recuperadas pelos petrarquistas.
. Refletindo
a profunda religiosidade do ser medieval, Deus está sempre presente, quase como
um confidente. O trovador desabafa com Ele e pede-Lhe até conselho.
. A
simbologia da luz, com o seu poder de fogo.
. O amor do
trovador pela mulher é um amor idólatra, absorvente, torturado, saudoso, de um
fatalismo passional.
Classificação das cantigas de amor
*
Cantigas de mestria: são cantigas
sem refrão; são as mais perfeitas. Os versos têm sete a dez sílabas e o número
de estrofes raramente ultrapassava as três ou quatro.
Seguem alguns formalismos, denotando
a influência provençal:
. o dobre;
. o mordobre;
. a finda;
. a atafinda;
. o verso perdudo.
Nas cantigas de mestria, podiam
aparecer subgéneros:
. prantos: poesias de carácter fúnebre para exprimir a dor de uma
morte;
. tenções: retratam um diálogo entre dois trovadores.
*
Cantigas de refrão: no fim da cada
estrofe, repete-se um ou mais versos, à laia de estribilho, à maneira das
cantigas de amigo. São mais espontâneas, mais naturais, mais líricas, menos
artificiais.
*
Descordos: são cantos magoados, de
variedade métrica, estrutura estrófica diferente e de difícil compreensão.
Existem apenas três nos nossos cancioneiros. Exprimem os conflitos do amor, um
amor tumultuoso, revolto, em convulsão no peito.
*
Tenções: cantigas dialogadas entre
trovadores, em que um procura contrariar o outro.
* Prantos / lais: desabafos plangentes
com lágrimas de coita de amor.
Todos estes subgéneros são de origem
provençal.
Temática da cantiga de amor
1.
Autenticidade
O lirismo provençal levou ao
florescimento das cantigas de amor na Península, mas elas têm características
que as diferenciam.
De facto, a cantiga de amor nacional
é mais espontânea, mais sentida, mais autêntica, e relaciona-se com a nossa
alma romântica, saudosa, um pouco masoquista até (denota um certo prazer
mórbido no sofrimento, o gosto de estar triste, uma certa melancolia), enquanto
o lirismo provençal assenta no fingimento, na insinceridade.
Na cantiga "Proençais soen mui
ben trobar", D. Dinis acusa os trovadores provençais de não terem
"gran coita no seu coraçon", é um fingimento, pois sé "troban no
tempo da flor". É uma clara referência aos costumes dos trovadores saírem
de preferência na Primavera a exibir as suas cantigas de castelo em castelo.
2.
O formalismo do amor cortês
João Baveca, segrel galego da corte
de Afonso X de Castela, crê na autenticidade amorosa como sendo fonte de
inspiração e crítica, como D. Dinis, o formalismo do amor cortês, o fingimento
dos trovadores provençais, que prejudica os que amam de verdade, porque as
donas não acreditam naqueles que realmente as amam e, se elas soubessem como
alguém pode amar, teriam dó. Mas por causa dos outros, elas pensam "que
todos taes son" e, por isso, todos os que amam sinceramente perdem. E o
fingimento é tal que até parecem mostrar melhor que os outros o seu amor.
Em suma, através desta cantiga
sente-se bem o fingimento de amor cortês: o amor é apenas uma forma de atingir
um certo engrandecimento, valorização pessoal. Nesse aspirar podia encontrar-se
uma certa plenitude, um "comprazimento" até estético. Afinal, estamos
perante uma arte.
3.
Amor cortês versus amor erótico
O trovador vê o amor cortês como uma
força espiritual e mística em oposição ao amor erótico, sensual e carnal.
A mesura, o respeito pela sua
"senhor", leva-o a esquecer-se dele próprio, humilhando-se,
apagando-se, com medo de desrespeitar a mulher. É o código da mesura, é um amor
puro, desinteressado, cuja finalidade é aperfeiçoar-se moralmente. É o
amor-adoração, que se satisfaz na idolatração e veneração pela mulher, enquanto
o trovador cresce em espiritualidade.
O mal da senhora é também mal para o
trovador e o seu grande desejo é o bem dela, sem que a mulher perca algo da sua
dignidade e virtude. Todavia, há muitos namorados que só pensam em si e no seu
prazer, sem se preocuparem se fazem mal ou não às suas "senhores".
Estes, que amam a sua "senhor" para seu próprio "ben", sem
procurarem o "ben" dela, não a amam, mas a si próprios.
E o trovador que respeita a sua dama
chega a desejar-se mal, se tiver esse género de comportamento. Ele ama-a mais
do que a si próprio.
4.
Ver /Viver
A maior parte das vezes o trovador
sofre tanto com a não correspondência amorosa da sua senhora que até prefere
morrer. Ela exerce um grande fascínio nele, de tal forma que é,
simultaneamente, seu "mal" e seu "ben". Nota-se,
frequentemente, uma certa obsessão, um certo masoquismo e comprazimento na dor
do que são constantes da estética do amor cortês e típicos da forma de ser
lusitana.
Esta atitude submissa do trovador,
que tem a ver com a mesura provençal, reflecte bem a vassalagem amorosa do amor
cortês.
Por outro lado, a saudade da mulher
amada pode levar o trovador à morte, caso não consiga rapidamente vê-la. O
pedido do trovador é feito a Deus, uma presença constante na alma do trovador
como o único que pode ajudá-lo na sua "coita de amor", ou não seja
esta uma época de grande religiosidade, em que o próprio platonismo molda as
almas, num amor espiritual. Por vezes, quase responsabiliza Deus pela sua
"coita", pois foi Ele que a criou, que a fez superior a todas quantas
conhece. Este desejo de morte surge, à semelhança de Bocage, como forma de
libertação, como fuga ao sofrimento.
Numa cantiga de Pêro Garcia Burgalês
("Ai eu coitad', e por que vi"), encontramos a mesma temática: a
saudade, a mesma obsessão, a mesma ânsia de ver a mulher, modelo de virtude e
beleza, a mesma vassalagem amorosa, o mesmo masoquismo da dor... influência do
amor cortês. E também não falta a mesura: nunca ele pode forçar ou prejudicar a
sua "senhor", assim lhe ordena o rigoroso código de honra, de fidelidade
e vassalagem amorosa, porque ele quer mais à sua "senhor" que a si
próprio.
5. O cenário
Nas nossas cantigas de amor é raro
surgir a natureza, o espaço geográfico, como cenário, porque a "coita de
amor" domina a alma do trovador de tal forma que não há lugar para atentar
no espaço exterior. Tudo não passa de um lamento, de um imenso queixume que se
arrasta, invade o poeta e o leva a desejar a morte perante a indiferença da
mulher amada. Por vezes, contudo, o espaço está bem patente na alma do poeta,
mas é só porque a sua "senhor" está intimamente ligada a ele e uma
saudade imensa o desconcerta.
6. A interioridade do trovador,
seus sentimentos
1. A partida, a
separação da dama pode levar o trovador à loucura ou à morte – fatalismo de
amor.
2.
O amor-paixão leva ao sofrimento.
3.
O amor leva ao desconcerto do sujeito. A morte para ele é mal e bem (recorda os
sonetos de Camões sobre os efeitos contraditórios do amor).
4.
O amor-paixão cega o trovador, ao comprazer-se no amor infeliz, no masoquismo
da dor, no gostar de estar triste, ser cativo, estar preso sem conseguir fugir.
5.
O amor cruel dilacera e mata, mas o trovador não consegue fugir-lhe – masoquismo
de amor.
6.
Mas a vingança pode surgir por um amor não correspondido. O sujeito lírico, em
grande desespero e tensão, desabafa a sua dor, a sua revolta contra este amor
que prende, sufoca, mata, querendo vingança da sua "senhor". Todavia,
este desejo nunca se irá concretizar.
7.
O tormento de amor atinge o auge quando a mulher o proíbe de lhe confessar o
seu amor – fatalismo de amor. Ele quer-lhe pedir que corresponda ao seu amor,
mas receia que ela o trate mal, que se "assanhe" e, pior que tudo,
que nunca mais lhe queira dirigir a palavra.
8.
Afinal, a culpa é do coração, que engana, passa rasteiras ao trovador. Para seu
mal, apaixona-se por ela, que se recusa a acreditar na sua "coita de
amor".
9.
Os efeitos do amor na alma do trovador são terríveis: desesperado, confessa à
"senhor" que não é capaz de declarar todo o mal que lhe vem por causa
dela, a quem quer mais do que a outra coisa qualquer.
E confessa-lhe que a culpa foi de
Deus que, para seu mal, o levou a querer-lhe bem, a amá-la. Numa atitude de
desespero, confessa que está prestes a perder o juízo e não consegue dormir.
10.
A mesura e o segredo são indispensáveis para ele ser retribuído no seu amor:
nunca poderá mencionar o nome da mulher amada, para não a prejudicar, não
afectar a sua honra.
Explicações para o fenómeno da poética do amor cortês
Para a explicação do aparecimento
duma poesia que glorifica o amor como sentimento capaz de transfigurar a pessoa
humana, têm sido apresentadas várias teses.
Afirmam uns que os poetas
occitânicos (provençais) terão conhecido a poesia clássica, sobretudo a Arte de Amar de Ovídio, e que terão
transposto alguns dos seus tópicos como o elogio das virtudes da mulher que
corresponderia ao elogio dos soberanos, o da nobreza de alma que conquista. No
caso do amor cortês, pela exaltação amorosa, o vilão poder-se-ia tornar cortês.
Todavia os antigos consideravam o amor como um elemento perturbador, enquanto
os trovadores cantavam o seu poder ideal.
Procuram outros encontrar
correspondência na poesia árabe, na qual perpassa um certo platonismo, exaltando
o amor ideal. Mas os árabes atribuem quer à mulher quer ao homem o grau de
sublimidade através da força do amor.
Ainda outros procuram no folclore o
fundamento para a explicação da poesia cortês. Não há dúvida de que as festas
pagãs da Primavera e das flores de Maio exprimem uma alegria erótica muito
forte que se casaria bem com o conceito de amor livre e anticonjugal da poesia
provençal. Mas o carácter aristocrático da canção provençal não pode ser
explicado apenas por essa influência popular. Há que encontrar outras
hipóteses.
A liturgia católica estaria na base
desta poesia. A Igreja sempre celebrou o culto de Nossa Senhora como a mulher
perfeita e ideal, diante da qual o cristão se deveria prostrar e à qual deveria
venerar. Mas o amor cortês cantado pelos provençais trazia consigo o estigma do
amor adulterino, o que obriga a encontrar ainda outras influências.
Ao mesmo tempo e no mesmo espaço –
na Provença – apareceu uma heresia poderosa que foi combatida, em tipo de
cruzada, pela Igreja, mas defendendo um conceito de amor muito próximo do dos
trovadores: os cátaros. Provinda do maniqueísmo, defendia a dualidade radical
dos seres: o bem e o mal, Deus e o Diabo. Rejeitando quase tudo o que a Igreja
Católica defendia, tinha uma concepção estranha acerca do casamento: os puros
ou perfeitos obrigavam-se a abster-se de todo o contacto com suas mulheres se
fossem casados, ou não casavam, os imperfeitos tinham o direito de se casar mas
viviam condenados pelos puros. O casamento era um pacto com o Diabo. Não
podendo excluir a união sexual, necessária para a continuação da espécie
humana, cantavam o amor livre, fora de todos os laços matrimoniais. Há,
efectivamente, uma relação entre o amor dos trovadores e o amor dos cátaros. Em
ambos os casos, procurava-se um esquecimento do corpo e a fuga ao amor
interessado do casamento. A aparição da amada perfeita – na teoria cátara, a
alma era bissexual antes de encarnar no corpo miserável – salvava o trovador,
abafando todos os desejos corporais. Mas há diferenças assinaláveis, porque os
cátaros afirmaram sempre a superioridade do homem sobre a mulher. Há que
procurar ainda outras fontes.
O afrouxamento da autoridade e dos
poderes traz uma possibilidade nova de admitir a mulher, mas a coberto duma
idealização e até de uma divinização do princípio feminino. O que só pode
avivar a contradição entre os ideais e a realidade vivida. A psique e a
sensualidade naturais debatem-se nesses ataques convergentes, nessas
condenações antitéticas, nesses constrangimentos teóricos e práticos, nessas
liberdades muito obscuramente pressentidas na sua fascinante novidade.
É no âmago dessa situação
inextricável, é como uma resultante de tantas confusões que aí se deviam ligar,
que aparece a cortesia,
"religião" literária do Amor casto, da mulher idealizada, com a sua
"piedade" particular, a joy d'
amors, seus "ritos" precisos, a retórica dos trovadores, a sua
moral da homenagem e do serviço, a sua "teologia" e as suas disputas
teológicas, os seus "iniciados", os trovadores, e os seus "crentes",
o grande público, culto ou não, que escuta aqueles e faz a sua glória mundana
em toda a Europa. Ora, nós vemos esta religião do amor que enobrece ser
celebrada pelos mesmos homens que
persistem em considerar a sexualidade como "vil"; e vemos frequentemente
no mesmo poeta um adorador entusiasta
da Dama, que ele exalta, e alguém que despreza a mulher, que ele rebaixa.
De
amor sei que dá facilmente grande alegria àquele que observa suas leis, diz
Guilherme, sexto conde de Poitiers e nono duque da Aquitânia, o primeiro
trovador conhecido, que morreu em 1127. Desde o princípio do séc. XII, essas
"leis de Amor" estão já portanto fixadas, como um ritual. São:
Mesura, Serviço, Proeza, Longa Espera, Castidade, Segredo e Mercê, e essas
virtudes conduzem à Alegria que é sinal e garantia de Vray Amor.
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